sábado, 14 de dezembro de 2013

Francisco Sobreira (Operação Coroada de Êxito)

Empoleirado nesta cama, desde ontem – ou anteontem? Vão me levar daqui a pouco, finalmente. O anestesista anestesiado e penduleandando me examinou e confirmou a hora da operação. Foi embora com o bigode pretíssimo encostando no cigarro, deixando o quarto com hálito de bebida penetrando nas minhas narinas, sufocando-me a respiração. Tudo isso acontece pra me aporrinhar. Um cachorro ganiu a noite toda, o doente do quarto vizinho gritou tirando meu sono. A noite toda o chuveiro pingou, já manhã os pingos avolumaram-se, invadiram o quarto, treparam na cama e me cobriram. Despertei ouvindo meus berros de socorro, a enfermeira me estendendo um copo dágua. Ela permaneceu junto de mim conversando, até me acalmar. Não ouvi mais o cão e o doente gritarem, virara defunto doente. Pensei em seus gemidos, tive remorso por o haver amaldiçoado, mas logo me convenci de que a morte tinha sido um bem para ele. A moça pensava assim, fiquei em paz, não era responsável pela morte do infeliz.

                Alguém bate à porta, mando entrar. É a enfermeira que saiu há pouco, equilibrando entre o fura-bolo e o cata-piolho a seringa abarrotada do líquido que vai me narcotizar. Me veste para a operação, fura meu braço, dói muito, mas com pouco tempo não vou sofrer mais nada, a sádica me tranquiliza. Está cada vez mais perto a hora de me levarem. Ela se retira e me deseja uma feliz operação. Os olhos vão ficando pequeninos, o corpo amolecendo, os músculos relaxando. Uma música sofrida sussurra nos meus ouvidos, fugida de uma radiola longínqua, nas asas do vento. Seus versos devem falar de infelicidade, não consigo entendê-los, sinto apenas o gemido da melodia. Outros estão ouvindo ela? Não, não, tenho certeza de que somente eu. Entre milhões de padecentes fui o escolhido para escutar o seu lamento. Já vão chegando os homens, a música despede-se de mim. São quatro homens de preto, com eles está a enfermeira que me fez beber água açucarada, e me furou e me narcotizou, cabelos soltos pra cobrir o corpo nu. Me ajuda a passar pra cama de rodas, depois senta a meu lado. Dois homens seguram de cada extremidade da cama e a suspendem, como ignorando as rodas. Atravessamos a estreita sala de visitas, alcançamos o corredor comprido, há uma multidão estacionada nas portas dos quartos esperando minha passagem. Um velho aparece como cabeça de uma fila. O radinho pregado no ouvido toca a Marcha Nupcial. Um dos homens tem o rosto do meu tio, só que meu tio não era carrancudo. Na véspera de me internar me encontrei quinhentas vezes com o Buick que o matou. Parecia de propósito. Fiquei pensando besteiras, não posso ver o Buick preto e carcomido que não sinta medo de morrer como ele. Fiquei com ele até o último gemido, a última palavra ininteligível. (Quem escutará meu gemido final, além do médico indiferente?). O homem agora ri pra mim do jeito que conheço bem. Aterrissam a cama, como se tivessem descoberto as duas rodas. Deviam estar combinados, logologo o sósia do meu tio, usando o mesmo risozinho moleque, e o outro homem empurram a cama que arranca na maior velocidade. De medo, a enfermeira me atraca, sufocando-me no seu desespero, espetando-me o rosto com os mamilos. Os homens gargalham feito metralhadoras, divertem-se com o meu asfixiamento, a histeria da puta e a correria dos acompanhantes. Aos poucos a cama vai reduzindo a velocidade e a risalhada ganhando distância, já ouço o toque-toquear de sapatos bem perto. Um fio de voz sai de minha garganta pra tranquilizar a enfermeira, que pára de berrar e cansada deita comigo. Uns vultos detêm a cama, não os distingo bem, minha vista está escurecendo, só ouço o resfolegar das respirações. O velho do rádio deve ter ficado no meio do caminho, não ouço mais a música. Em lugar dele está um outro parecendo vestido de padre, as mãos segurando um livro aberto, faz um gesto que os padres fazem, deve ser mesmo um. Minha mão procura os seios da enfermeira e não os acha, a cama recomeça a caminhar, desaparecendo comigo por uma porta.

                Na sala reencontro a enfermeira fantasiada para a operação. Não me dá atenção, papeia com a colega com quem vai trabalhar. A colega está fatigada pelo plantão da noite anterior – a voz apressada contrasta com a voz vagarosa e cheia de pausas da minha conhecida. Fico impaciente com a demora do médico, pergunto à minha conhecida se ele está lembrado da operação. Está lembrado sim, além do mais, mora vizinho ao hospital, basta um grito e ele aparece. Não me convenço e, para desviar a preocupação, tento pensar em outras coisas. Mas eu penso no Buick estraçalhando meu tio ou penso nos gritos do meu vizinho se acabando pelo câncer e fico mais nervoso. E a enfermeira de voz veloz é também uma sádica, está falando do homem, assistiu à operação. O médico só teve o trabalho de abrir e fechar a barriga, o tumor já devastara tudo por dentro e o martirizado voltou ao quarto pra receber a morte.

                O sucesso da televisão assoviando entra na sala. O marchante veste preto. Belisca a da voz que tinha pressa, graceja com a da voz preguiçosa e abanca-se pra conversar.

                “Está fazendo o maior sucesso essa música” (a voz do marchante).

                “Diz que é um plágio duma música brasileira bem antiga” (a voz veloz).

                “Também, ouvi falar” (a voz lenta).

                “É, realmente, as duas se parecem, mas é apenas uma questão de coincidência (a voz sábia do marchante). O francês autor da música declarou numa entrevista que nunca ouviu a música brasileira. Eu acho que está falando a verdade. E podem notar que, toda vez que uma música estoura, aparece logo um descobridor de plágio”.

                “O filme tá passando no Rio, há vários meses”´(a voz vagarosa).

                “Minha prima assistiu disse que quase morre de chorar que é muito emocionante o filme não tem gente forte pra não chorar” (a voz cada vez mais veloz).

                “Não resistem as mulheres, que vocês são umas sentimentalonas. Pois eu estou doido pra ver esse filme pra mostrar que não me emociono com frescurinhas” (a voz do marchante, viril).

                “Pois minha prima diz que viu até homem chorando o filme é muito penoso conta a história de uma moça que morre de câncer com apenas vinte cinco anos” (a voz correndo).

                “Por falar em morte. A Helena morreu. Sabia?” (a voz se arrastando como tartaruga).

                “Que Helena?”

                “A Helena da novela ‘Hospital’”.

                “A Glauce Rocha. A maior atriz de teatro que vi em cena. Uma perda irreparável para o teatro, a televisão e o cinema brasileiro” (a voz do marchante, de crítico).

                “Interessante. Depois de morta, a pessoa aparecer na televisão, fazendo as mesmas coisas que as pessoas vivas”.

                “Tal fato sucede porque os capítulos das novelas são gravados com grande antecedência” (a voz do marchante, de entendido).

                A conversa martelava minha paciência, retardava a operação. O marchante ignorava minha presença, envolvido pelo assunto. Mais de uma vez me deu vontade de fugir, para protestar contra a indiferença dele. Será que a operação era desnecessária, como a do meu vizinho? Ia ser isso, o marchante não tinha que me ligar, conversava animado e suas palavras amaciavam os ouvidos das enfermeiras. Alguém começa a esmurrar a porta, enfermeira corre pra atender, escuto uma voz cochichada e logo depois a porta fechar com violência. E a voz da mulher desembestar:

                “A diretora manda comunicar que o anestesista faleceu há meia hora, se o senhor quer que mande atrás de outro”.

                “Hoje não. A operação fica adiada pra outro dia” (a voz do marchante, ditatorial).

                Entreabro os olhos, pesados de sono os meus olhos distinguem dentes enormes de algodão querendo saltar da boca, escuto uma voz esfalfada pela caminhada longa:

                “A operação do senhor foi coroada de êxito. O caixão, qual a cor que o senhor prefere?”

                Verde. E voltei a dormir.

(Francisco Sobreira, A Morte Trágica de Alain Delon)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://rabi-rabix.blogspot.com

Nenhum comentário: