domingo, 29 de dezembro de 2013

Humberto de Campos (A Bilha)

Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da sua chácara do "Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidélis, olha o coronel Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São João da Barra. A cinco metros do honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro, e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o coração, e dá ordens:

- Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.

E para a esposa:

- Mergulhe, Lindinha. Está com medo?

A moça dá um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a água que lhe encharca os cabelos.

Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente, porém, com a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no tumulto um redemoinho fervente.

Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:

- Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?

- Porque entrou água; está claro! - explicou o coronel.

- Ela não estava com a boca para cima?

- Estava, sim.

- E como entrou água?

- Porque estava furada, - tornou o velho.

O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda, que se encaminhava com o rosto fora d´água, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a vozinha fina:

- Mamãe, venha mais p'ra beira!…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

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