domingo, 15 de dezembro de 2013

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N. 8 – 14 de dezembro de 1886

E disse o Diabo: — “Fala,
Que queres ser nesta vida?
Antonino ou Caracala?
Capucho ou jardins de Armida?

“Escolhe, e verás, Malvólio,
Tudo o que quiseres; pede
Um sólio, e terás um sólio,
Pede um culto, e és Mafamede”.

E eu, respondendo-lhe, disse
Que nem tronos nem altares;
Que, na minha mandriice,
Tinha sonhos singulares.

Ou antes, um sonho apenas,
Um só desejo, um só, único,
Mais velho que a velha Atenas,
Mais velho que um vintém púnico.

Não era ter a coroa
Do Egito nem da Bulgária,
Nem ver as moças de Goa,
Nem ter os beijos da Icária,

Nem dormir o dia inteiro
Em tapetes persianos,
Sentindo o vento fagueiro
De numerosos abanos.

Digo abanos meneados
Por muitas damas formosas,
Feitos de fios delgados
De palma, e plumas, e rosas.

Nem comer em pratos de ouro
Figos secos da Turquia,
Acompanhados do louro
Néctar que há na Andaluzia.

Nem possuir as estrelas
Que são tão minhas amigas,
Para um dia convertê-las
Em meias-dobras antigas.

Pois tudo isso, e o mais que pode
Entrar no mesmo cortejo
Duvido que se acomode
Ao meu íntimo desejo.

Sabes tu o que eu quisera?
Quisera ser cartomante,
Dizer que espere ao que espera,
E dizer que ame ao amante.

Saber de cousas perdidas,
Saber de cousas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Saber de cousas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Ou se há lá na costa mouras;
Se a costureira — casada —
Chega a depor as tesouras.

Quem é certo moço que anda
De chapéu branco e luneta,
E algumas vezes lhe manda
Lembranças por uma preta.

Se a mulher de um diplomata
Vive enredando as pessoas...
Se há de esperar certa data...
Se as filhas hão de ser boas...

Onde pára uma pulseira,
Um recibo, um cachorrinho...
Se a neta da lavadeira
Bifou algum colarinho...

Se há de morrer de um inchaço
Que traz na perna direita...
Ou se a luxação de um braço
Pode deixá-la imperfeita...

Tudo isso, e o mais que não cabe
Em verso rápido e breve,
E que a cartomante sabe,
Sabe, conta, e não escreve.

É o meu desejo. E tenho
Que, se essa cousa me ensinas,
Serei, com o meu engenho,
O doutor destas meninas,

Que a nós outros coube em sorte
Política e loteria,
Cousas que têm, como a morte,
Mistério e melancolia.

Mas que hão de fazer as damas
Com a alma incendiada
Das mesmas secretas flamas
E ao mesmo abismo inclinada?

Procuram timidazinhas
Aquelas claras vivendas
E crescem as adivinhas,
Não dão para as encomendas.

Pois se tu, Diabo amigo,
Me pões capelo de mestre,
Juro-te que dás comigo
No paraíso terrestre.

Cá virão as Evas novas,
Inquietas, desordenadas,
Pedir-me, com ou sem provas,
As verdades mascaradas.

E olha que farei no ofício
Notáveis melhoramentos,
Tapetes, largo edifício,
E o preço — mil e quinhentos.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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