Certa hora de pleno dezembro, por véspera do Natal, estava eu desassossegadamente abanando os mosquitos, quando, por mão de alto e grave sujeito, chegou-me um pacote, atado em cruz por cadarço listado; farta placa de lacre fechava a laçada do atilho, nem endereço nem sinete.
— Mandam-lhe!
Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.
Fiz - há! - solentemente e estendi a mão, tomando o volume, trégua foi para os mosquitos, que apertaram as evoluções e o zumbir.
Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o receio, a inconveniência de um engano, uma troca...
Verificar, lógico, o verificar impunha-se.
— Oh! senhor?!... clamei.
O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina..., sumira-se, era o certo. Pois...
Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante - e muda - expectativa, não bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por véspera do Natal, etc. etc.
Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e ainda o laçarote não correu... Cortei-o!
Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio...
Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à nuvem oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio sobredito pacote. Súbito, passei de irado para pacífico; estaquei, e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:
— E - isto - se é uma broma?...
E sopesei o... problema: leve.
Apalpei-o: brando.
Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço novo...
Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário de estética: papel de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço; escamas de cera com breu e ocre. Lamentável!
Âmbito de conjetura: tudo.
Ímpeto de curiosidade: abre!
Conselho de prudência: vê lá!
O livre arbítrio: ora!...
E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno salpintado de muito porém legibilíssimo bastardinho da mão inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre nas horas vagas, e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara o título:
CASOS DO ROMUALDO
Subsídios para as suas esperadas memórias póstumas, caso nestas esqueça aqueles.
Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez fazê-lo dizer:
— Apre!...
Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata que se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém o leitor a essência da historieta e repita-a, - por sua vez: recorte-a, enfeite-a com o brilho do gesto e da dicção, acrescente um ponto a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável.., serás tu próprio, leitor, o Romualdo, redivivo...
Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas que fornecem - sempre - matéria para assunto; histórias de cobras e de jóias perdidas. Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos de silêncio, pausas longas, frases dispersas... experimente, amigo: fale de cobras e de jóias perdidas; e, daqui por diante... nos casos do Romualdo!
CASOS DO ROMUALDO
Sou eu, o homem!
É no geral sestroso e dado a pôr em dúvida o que com outrem se passa o indivíduo mal-andado por este mundo de Deus.
Que pode saber do que vai - além - o homem que nunca - daqui — moveu-se, mesmo a passo de cágado?
Por isso sou mirado, eu, Romualdo, por esses tais, com um olhar parado, dentro do qual as dúvidas galopam...
É admissível, afinal, e eu perdôo-lhes: pois se eles - nunca — viram nada! Cada um viveu como um toco plantado no terreiro... como soleira de porta... como parafuso de dobradiça!
Bastará já que tivesse vivido como galo de torre de igreja, como coleira de cachorro ou como sanguessuga de barbeiro... e já muito mais cousas teria visto, cem novidades saberia, mil sucessos poderia referir. E, melhor ainda, se vivera como realejo de minhas aventuras?... Nada, pois que nada -nunca! - viram.
Entre os segundos o negócio muda um tanto de figura: falo, mas pouco, e pouco porque ainda não seria bem compreendido. Agora, quando sou centro dos terceiros, ah! então, sim, ouvidos haja, porque língua tenho e acontecimentos sobram!
Abro o saco e conto o muitíssimo que tenho visto, as aventuras em que fui parte. Dos meus verdadeiros - casos, posso citar inúmeras testemunhas... infelizmente quase todas mortas e as restantes morando longe; há mesmo algumas cujos nomes esqueci, mas cujas fisionomias guardo nos escaninhos da memória.
Como neste assunto não sou obrigado a reger-me pelo Código do Comércio, que exige os lançamentos por ordem de datas, irei consignando os meus depoimentos, conforme se me forem eles apresentados. E se, apesar das minhas afirmativas, pretender alguém pôr em dúvida os meus casos, peço a esse alguém que suspenda o seu juízo. Suspenda-o e consulte-me.
De corporal, sou baixinho e gordo, ruivo e imberbe; de moral, sou calado e tagarela, violento e calmo; em tudo, homem para as ocasiões.
======================
CONTINUA…
— Mandam-lhe!
Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.
Fiz - há! - solentemente e estendi a mão, tomando o volume, trégua foi para os mosquitos, que apertaram as evoluções e o zumbir.
Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o receio, a inconveniência de um engano, uma troca...
Verificar, lógico, o verificar impunha-se.
— Oh! senhor?!... clamei.
O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina..., sumira-se, era o certo. Pois...
Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante - e muda - expectativa, não bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por véspera do Natal, etc. etc.
Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e ainda o laçarote não correu... Cortei-o!
Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio...
Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à nuvem oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio sobredito pacote. Súbito, passei de irado para pacífico; estaquei, e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:
— E - isto - se é uma broma?...
E sopesei o... problema: leve.
Apalpei-o: brando.
Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço novo...
Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário de estética: papel de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço; escamas de cera com breu e ocre. Lamentável!
Âmbito de conjetura: tudo.
Ímpeto de curiosidade: abre!
Conselho de prudência: vê lá!
O livre arbítrio: ora!...
E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno salpintado de muito porém legibilíssimo bastardinho da mão inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre nas horas vagas, e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara o título:
CASOS DO ROMUALDO
Subsídios para as suas esperadas memórias póstumas, caso nestas esqueça aqueles.
Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez fazê-lo dizer:
— Apre!...
Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata que se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém o leitor a essência da historieta e repita-a, - por sua vez: recorte-a, enfeite-a com o brilho do gesto e da dicção, acrescente um ponto a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável.., serás tu próprio, leitor, o Romualdo, redivivo...
Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas que fornecem - sempre - matéria para assunto; histórias de cobras e de jóias perdidas. Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos de silêncio, pausas longas, frases dispersas... experimente, amigo: fale de cobras e de jóias perdidas; e, daqui por diante... nos casos do Romualdo!
CASOS DO ROMUALDO
Sou eu, o homem!
É no geral sestroso e dado a pôr em dúvida o que com outrem se passa o indivíduo mal-andado por este mundo de Deus.
Que pode saber do que vai - além - o homem que nunca - daqui — moveu-se, mesmo a passo de cágado?
Por isso sou mirado, eu, Romualdo, por esses tais, com um olhar parado, dentro do qual as dúvidas galopam...
É admissível, afinal, e eu perdôo-lhes: pois se eles - nunca — viram nada! Cada um viveu como um toco plantado no terreiro... como soleira de porta... como parafuso de dobradiça!
Bastará já que tivesse vivido como galo de torre de igreja, como coleira de cachorro ou como sanguessuga de barbeiro... e já muito mais cousas teria visto, cem novidades saberia, mil sucessos poderia referir. E, melhor ainda, se vivera como realejo de minhas aventuras?... Nada, pois que nada -nunca! - viram.
Entre os segundos o negócio muda um tanto de figura: falo, mas pouco, e pouco porque ainda não seria bem compreendido. Agora, quando sou centro dos terceiros, ah! então, sim, ouvidos haja, porque língua tenho e acontecimentos sobram!
Abro o saco e conto o muitíssimo que tenho visto, as aventuras em que fui parte. Dos meus verdadeiros - casos, posso citar inúmeras testemunhas... infelizmente quase todas mortas e as restantes morando longe; há mesmo algumas cujos nomes esqueci, mas cujas fisionomias guardo nos escaninhos da memória.
Como neste assunto não sou obrigado a reger-me pelo Código do Comércio, que exige os lançamentos por ordem de datas, irei consignando os meus depoimentos, conforme se me forem eles apresentados. E se, apesar das minhas afirmativas, pretender alguém pôr em dúvida os meus casos, peço a esse alguém que suspenda o seu juízo. Suspenda-o e consulte-me.
De corporal, sou baixinho e gordo, ruivo e imberbe; de moral, sou calado e tagarela, violento e calmo; em tudo, homem para as ocasiões.
======================
CONTINUA…
Nenhum comentário:
Postar um comentário