Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho (Sobral, 1949) é Professor da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo: Maltese, 1994); Madeira Matriz (São Paulo: Annablume, 1999); Patativa do Assaré (Fortaleza: FDR, 2000); Patativa Poeta Pássaro do Assaré (Fortaleza: Omni, 2002), e Desenho Gráfico Popular (São Paulo: IEB/USP, 2000); dentre outros trabalhos acadêmicos. Tem artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. Como ficcionista, publicou Pluralia Tantum (Fortaleza: GRECEL, 1973); Parabelum (Fortaleza: GREEL, 1977); Queima de Arquivo (Fortaleza: SECULT, 1983); Resto de Munição (Fortaleza: SECULT, 1984): Buick Frenesi (Fortaleza: SECULT, 1985); e Pequenas Histórias de Crueldade (Fortaleza: SECULT, 1987).
Entre os que acreditaram ter concluído sua obra de contista está Gilmar de Carvalho. No entanto, pela singularidade de suas narrativas, não pode ser comparado a nenhum prosador de ficção do Ceará. Não somente porque seus contos são fundados na erudição, seja no latim, no inglês, na História, na Filosofia, na mitologia, na Bíblia etc. Também porque ora escreve como poeta, ora como salmista, ora como ninguém. Juarez Barroso, nas dobras de Pluralia Tantum, diz que a literatura de Gilmar é “uma afirmação de liberdade. Mas ele não fica junto à turma do sereno, ao bloco da contracultura. Formalmente, rejeita o marginalismo artístico, os vanguardismos escandalizantes. Seu estilo é clássico, sua narração, fabular, levemente borgiana. A partir daí ele constrói, ou destrói, ri dos deuses, mais perto de Lúcifer que do Arcanjo São Miguel (afinal de contas, uma figura do establishment), simpatizante dos exus, louvador da pomba-gira, Vênus mestiça e mais sensual, naturalmente”. A seguir se nega chamar de contos os textos de Gilmar. Na verdade, não são contos tradicionais. Em comum com estes apenas o terem títulos, alguns personagens, alguma narração. O resto é bem diferente. Afirma Juarez: “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais de vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão, que tanto trabalho deu ao Senhor com sua rebeldia e sua mania de amor. Amante da vestal romana, consagrada em virgindade ao deus maior, Gilmar, libertário e libertador sofre agora o mesmo castigo de Prometeu. Zeus acorrentou-o ao relógio da Praça do Ferreira, à Coluna da Hora. Que, aliás, não existe mais”.
Publicado em 1973, Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho, é provavelmente o livro de prosa de ficção mais singular da literatura cearense. Constituída de 41 textos – que poderão ser denominados narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos – a obra inaugural do romancista de Parabelum pareceria alienígena (lato sensu) se posta ao lado dos livros de contos de outros escritores cearenses. Em “composição”, como o título indica, tudo se volta para o compor: “em off-set os jornais”, “manchetes”, “diagramação”, “letras”, “logotipos genéticos”, “tipos móbiles”, “quatro colunas”, “folhinha”, “papel parede”, “sangue dos crimes” (nos jornais), “classificados dos tabloides”. Um dos textos é intitulado “um conto”, como a deixar bem claro que os outros não são contos. Nele há diálogos (com travessão), narração e personagens, embora não identificados. No entanto, “trajetória” é uma narrativa quase linear. Há um enredo, uma cadeia de pequenos fatos, uma história, que podem ser percebidos claramente nos seguintes trechos de frases: “proferem um palavrão”, “uma freada brusca”, “anúncio de Coca-Cola”, “andou”, “apressou o passo”, “cruzou com um desconhecido”, “um bar”, “um velho desenrolava um embrulho”, “precisava chegar logo”, “viu pessoas”, “subiu o primeiro degrau”.
Busque-se em Pluralia Tantum o drama e o leitor encontrará algo entre o conflito e o não-conflito. O tempo é medido como numa roda-gigante, estonteante. O espaço da ação é poucas vezes mencionado ou não tem nenhuma importância: “Já vi e revi os lugares santos e os comuns” (“hollywood”). E os personagens onde estão, quem são? Em algumas composições apenas um “narrador” se mostra, fala: “O rapaz morto sou eu” (...), como se vê em “laudatio”.
Em alguns “contos” de Gilmar não se percebe um enredo claro, mas somente fiapos (frases) de um enredo esgarçado, de um tecido rasgado, esticado, esfiapado (“memory”). Pode-se falar também em enredo diluído (“hermenêutica”).
O latim e a Bíblia são fontes permanentes de enredo nesta obra de Gilmar. O estudo “plvralia tantvm”, que dá título ao volume (com o “v” latino transformado em “u”), é nada mais do que uma explicação de alguns plurais: exéquias, férias, núpcias, alvíssaras, primícias, anais (subtítulos), e a decodificação de uma oração latina. Na parte intitulada “teodiceia”, composta de sete escrituras, os temas bíblicos estão muito presentes. Em “teodisseia” a eles se juntam os mitos de Ulysses, Penélope, Zeus, Posseidon, isto é, a mitologia grega. Contudo, em “genesis” e “exodos” se podem ler reescrituras desses livros. Em “o jardineiro cego” se conta a reinvenção do pecado original, sendo o jardineiro personagem simbólico. Embora não ligado diretamente a temas bíblicos, “gaia scientia” também se constrói sobre a ideologia cristã: o tribunal da inquisição.
Crônicas ou crônicas-poemas podem ser vistas na parte intitulada “minas”. A primeira, “entradas e bandeiras”, é crônica histórica; “minas novas”, “minas novas: porões”, “doroteia” e “o inconfidente” são crônicas-poemas. Outras composições podem ser designadas como verbetes, à falta de outro termo, como na parte “orixás do ceará”. Pois não são contos nem crônicas nem poemas. Nelas há como que um misto de alguns gêneros da prosa de ficção. Em “nanã”, por exemplo, leem-se definições como nos verbetes: “Nanã é dama de antigas cortes” (...); “Nanã é senhora de todas as cachoeiras” (...); “Nanã é força a mover antigas moendas” (...) Entretanto, há um personagem, um narrador: “Nanã me contou histórias” (...). Em “oxossi” aparece a figura de Dom Sebastião, o iluminado. Em “omulu” se pode ler uma lenda ou como narrar uma lenda. “yemanjá” seria uma narração (não uma narrativa). Em “iansã” se vê um narrador (“Uma Iansã me saudou: eparrê”) e a protagonista, com tratamento na segunda pessoa.
Os personagens de Gilmar de Carvalho são quase todos distorcidos, como se vistos de um espelho quebrado ou opaco. Além disso, são pequenos, quase microscópicos, sem muita importância no contexto. Um ou outro se sobressai, como Patrícia Chantal. Talvez porque personagem de uma história ou, mais do que isso, protagonista. Em “memory” Luzia é tão pequena que parece personagem secundária de uma historinha. Dividido em três segmentos, o conto teria começo (ludus), meio (parábola) e fim (conclusão), o que não é real. Luzia aparece no segundo segmento e logo desaparece, para dar lugar ao narrador, que não se refere a ela, a não ser no plural: “a gente ouvia sempre”, “ao nosso alcance”, “Nós estamos gastos”, “Somos estátuas”, “Nossa vista”. E esse plural pode até se referir ao todo, à humanidade.
Na parte intitulada “legendas”, que comporta “gesta”, “legenda”, “hollywood”, “as aventuras de carmem miranda” e “sweet hunters”, Gilmar se volta para a História ou para personagens históricos. Na primeira encontram-se Roland, El Cid, Rei Artur, Charlemagne, Ricardo Coração de Leão, Luís IX, a camponesa de Domrémy e outros. É como se o escritor escrevesse legendas de gravuras clássicas, descrevesse fisionomias, indumentárias, espíritos, cenários e compusesse ou narrasse cada uma das “histórias” à sua maneira. Em “legenda” (“Legenda é substantivo abstrato: a revivificação da fantasia”) não há personagem, a não ser o narrador e o outro, o tu: “A fada bondosa me prometeu te conhecer e seduzir.” Em “hollywood” personagens como Marylin Monroe, Carmem Miranda, Darryl Zanuck, Shirley Temple, Jean Harlow, Teda Bara, Carlitos passeiam pelo tempo e o espaço, como simples imagens de “álbuns de colagens”. A cantora reaparece na legenda seguinte: personagem (“servidor federal lotado na farmácia do INPS”) se fantasia de Carmem Miranda, para logo desaparecer de cena e dar lugar à própria artista, sua trajetória, suas relações com Getúlio Vargas etc. Por último os gentis caçadores de “sweet hunters”, as cenas de caça, a pontaria, “morte é passatempo e ludus”, trombetas, alçapões, e um duelo: “Tu escolheste as armas e este lugar”, a cerimônia, o ideal romântico, o ajuste de antigas contas, os padrinhos que verificam as armas. Descrição de um quadro e narração de outra caçada (“Tento te laçar enquanto te refugias em becos e esquinas”), outra busca de posse ou morte (caçador e caça, fera e presa, homem e mulher): “Imagino te possuir, estupro, em qualquer calçada ou em terrenos baldios de subúrbios.”
Talvez a principal característica de Gilmar seja a própria linguagem ou a sua manipulação. Pode-se falar até num jogo de palavras: “mosteiro da paciência”, “confeitado de glacê e conchas”, “A primeira sexta-feira, o segundo sábado, o terceiro domingo, a quarta-feira têxtil agrícola” (“a vida pregressa de patrícia chantal”). Percebe-se o uso do lugar-comum, porém retorcido, reinventado: “clássico (das multidões) da língua vernácula”, “cotação de ações e omissões”, “poema processo civil”, “cores pastéis e sanduíches”, “amor enfim achado e perdido”, “dentes e presas de guerra” (“monástica”). Às vezes o escritor se vale de expressões tornadas clássicas para lhes dar outro significado: “No princípio era o ponto e a perspectiva de retas”, “a luz negra do quinto dos infernos”, “nexo de causa e efeito” (“laudatio”). Observa-se, ainda, o corte incisivo da frase, da oração, com a supressão de verbos: “As línguas de fogo lançadas pelos dragões incontidos pelos jatos d’água sulfurosa” (idem). Ou “McCartney na sala cortinas fechadas” (“gymnástica”).
Descrição de personagem se pode ver com frequência em Pluralia Tantum, como em “a vida pregressa de patrícia chantal”: “Loura celebrada, imaculada de homens em todas as portas” (...); “Vamp/vampiresca e suburbana criatura, pontifica nos anais da polícia e nos bastidores dos teatros de revista marrons amenos.”
Raros são os diálogos neste livro de Gilmar. Mais se assemelham a falas teatrais, como se lê na primeira história (uma das poucas do livro): “Médico – o vento varre as ruas” (...) “Mãe – o rio deve seguir para leste.” Em outro trecho Sogra e Chantal (nora) conversam. As falas são antecedidas de travessões. No entanto, os nomes das personagens só aparecem na primeira fala de cada uma. Os personagens são identificados ou nominados como em peças de teatro.
Muitas vezes o narrador de Gilmar não é propriamente narrador, mas espécie de salmista (“philarmónica”). Outras vezes o narrador fala a outro personagem (oculto), que pode ser visto como protagonista (“termas”). O tratamento dado a este é sempre na segunda pessoa, sem citar nome: “tua virgindade”, “tua solidão”, “teu cansaço”, “tua veste branca”, “tuas formas”, “tua loucura” (idem). O mesmo modo de narrar pode ser encontrado em “dez anos depois”, que tem no desfecho esta fala: “Tu és meu personagem preferido” (...) Em “teodisseia” (teo + odisseia) personagem faz perguntas curtas a um deus ou a uma pitonisa. As respostas soam como narrações, com alguns jogos de palavras e expressões: “O peso argentino líquido e certo”, “rendas per capita tecidas por bilros e fusos horários”.
Como observou Juarez Barroso, nas abas do livro, “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão” (...). Pois fiquemos com esta definição: Gilmar de Carvalho é um compositor de cantos em prosa, de narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos. Um escritor singularíssimo.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Entre os que acreditaram ter concluído sua obra de contista está Gilmar de Carvalho. No entanto, pela singularidade de suas narrativas, não pode ser comparado a nenhum prosador de ficção do Ceará. Não somente porque seus contos são fundados na erudição, seja no latim, no inglês, na História, na Filosofia, na mitologia, na Bíblia etc. Também porque ora escreve como poeta, ora como salmista, ora como ninguém. Juarez Barroso, nas dobras de Pluralia Tantum, diz que a literatura de Gilmar é “uma afirmação de liberdade. Mas ele não fica junto à turma do sereno, ao bloco da contracultura. Formalmente, rejeita o marginalismo artístico, os vanguardismos escandalizantes. Seu estilo é clássico, sua narração, fabular, levemente borgiana. A partir daí ele constrói, ou destrói, ri dos deuses, mais perto de Lúcifer que do Arcanjo São Miguel (afinal de contas, uma figura do establishment), simpatizante dos exus, louvador da pomba-gira, Vênus mestiça e mais sensual, naturalmente”. A seguir se nega chamar de contos os textos de Gilmar. Na verdade, não são contos tradicionais. Em comum com estes apenas o terem títulos, alguns personagens, alguma narração. O resto é bem diferente. Afirma Juarez: “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais de vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão, que tanto trabalho deu ao Senhor com sua rebeldia e sua mania de amor. Amante da vestal romana, consagrada em virgindade ao deus maior, Gilmar, libertário e libertador sofre agora o mesmo castigo de Prometeu. Zeus acorrentou-o ao relógio da Praça do Ferreira, à Coluna da Hora. Que, aliás, não existe mais”.
Publicado em 1973, Pluralia Tantum, de Gilmar de Carvalho, é provavelmente o livro de prosa de ficção mais singular da literatura cearense. Constituída de 41 textos – que poderão ser denominados narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos – a obra inaugural do romancista de Parabelum pareceria alienígena (lato sensu) se posta ao lado dos livros de contos de outros escritores cearenses. Em “composição”, como o título indica, tudo se volta para o compor: “em off-set os jornais”, “manchetes”, “diagramação”, “letras”, “logotipos genéticos”, “tipos móbiles”, “quatro colunas”, “folhinha”, “papel parede”, “sangue dos crimes” (nos jornais), “classificados dos tabloides”. Um dos textos é intitulado “um conto”, como a deixar bem claro que os outros não são contos. Nele há diálogos (com travessão), narração e personagens, embora não identificados. No entanto, “trajetória” é uma narrativa quase linear. Há um enredo, uma cadeia de pequenos fatos, uma história, que podem ser percebidos claramente nos seguintes trechos de frases: “proferem um palavrão”, “uma freada brusca”, “anúncio de Coca-Cola”, “andou”, “apressou o passo”, “cruzou com um desconhecido”, “um bar”, “um velho desenrolava um embrulho”, “precisava chegar logo”, “viu pessoas”, “subiu o primeiro degrau”.
Busque-se em Pluralia Tantum o drama e o leitor encontrará algo entre o conflito e o não-conflito. O tempo é medido como numa roda-gigante, estonteante. O espaço da ação é poucas vezes mencionado ou não tem nenhuma importância: “Já vi e revi os lugares santos e os comuns” (“hollywood”). E os personagens onde estão, quem são? Em algumas composições apenas um “narrador” se mostra, fala: “O rapaz morto sou eu” (...), como se vê em “laudatio”.
Em alguns “contos” de Gilmar não se percebe um enredo claro, mas somente fiapos (frases) de um enredo esgarçado, de um tecido rasgado, esticado, esfiapado (“memory”). Pode-se falar também em enredo diluído (“hermenêutica”).
O latim e a Bíblia são fontes permanentes de enredo nesta obra de Gilmar. O estudo “plvralia tantvm”, que dá título ao volume (com o “v” latino transformado em “u”), é nada mais do que uma explicação de alguns plurais: exéquias, férias, núpcias, alvíssaras, primícias, anais (subtítulos), e a decodificação de uma oração latina. Na parte intitulada “teodiceia”, composta de sete escrituras, os temas bíblicos estão muito presentes. Em “teodisseia” a eles se juntam os mitos de Ulysses, Penélope, Zeus, Posseidon, isto é, a mitologia grega. Contudo, em “genesis” e “exodos” se podem ler reescrituras desses livros. Em “o jardineiro cego” se conta a reinvenção do pecado original, sendo o jardineiro personagem simbólico. Embora não ligado diretamente a temas bíblicos, “gaia scientia” também se constrói sobre a ideologia cristã: o tribunal da inquisição.
Crônicas ou crônicas-poemas podem ser vistas na parte intitulada “minas”. A primeira, “entradas e bandeiras”, é crônica histórica; “minas novas”, “minas novas: porões”, “doroteia” e “o inconfidente” são crônicas-poemas. Outras composições podem ser designadas como verbetes, à falta de outro termo, como na parte “orixás do ceará”. Pois não são contos nem crônicas nem poemas. Nelas há como que um misto de alguns gêneros da prosa de ficção. Em “nanã”, por exemplo, leem-se definições como nos verbetes: “Nanã é dama de antigas cortes” (...); “Nanã é senhora de todas as cachoeiras” (...); “Nanã é força a mover antigas moendas” (...) Entretanto, há um personagem, um narrador: “Nanã me contou histórias” (...). Em “oxossi” aparece a figura de Dom Sebastião, o iluminado. Em “omulu” se pode ler uma lenda ou como narrar uma lenda. “yemanjá” seria uma narração (não uma narrativa). Em “iansã” se vê um narrador (“Uma Iansã me saudou: eparrê”) e a protagonista, com tratamento na segunda pessoa.
Os personagens de Gilmar de Carvalho são quase todos distorcidos, como se vistos de um espelho quebrado ou opaco. Além disso, são pequenos, quase microscópicos, sem muita importância no contexto. Um ou outro se sobressai, como Patrícia Chantal. Talvez porque personagem de uma história ou, mais do que isso, protagonista. Em “memory” Luzia é tão pequena que parece personagem secundária de uma historinha. Dividido em três segmentos, o conto teria começo (ludus), meio (parábola) e fim (conclusão), o que não é real. Luzia aparece no segundo segmento e logo desaparece, para dar lugar ao narrador, que não se refere a ela, a não ser no plural: “a gente ouvia sempre”, “ao nosso alcance”, “Nós estamos gastos”, “Somos estátuas”, “Nossa vista”. E esse plural pode até se referir ao todo, à humanidade.
Na parte intitulada “legendas”, que comporta “gesta”, “legenda”, “hollywood”, “as aventuras de carmem miranda” e “sweet hunters”, Gilmar se volta para a História ou para personagens históricos. Na primeira encontram-se Roland, El Cid, Rei Artur, Charlemagne, Ricardo Coração de Leão, Luís IX, a camponesa de Domrémy e outros. É como se o escritor escrevesse legendas de gravuras clássicas, descrevesse fisionomias, indumentárias, espíritos, cenários e compusesse ou narrasse cada uma das “histórias” à sua maneira. Em “legenda” (“Legenda é substantivo abstrato: a revivificação da fantasia”) não há personagem, a não ser o narrador e o outro, o tu: “A fada bondosa me prometeu te conhecer e seduzir.” Em “hollywood” personagens como Marylin Monroe, Carmem Miranda, Darryl Zanuck, Shirley Temple, Jean Harlow, Teda Bara, Carlitos passeiam pelo tempo e o espaço, como simples imagens de “álbuns de colagens”. A cantora reaparece na legenda seguinte: personagem (“servidor federal lotado na farmácia do INPS”) se fantasia de Carmem Miranda, para logo desaparecer de cena e dar lugar à própria artista, sua trajetória, suas relações com Getúlio Vargas etc. Por último os gentis caçadores de “sweet hunters”, as cenas de caça, a pontaria, “morte é passatempo e ludus”, trombetas, alçapões, e um duelo: “Tu escolheste as armas e este lugar”, a cerimônia, o ideal romântico, o ajuste de antigas contas, os padrinhos que verificam as armas. Descrição de um quadro e narração de outra caçada (“Tento te laçar enquanto te refugias em becos e esquinas”), outra busca de posse ou morte (caçador e caça, fera e presa, homem e mulher): “Imagino te possuir, estupro, em qualquer calçada ou em terrenos baldios de subúrbios.”
Talvez a principal característica de Gilmar seja a própria linguagem ou a sua manipulação. Pode-se falar até num jogo de palavras: “mosteiro da paciência”, “confeitado de glacê e conchas”, “A primeira sexta-feira, o segundo sábado, o terceiro domingo, a quarta-feira têxtil agrícola” (“a vida pregressa de patrícia chantal”). Percebe-se o uso do lugar-comum, porém retorcido, reinventado: “clássico (das multidões) da língua vernácula”, “cotação de ações e omissões”, “poema processo civil”, “cores pastéis e sanduíches”, “amor enfim achado e perdido”, “dentes e presas de guerra” (“monástica”). Às vezes o escritor se vale de expressões tornadas clássicas para lhes dar outro significado: “No princípio era o ponto e a perspectiva de retas”, “a luz negra do quinto dos infernos”, “nexo de causa e efeito” (“laudatio”). Observa-se, ainda, o corte incisivo da frase, da oração, com a supressão de verbos: “As línguas de fogo lançadas pelos dragões incontidos pelos jatos d’água sulfurosa” (idem). Ou “McCartney na sala cortinas fechadas” (“gymnástica”).
Descrição de personagem se pode ver com frequência em Pluralia Tantum, como em “a vida pregressa de patrícia chantal”: “Loura celebrada, imaculada de homens em todas as portas” (...); “Vamp/vampiresca e suburbana criatura, pontifica nos anais da polícia e nos bastidores dos teatros de revista marrons amenos.”
Raros são os diálogos neste livro de Gilmar. Mais se assemelham a falas teatrais, como se lê na primeira história (uma das poucas do livro): “Médico – o vento varre as ruas” (...) “Mãe – o rio deve seguir para leste.” Em outro trecho Sogra e Chantal (nora) conversam. As falas são antecedidas de travessões. No entanto, os nomes das personagens só aparecem na primeira fala de cada uma. Os personagens são identificados ou nominados como em peças de teatro.
Muitas vezes o narrador de Gilmar não é propriamente narrador, mas espécie de salmista (“philarmónica”). Outras vezes o narrador fala a outro personagem (oculto), que pode ser visto como protagonista (“termas”). O tratamento dado a este é sempre na segunda pessoa, sem citar nome: “tua virgindade”, “tua solidão”, “teu cansaço”, “tua veste branca”, “tuas formas”, “tua loucura” (idem). O mesmo modo de narrar pode ser encontrado em “dez anos depois”, que tem no desfecho esta fala: “Tu és meu personagem preferido” (...) Em “teodisseia” (teo + odisseia) personagem faz perguntas curtas a um deus ou a uma pitonisa. As respostas soam como narrações, com alguns jogos de palavras e expressões: “O peso argentino líquido e certo”, “rendas per capita tecidas por bilros e fusos horários”.
Como observou Juarez Barroso, nas abas do livro, “Gilmar não escreve contos. O conto, por mais vanguarda que seja, tem a sua disciplina, sua forma de discurso. Gilmar é um compositor de cantos em prosa, discípulo remoto do Rei Salomão” (...). Pois fiquemos com esta definição: Gilmar de Carvalho é um compositor de cantos em prosa, de narrações (e não narrativas), composições, legendas, escrituras, salmos, hinos, estudos, crônicas, crônicas-poemas, verbetes, lendas e até contos. Um escritor singularíssimo.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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