– Qual a diferença entre a alma e um passarinho?
O que é a alma,
Isaac L. Peretz
(...) formavit igitur Dominus Deus hominem de limo terrae et inspiravit in faciem eius spiraculum vitae et factus est homo in animam viventem (...)
Vulgate, Genesis, 2:7
O urubu avistou o corpo do menino, empinou-se e bateu as asas. Não pude fazer nada. Aliás, nunca posso fazer nada. Não devo fazer nada. Não posso estorvar os impulsos instintivos dos urubus, nem dos leões, nem dos sapos. Todos eles precisam sobreviver. Os olhos da alma do menino pareciam horrorizados. Então ele, um ser humano, pequenino ser humano, recém-nascido, indefeso, deveria morrer para que urubus sobrevivessem? Não entendia a lógica da morte.
Maria, coitada, mãe tão jovem, sem forças, sem amparo, desorientada, machucada, ferida, agiu por impulso, por loucura, desespero de não ter como criar o filho, de não ter lar, marido, nada. Quem seria o pai? José, João, Marcos, Mateus, Lucas? Pobre Maria, apaixonada, usada, objeto. Grávida, procurou amigas. Não podia ser mãe, abortaria. Ou criava o filho com o pão amassado pelo diabo? Não encontrou quem lhe tirasse as dúvidas. Se me buscou, não lembro. Se rezou a mim, pouco importa. Há o livre arbítrio.
Chegado o momento de parir, Maria se acocorou, pôs-se a gemer, chorar, praguejar. Um corpo mole e ensanguentado escorria de suas entranhas. Quase a desmaiar, puxou com as mãos o fruto de seu ventre. Sentou-se e chorou mais. Urgia cortar o cordão umbilical, livrar-se daquilo. Apalpou a faca, agarrou-a e fez o corte. Estrangulava a criança? Não, ia lavar-se, descansar, dormir. Ou morrer. Cochilou, recostada à parede do banheiro. Uma barata passeava pelo chão. Apanhou o lençol e jogou-o sobre o corpo do filho. Ajoelhou-se, suada. Enrolou o pano no menino. Colheu o pacote e ergueu-se. Abriu a porta do banheiro e, pé ante pé, dirigiu-se à rua. Talvez fosse madrugada. Caminhou pela calçada. Latas de lixo recostadas a postes e muros. Olhou para os lados, as portas e janelas fechadas. Um carro passou longe, em disparada. Depositou o pacote numa das latas e correu para casa.
A alminha não parava de fazer perguntas. Por que não impedi a fecundação de Maria? Porque não posso impedir a procriação. A vida é necessária, imperiosa. A alma infantil não aceitava as minhas ponderações. Tudo, para ela, parecia injusto, errado, torto, feio, cruel. Fui insultado: chamou-me de tudo, menos de deus. Chamou-me de caos, confusão, desordem, diabo.
De manhã garis passaram pela rua, aos gritos e correrias. Pegavam as latas e despejavam o lixo no interior do caminhão. Levado para o monturo junto ao lixo, o menino foi lançado fora. Urubus, impacientes, espiavam de longe a movimentação dos trabalhadores. Ao virem afastar-se o caminhão, voaram sobre o repasto.
O capitão dos urubus se aproximou do pequeno ser. Olhos arregalados para o mundo, a criança chorava. A ave deu a primeira bicada. Faminta, passou a bicar a barriga, as pernas, o peito. O sangue tingia as penas negras do bicho.
Outros urubus se acercaram do pequeno corpo ainda vivo. E logo o banquete virou disputa, guerra. Com pouco tempo restavam apenas ossos. No entanto, a alma do menino evaporou-se e subiu ao céu. Os urubus se lamentaram, crocitando feito aves malditas. A fome não se resolve nunca, menino. Sim, todos são alimento, tudo é alimento. Nunca viste leão caçando veado? Se é justo ou injusto? Justiça e injustiça são apenas palavras.
O menino quis saber se os causadores de sua tragédia foram os urubus, sua mãe, seu pai, os garis ou o prefeito. Não posso acusar ninguém. Não devemos julgar os personagens das tragédias. Nem qualificá-los, adjetivá-los. Nada de lobo mau, mãe santa, pai-nosso. Compete-nos apenas ver e contar. Não nos cabe desenhar nada, nem dar lições de moral. Os seres existem, os fatos se dão, a vida se faz. E é só.
O que é a alma,
Isaac L. Peretz
(...) formavit igitur Dominus Deus hominem de limo terrae et inspiravit in faciem eius spiraculum vitae et factus est homo in animam viventem (...)
Vulgate, Genesis, 2:7
O urubu avistou o corpo do menino, empinou-se e bateu as asas. Não pude fazer nada. Aliás, nunca posso fazer nada. Não devo fazer nada. Não posso estorvar os impulsos instintivos dos urubus, nem dos leões, nem dos sapos. Todos eles precisam sobreviver. Os olhos da alma do menino pareciam horrorizados. Então ele, um ser humano, pequenino ser humano, recém-nascido, indefeso, deveria morrer para que urubus sobrevivessem? Não entendia a lógica da morte.
Maria, coitada, mãe tão jovem, sem forças, sem amparo, desorientada, machucada, ferida, agiu por impulso, por loucura, desespero de não ter como criar o filho, de não ter lar, marido, nada. Quem seria o pai? José, João, Marcos, Mateus, Lucas? Pobre Maria, apaixonada, usada, objeto. Grávida, procurou amigas. Não podia ser mãe, abortaria. Ou criava o filho com o pão amassado pelo diabo? Não encontrou quem lhe tirasse as dúvidas. Se me buscou, não lembro. Se rezou a mim, pouco importa. Há o livre arbítrio.
Chegado o momento de parir, Maria se acocorou, pôs-se a gemer, chorar, praguejar. Um corpo mole e ensanguentado escorria de suas entranhas. Quase a desmaiar, puxou com as mãos o fruto de seu ventre. Sentou-se e chorou mais. Urgia cortar o cordão umbilical, livrar-se daquilo. Apalpou a faca, agarrou-a e fez o corte. Estrangulava a criança? Não, ia lavar-se, descansar, dormir. Ou morrer. Cochilou, recostada à parede do banheiro. Uma barata passeava pelo chão. Apanhou o lençol e jogou-o sobre o corpo do filho. Ajoelhou-se, suada. Enrolou o pano no menino. Colheu o pacote e ergueu-se. Abriu a porta do banheiro e, pé ante pé, dirigiu-se à rua. Talvez fosse madrugada. Caminhou pela calçada. Latas de lixo recostadas a postes e muros. Olhou para os lados, as portas e janelas fechadas. Um carro passou longe, em disparada. Depositou o pacote numa das latas e correu para casa.
A alminha não parava de fazer perguntas. Por que não impedi a fecundação de Maria? Porque não posso impedir a procriação. A vida é necessária, imperiosa. A alma infantil não aceitava as minhas ponderações. Tudo, para ela, parecia injusto, errado, torto, feio, cruel. Fui insultado: chamou-me de tudo, menos de deus. Chamou-me de caos, confusão, desordem, diabo.
De manhã garis passaram pela rua, aos gritos e correrias. Pegavam as latas e despejavam o lixo no interior do caminhão. Levado para o monturo junto ao lixo, o menino foi lançado fora. Urubus, impacientes, espiavam de longe a movimentação dos trabalhadores. Ao virem afastar-se o caminhão, voaram sobre o repasto.
O capitão dos urubus se aproximou do pequeno ser. Olhos arregalados para o mundo, a criança chorava. A ave deu a primeira bicada. Faminta, passou a bicar a barriga, as pernas, o peito. O sangue tingia as penas negras do bicho.
Outros urubus se acercaram do pequeno corpo ainda vivo. E logo o banquete virou disputa, guerra. Com pouco tempo restavam apenas ossos. No entanto, a alma do menino evaporou-se e subiu ao céu. Os urubus se lamentaram, crocitando feito aves malditas. A fome não se resolve nunca, menino. Sim, todos são alimento, tudo é alimento. Nunca viste leão caçando veado? Se é justo ou injusto? Justiça e injustiça são apenas palavras.
O menino quis saber se os causadores de sua tragédia foram os urubus, sua mãe, seu pai, os garis ou o prefeito. Não posso acusar ninguém. Não devemos julgar os personagens das tragédias. Nem qualificá-los, adjetivá-los. Nada de lobo mau, mãe santa, pai-nosso. Compete-nos apenas ver e contar. Não nos cabe desenhar nada, nem dar lições de moral. Os seres existem, os fatos se dão, a vida se faz. E é só.
Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
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