sábado, 24 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XX


Nilto Maciel (Til Ananias e Seus Policarpos)


Afagado pela língua de um cão, Policarpo misturava nos olhos imagens antigas ao furor do patrão. – Por acaso estais duvidando da fama de Til Ananias, autor de autos e farsas, relações e epopeias, e mil outras maneiras de inventar a vida de sanchos como tu? Como ousas afirmar a negação? Incompetente, cego e maneta, como é possível não me encontrares neste cosmos gutenberguiano?

Policarpo recordava os primeiros passos em busca do afamado autor. Depois, a angústia maior. Na calçada, meninos brincavam, surdos às palmas tímidas e frias. Talvez não houvesse ninguém no casarão do velho Ananias. Batia e escutava o eco das palmas cantadas. E, quando ia bater novas palmas, uma bola de meia atingiu-lhe o rosto. Ao mesmo tempo, um rosto de bola abria meia porta, devagarzinho e assustado.

– Que deseja?

Atarantado, Policarpo não sabia se devia se voltar para os moleques ou fugir daquela voz de mofo e sono. Preferiu fechar os ouvidos às molecagens da rua. E pôs-se a gaguejar. Um escritor muito atarefado, acho que é este o endereço, a cabeça muito cheia de pesadelos, andava perdido no meio das letras de hebdomadários e resenhas, as mãos trôpegas, colunas sociais e linguísticas, necessita de um ledor, digo, de um secretário, ativo, inteligente, que saiba ler as cento e tantas, não sei, línguas faladas e escritas, para recortar o seu nome, deixe ver, Til Ananias, escritor famoso, autor de pasquins e outras inutilidades.

Os moleques ouviram, calados e tristes, a bola esquecida entre as patas de um cão sonolento, o tímido falar de Policarpo.

Quando o sono desembolou-se das patas do cão, os dois senhores entraram a tratar dos detalhes do ofício de recortar periódicos.

Uma hora depois, a mesma fatídica bola de meia molhada acertou a outra face de Policarpo. Mais uma vez nada reclamou. Já contratado, precisava ir logo à banca de jornais.

Ainda aturdido, Policarpo regressou ao casarão. Sobraçava alguns quilos de jornais e revistas. Na calçada, os garotos riam e gargalhavam. Um homenzinho amarelo batia palmas diante do portão de Til Ananias.

– Palmas para o campeão das palmas! – conclamava um dos moleques.

A rua inteira se encheu de sons de palmas. Mulheres de todos os gêneros acorreram às janelas, aflitas. E gritavam: parem com isso!

A porta se abriu e o velho meteu a língua no ouvido esquerdo do novo Policarpo. Não precisava mais do primeiro. Fosse atrás de outro emprego.

– Trouxe o anúncio?

O rapaz estendeu a senha amassada.

– Comece a pesquisa a partir de 31 de março de 1917.

O novo empregado não se assustou, mas teve a ousadia de fazer uma pergunta.

– Porque esta é a data de meu nascimento.

E meteram-se os dois entre os jornais.

– Já encontrou alguma coisa?

– Nada, senhor escritor.

E se enfurnaram tempo a fundo. Til Ananias pelas edições futuras, Policarpo pelas passadas – útero letrado.

– Em que data você está?

– 30 de janeiro de 1945.

De repente, um grito. Policarpo tremeu e parou. Ameaçavam-no garras homicidas de manchetes. Sufocavam-no mãos negras de notícias terríveis. Desmaiou e, inconsciente, se viu caminhando de encontro ao velho escritor.

– Senhor, achei uma mentira.

Til Ananias iniciava o século XXI, carregado de cãs e suores, pendurado num caibro podre.

– Diz que faleceu hoje, vítima de um choque elétrico, o fracassado escritor...

– Continue.

– Til Ananias.

Sufocado pela fumaça que vinha da sala onde estavam depositados os jornais da década de 20, o novo Policarpo acordou. Buscou fugir do passado. O fogo devorava, célere, os anos, reduzindo-os a cinza. Apavorado, o rapaz correu e, pisando as letras, alcançou a rua. Diante de si, o primeiro Policarpo ainda chorava o emprego perdido, alheio aos moleques que gritavam: vamos chamar os bombeiros para apagar a História. E mais gritaram quando viram o milagre acontecer – a fusão dos dois Policarpos.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

José Lucas de Barros (Pantuns)


Nota do blog:
No Pantum as trovas utilizam no primeiro e terceiro verso (negritados), o segundo e quarto verso da trova anterior, iniciando-se na trova-tema. A última trova finaliza com o quarto verso usando o primeiro da trova-tema (negritada em itálico).
 -------------------------------------------------
ECLOSÃO DO AMOR

Trova-tema:
Eu vi o amor eclodindo
na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni)


Na mensagem de um chamado,
Vinha um toque de magia:
O Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.


MULHER FORMOSA

Trova-tema:
Mulher, joia primorosa,
sinal de vida e de amor,
tens o perfume da rosa
e a formosura da flor.
(Djalma Mota)


Sinal de vida e de amor,
tens no ventre feminino,
e a formosura da flor
marca-te o rosto divino.

Tens no ventre feminino
o dom da humana esperança;
marca-te o rosto divino
um sorriso de criança.

O dom da humana esperança,
em ti, é santo reflexo:
Um sorriso de criança.
És, de fato, o belo sexo.

Em ti, é santo reflexo
essa fragrância de rosa.
És, de fato, o belo sexo,
mulher, joia primorosa!


PERSISTÊNCIA NO AMOR

Trova-tema:
Não desista sem tentar,
mesmo se você sofrer;
liberte a alma pra amar,
não deixe esse amor morrer!
(Eva Yanni)


Mesmo se você sofrer,
na estrada longa e dorida,
não deixe esse amor morrer!
Ele faz parte da vida.

Na longa estrada dorida,
só o amor é essencial.
Ele faz parte da vida;

é a luz do bem contra o mal.

Só o amor é essencial
entre os dons que a gente almeja.
É a luz do bem contra o mal,
por mais difícil que seja.

Entre os dons que a gente almeja,
ele é, de fato, sem par...
Por mais difícil que seja,
não desista sem tentar!


VONTADE DE AMAR

Trova-tema:
Gotas de orvalho na mata,
um cheiro de terra no ar,
o branco véu da cascata,
me dá vontade de amar.
(Carmen Pio)


Um cheiro de terra no ar,
depois de uma noite linda,
me dá vontade de amar
como ninguém viu ainda.

Depois de uma noite linda,
a natureza desperta
como ninguém viu ainda...
Nasce o amor na fonte aberta.

A natureza desperta
sob um sol que Deus conduz;
nasce o amor na fonte aberta,
surge um bordado de luz.

Sob um sol que Deus conduz,
a flor do sonho desata;
surge um bordado de luz:
Gotas de orvalho na mata.

 
AMOR INFINITO

Trova-tema:
Tudo é tão encantador,
nosso amor é tão bonito,
“que em cada noite de amor
ultrapassa o infinito”
(Gislaine Canales)

Nosso amor é tão bonito!
Até nos leva a cantar...
Ultrapassa o infinito
nossa vontade de amar.

Até nos leva a cantar
baladas e cavatinas...
Nossa vontade de amar
vem das paragens divinas.

Baladas e cavatinas,
canto para ti, querida;
vem das paragens divinas,
nos ternos sonhos da vida.

Canto para ti, querida,
meus versos de trovador...
Nos ternos sonhos da vida,
tudo é tão encantador!


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Almoço)


A mulher prevenira: domingo não haveria almoço. Era dia de folga da copeira, a cozinheira pedira para sair cedo: queria passar o aniversário do filho em Niterói. O casal tinha de almoçar fora. E depois, você sabe, sem feijão, sem açúcar, sem nada, o melhor é mesmo deixar o fogão em paz.

— Está bem, almoçaremos fora. Ótimo.

Quando chegou domingo, chegou também a preguiça, em forma de pijama, jornalada para ler, disco novo para botar na vitrola, e esse frio… Ele tentou fugir ao compromisso.

— Faz aí uns sanduíches, qualquer coisa para enganar a fome.

— Que qualquer coisa, filhinho? Não tem nada na geladeira, e além disso você me prometeu.

Ela não disse “você concordou”, disse “você me prometeu”, e só então ele sentiu como aquele almoço fora de portas quebrava a rotina ajantarada, era uma novidade, não uma contingência.

Saíram à procura de restaurante. O hábito de não sair de casa para comer tornava-os indecisos na escolha. Nem havia mesmo como escolher. Tudo cheio, o bairro inteiro despencara-se para a rua, na fome incoercível, universal, dos domingos.

Afinal, no salão repleto, defenderam a mesa que uma senhora deixara. Ele, com complexo de velhice, avaliava satisfeito a média de idade dos clientes.

— Estou me sentindo à vontade. Gente de cinquenta para cima.

Ela protestou:

— Não viu aqueles brotos?

— Minoria. Repare na discrição do pessoal, na roupa, nas maneiras. Até gravatas.

O garçom era atencioso, você sabia que ainda há garçons atenciosos? E a toalha alva, a flor natural no vaso, tudo era bom, limpo, cortês. Sentiam-se mais moços por dentro, num Rio também mais moço — ou mais antigo? — de antes de outubro de 1930.

Ela observou:

— Aquela senhora ali deve ser desquitada. Com certeza o garoto saiu do colégio para passar o fim de semana com ela. Repara como trata o menino, alisa os cabelos dele. E ele quase não liga.

Ele, por sua vez:

— Estão bebendo champanha na mesa da direita.

Aniversário pessoal, ou de casamento? O certo é que muitas pessoas, em mesas diferentes, brandiam sua champanhota, faziam brindes em tom menor.

Ele assanhou-se:

— Vou pedir para nós também.

— Calma, rapaz. Espere as bodas de ouro.

Nisso a orquestra, a boa orquestra romântica dos restaurantes da velha guarda, atacou “Parabéns pra você” e, logo depois, “Cidade maravilhosa”.

Houve palmas.

À sobremesa, antes que ele pedisse, o garçom trouxe a garrafa e as taças.

— A casa pede licença para oferecer. Em comemoração ao aniversário da firma.

Os dois entreolharam-se, feito menino que ganhou bala, e desejaram felicidades à firma. Com uma reserva, do lado feminino:

— Vai ver que é nacional.

— Francês — concluiu o lado masculino, degustando; a casa tem tradição.

— Vai ver que a nota será aumentada, para pagar a cortesia…

— Ó mulher de pouca fé, que duvidas dos outros como de teu marido!

A nota não trazia qualquer majoração, era a honestidade mesma. Os dois saíram rindo, sob a impressão de que voltara o reino da boa vontade na terra. E decididos a, todo ano, almoçarem aquele dia naquele restaurante.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Carolina Ramos (Ser Emília... )



Ah! Lobato, bom amigo,
que minha infância enfeitaste...
Os caminhos que hoje sigo,
sem querer, delineaste!

Eu já fui menina arteira,
que brincava com boneca.
“Narizinho” reinadeira,
cheia de sonhos!... Moleca!

Tal qual “Pedrinho”, eu, também,
pelos campos cavalgava!
Sem caçadas!... sou do bem...
E amiga da bicharada!

Sem “Pó de Pirlimpimpim”,
fiz muita viagem gostosa!
Do saber, ao vê-lo afim,
conquistou-me o “Sabugosa”!

Lobato, só coisa linda,
de ti me veio, portanto,
guardo, com ternura infinda,
saudades por todo canto!

E tive um Príncipe, sim!
Lindo “Príncipe Encantado”!
Hoje... tão longe de mim...
Para os céus arrebatado...

Já fritei muitos bolinhos,
como “Anastácia” fazia...
E rodeada de netinhos,
agora, com alegria,

sou qual feliz “Dona Benta”,
entre anjos vindos do céu,
mas... a paz...nenhum alenta,
ao correr de déu-em-déu!...

Lobato... Os teus personagens,
Rabicó, a Cuca, o Anjinho,
a Emília a contar vantagens...
floriram o meu caminho!

E ao ver seres perturbando
os rumos da Pátria nossa, 
tal qual Saci “sacizando”,
lembro os Sacis lá da roça!

Os daqui...duas pernas têm...
os da roça têm só uma! 
Mas diabruras de ambos vêm,
e ...coisa boa? - Nenhuma!

Ah!... queria ser agora
essa Emília irreverente!
- Bonequinha que não chora,
mas...pensa... E diz o que sente!

Fonte:
Versos enviados pela autora.

22 de Agosto: Dia do Folclore


O Dia do Folclore é celebrado internacionalmente (inclusive no Brasil) no dia 22 de agosto. Isso porque nessa mesma data, no ano de 1846, a palavra “folklore” (em inglês) foi inventada. O autor do termo foi o escritor inglês William John Thoms, que fez a junção de “folk” (povo, popular) com “lore” (cultura, saber) para definir os fenômenos culturais típicos das culturas populares tradicionais de cada nação. O significado da palavra, segundo seu criador, era “saber tradicional de um povo”.

Sabemos que o folclore, ou cultura popular, tem despertado grande interesse de pesquisadores de todo o mundo desde o século XIX. É fundamental para um país conhecer as raízes de suas tradições populares e analisá-las, assim como as de caráter erudito. Os grandes folcloristas encarregam-se de registrar contos, lendas, anedotas, músicas, danças, vestuários, comidas típicas e tudo o mais que define a cultura popular.

No Brasil, o Dia do Folclore foi oficializado em 17 de agosto de 1965 por meio do Decreto nº 56.747, assinado pelo então presidente militar Humberto de Alencar Castello Branco e por seu Ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda. No texto do decreto, há referência direta a William John Thoms e ao seu pioneirismo na pesquisa das culturas populares.

Restrito a três artigos, o conteúdo do decreto determina o ensino do folclore como sendo de importância fundamental para a cultura do país, como pode ser visto a seguir:

Art. 1º Será celebrado anualmente, a 22 de agosto, em todo o território nacional, o Dia do Folclore.

Art. 2º A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro do Ministério da Educação e Cultura e a Comissão Nacional do Folclore do Instituto Brasileiro da Educação, Ciência e Cultura e respectivas entidades estaduais deverão comemorar o Dia do Folclore e associarem-se a promoções de iniciativa oficial ou privada, estimulando ainda, nos estabelecimentos de curso primário, médio e superior, as celebrações que realcem a importância do folclore na formação cultural do país.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.

Brasília, 17 de agosto de 1965; 144º da Independência e 77º da República.

O Dia do Folclore foi criado, portanto, com o objetivo de garantir a preservação do acervo que forma o folclore brasileiro e também de incentivar os estudos na área. Atualmente, o folclore brasileiro é um importante objeto de estudo nas ciências humanas, e sua importância é reforçada frequentemente nas escolas, sobretudo naquelas que trabalham com ensino infantil.

No Dia do Folclore, costuma-se relembrar os elementos mais importante da cultura popular brasileira, tais como as danças, os ritmos, as festas e os personagens do nosso folclore. Nas danças e ritmos, podem ser citados o frevo, o maracatu, o baião, o forró, a catira etc. Nas festas, costuma-se lembrar a Festa Junina, talvez a principal festa popular do Brasil.

Entre os personagens, estão inseridas as lendas tradicionais de nosso país. As principais lendas são a do saci e do curupira, mas outros personagens importantes do nosso folclore são: a Iara, o boto cor-de-rosa, a mula sem cabeça, o boitatá, o negrinho do pastoreio, entre outros.

O folclore na literatura brasileira

Muitos escritores extraem do folclore a base de sua obra. É o caso, no Brasil, do paraibano Ariano Suassuna e do paulista Monteiro Lobato, por exemplo. Entre os folcloristas brasileiros, os mais notáveis são Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. Desse último partiu a realização do Dicionário do Folclore Brasileiro, uma obra de referência que é responsável por manter viva a cultura popular das várias regiões do Brasil.

O folclore brasileiro é de uma riqueza notável, e isso foi resultado da influência de culturas de diferentes povos indígenas, de diferentes povos africanos e dos europeus, sobretudo dos portugueses. Essa riqueza de histórias, práticas e crendices do nosso folclore começou a ser estudada de maneira organizada a partir do século XIX e hoje é uma importante área vinculada com as ciências sociais e a antropologia.

O crescimento do estudo do folclore no Brasil esteve diretamente relacionado com o crescimento da importância dessa área do conhecimento na Europa e na América do Norte na mesma época. Importantes nomes, como os mencionados Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo, realizaram grandes contribuições para essa área.

Os avanços que aconteceram no estudo do folclore brasileiro nas primeiras décadas do século XX levaram à realização do I Congresso Brasileiro de Folclore, no Rio de Janeiro, em 1951. Lá foi emitido um documento, chamado Carta do Folclore Brasileiro, que serviu de base para guiar os estudos da área nas décadas seguintes. Por meio desse documento, definiu-se o que é “fato folclórico”, isto é, os elementos que integram o nosso folclore foram definidos.

Em 1995, durante o VIII Congresso Brasileiro de Folclore, realizado dessa vez em Salvador, os especialistas chegaram a novas conclusões a respeito de questões relativas ao nosso folclore. Um novo documento foi emitido com atualizações importantes, as quais norteiam os estudos atuais sobre o folclore brasileiro.

O folclore brasileiro também tem espaço na Constituição Federal, promulgada em 1988. Os artigos 215 e 216 garantem o direito a todos os brasileiros de exercerem manifestações culturais e definem que a cultura popular brasileira deve ser incentivada e que a sua preservação deve ser defendida.

Fonte:
SILVA, Daniel Neves. "22 de agosto - Dia do Folclore"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-folclore.htm. Acesso em 23 de agosto de 2019.

Antonio Carlos de Barros (O Dia a Dia do Tropeiro)


A vida diária na época das Tropeadas não era nada fácil. Esses caminhos que ligavam o Rio Grande do Sul até Sorocaba eram por demais precários, os obstáculos encontrados durante as viagens, terríveis, as armadilhas diárias, os animais ferozes, as tocaias* armadas por foragidos da justiça, muitas vezes violentas, pois esses se escondiam nas matas à espera dos Tropeiros, e às vezes também com os índios. 

Pelos caminhos naturais
Espaços abertos pelas patas da gadaria,
Varando sertões, atravessando ravinas*.
Trilhas estreitas e perigosas
Vadeando* rios, com água na cola*. 
A tropa segue lenta e silenciosa.
(Antonio Carlos de Barros)

Todos esses elementos se constituíam em grandes ameaças aos Tropeiros. Pois era de conhecimento geral, que os Tropeiros carregavam consigo quantias consideráveis de dinheiro para custearem as viagens. Por isso e por garantia da própria vida e pelo bem da tropa, os Tropeiros andavam sempre muito bem armados e nos pousos organizavam um sistema de rondas principalmente as noturnas, para garantia e segurança da tropa e dos Tropeiros.

E quantos não ficaram
Pelos caminhos atirados
Esquecidos entre as flechilhas*
Talvez seus corpos descansem
Nas infinitas campanhas*
Pastoreando na eternidade das coxilhas*.
(Antonio Carlos de Barros)

Apesar das imensas dificuldades encontradas pelos tangedores de tropas e de todo cuidado tomado para que essa tropeada fosse concretizada com o mínimo de perdas, havia uma organização básica para a realização e condução da tropa. Assim se constituíam algumas funções básicas, até rotineiras, para botar uma tropa na estrada:

1 – O Capataz 
Era o indivíduo que tomava as decisões mais importantes. É o primeiro que se levanta para dar as ordens e o último que se deita, para ver se foram cumpridas.  Acima dele só o Patrão mesmo. Era uma pessoa que, nas lides pastoris, é incumbida de chefiar e de contratar os peões para cuidar a tropa, administrar os gastos durante o percurso da viagem, entregar os muares ao proprietário quando já vendidos ou negociar a tropa com compradores quando esta não havia sido ainda negociada.

2 – O Batedor 
Tinha como função de verificar as condições dos caminhos, o estado dos passos, onde o rio dava vau, manter os primeiros contatos com os habitantes dos vilarejos para tratar da forma como passaria a tropa. Era o Batedor também que mantinha contato com autoridades fiscais, apresentando as guias para recolhimento dos impostos devidos. 

3 – O Madrinheiro 
Era a pessoa que cavalgava a égua madrinha, seguindo na frente da tropa, para regular a marcha da mesma. Detalhe era que o Tropeiro de muares não utilizava berrante, era utilizado do cincerro* que ia pendurado por uma tira de couro preso ao pescoço da égua madrinha. 

Bate o cincerro da égua madrinha, vai madrinheiro
Trezentas mulas, léguas e léguas pra percorrer
Mais meio dia tamo no passo do sem entreveiro*
Que o vento é norte e este não nega que vai chover.
(Elson Lemos / Paullo Costa)

4 – O Cozinheiro ou Arranchador 
Era a pessoa responsável pela preparação das refeições. Viajava sempre a frente das tropas, com as mulas domesticadas, encilhadas e preparadas para carregarem as bruacas. Dentro das bruacas eram acondicionados os mantimentos, como: charque, arroz, feijão, banha, sal, açúcar, erva mate, farinha de mandioca, rapadura e às vezes biscoitos caseiros. Esporadicamente alguma caça, ou um gado chimarrão que abatido, dava um grande e saboroso churrasco para a peonada. 

Farinha e charque vão na canoa pra que não molhe
Mulada na água, uma arco de orelhas cruza o (rio) Uruguai
Vamos domando pelo caminho algum que se escolhe
Pois mula mansa vendo picado*, vale bem mais.
(Elson Lemos / Paullo Costa)

5 – O Contador 
Era a pessoa responsável pela contagem da tropa. Essa pessoa era contratada quando se tratava de grandes quantidades de animais. Uma tropa grande necessitava e muito do Contador, pois a contagem muitas vezes era realizada até três vezes ao dia, logo de manhã, antes da saída da tropa, ao meio dia e a tarde antes do pouso. O seu instrumento de trabalho era a Talha* ou também conhecido por Tarca* aqui na fronteira, e dependendo do número de animais, se dava o valor para cada tento. O comum aqui pela Fronteira é que cada tento se equivale a 50 animais. Então cada 50 animais que passavam a sua frente O Contador gritava: TALHA ou TARCA. Se existir sobra, diz-se sobretalha. Exemplificando: 10 Talhas e 8 sobretalhas é equivalente a 508 animais. E quando constatada a falta de animais, aí a tarefa era passada para o Arribador.

6 – Arribador 
Era uma das funções mais respeitadas entre os Tropeiros. A função consistia em procurar e resgatar animais extraviados e devolvendo-os à tropa. Ele se posicionava sempre na culatra da tropa, para se fosse o caso, sair no encalço ou em perseguição do animal. Muitas vezes demorava até uma semana para esse resgate, então era comum o Arribador levar em sua mala de garupa*, um naco de charque, farinha de mandioca para se alimentar. 

Foi certa feita numa arribada fiquei três dias
Atrás de uma mula, flor de matreira que foi-se a grota
Dos campos novos agarrou o rumo direito a casa
Achei pastando pelas barrancas do Rio Pelotas

Pelos caminhos muitas cidades marcam passagem
Das grandes tropas que plantaram lumes nas serranias
Esses Birivas deixam um legado: Raça e coragem
Tropeando sonhos, rumos pra aurora dos nossos dias.
(Elson Lemos / Paullo Costa) 

veja vídeo em: https://www.youtube.com/watch?v=Rd1VECS-8Vs
____________________________________________
GLOSSÁRIO:
- Campanha – Zona de campo, interior do Município, apropriado para criação do gado.
- Cincerro – é uma campainha grande que se pendura ao pescoço da égua madrinha, e cujo som os outros animais se habituam, mantendo-se sempre reunidos. (igual ao sino com badalo).
- Cola – rabo do animal.
- Coxilhas – grandes extensões onduladas de campinas cobertas de pastagem.
- Entreveiro ou Entrevero – mistura, confusão de pessoas ou animais.
- Flechilhas – grama ou capim muito comum, e de superior qualidade para criação de gado. Existentes em várias zonas do Rio Grande do Sul.
- Grota – gruta, vale profundo.
- Lumes – luz, fogo, fogueira.
- Mala de Garupa – também conhecido como alforje, pequeno saco feito de couro ou tecido, com uma abertura longitudinal no centro.
- Matreira – animal arisco, difícil de lidar.
- Picado – vender picado era quando o Tropeiro não conseguia vender a tropa na Feira de Sorocaba, daí para não ter um grande prejuízo, ele vendia por unidades ou em pequenos lotes. Daí surge o ditado: Picando a mula. Quer dizer, ir vendendo em unidades ou pequenos lotes e voltando para a casa.
- Ravinas – sulco formado pelo trabalho erosivo do curso da água.
- Talha ou Tarca – era o instrumento do Contador, feito de couro ou de madeira, utilizado na contagem de animais.
- Tocaia – espera, emboscada.
- Vadeando – atravessar o rio pelas partes mais rasas.
- Vau – lugar raso do rio onde se pode transitar a pé ou a cavalo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 62

 

Troféu Lilinha Fernandes (Arlindo Hagen e A. A. de Assis mais uma vez no pódio)

 
Durante os Jogos Florais de Porto Alegre 2019, a serem realizados de 25 a 27 de outubro, será entregue o Troféu Lilinha Fernandes aos trovadores Arlindo Tadeu Hagen (2017) e A. A. de Assis (2018). 

O precioso prêmio, promovido pela União Brasileira dos Trovadores de Porto Alegre, é geralmente conhecido como “Oscar da Trova”, porque contempla o trovador mais premiado em todo o Brasil no ano anterior. A entrega é feita a cada dois anos na capital gaúcha. Hagen subirá ao pódio pela segunda vez; Assis pela sexta vez. 

O nome do troféu é uma homenagem à saudosa trovadora carioca Lilinha Fernandes, que recebeu o título de “Rainha da Trova” e foi uma das principais colaboradoras de Luiz Otávio na projeção da trova como obra de arte literária. 

Instituído em 1988, o Troféu Lilinha já teve até hoje os seguintes ganhadores:

1988 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
1989 – Waldir Neves (Rio de Janeiro)
1990 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
1991 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
1992 – João Freire Filho (Rio de Janeiro)
1993 – Sérgio Bernardo (Nova Friburgo)
1994 – Izo Goldman (São Paulo)
1995 – Sérgio Bernardo (NovaFriburgo)
1996 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
1997 – Sérgio Bernardo (Nova Friburgo)
1998 – Heloísa Zanconatto (Juiz de Fora)
1999 – Heloísa Zanconatto (Juiz de Fora)
2000 – Therezinha Brisolla (São Paulo)
2001 – José Tavares de Lima (Juiz de Fora)
2002 – Izo Goldman (São Paulo)
2003 – A. A. de Assis (Maringá) e Izo Goldman (São Paulo)
2004 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
2005 – José Tavares de Lima (Juiz de Fora)
2006 – A. A. de Assis (Maringá)
2007 – Marina Bruna (São Paulo)
2008 – Neide Rocha Portugal (Bandeirantes)
2009 – Marina Bruna (São Paulo) 
2010 – A. A. de Assis (Maringá) 
2011 – Edmar Japiassú Maia (Nova Friburgo)
2012 –Therezinha Brisolla (São Paulo)
2013 –A. A. de Assis (Maringá)
2014 –Wanda de Paula Mourthé (Belo Horizonte)
2015 –Arlindo Tadeu Hagen (Belo Horizonte) 
2016 –A. A. de Assis (Maringá)
2017 –Arlindo Tadeu Hagen (Belo Horizonte
2018 –A. A. de Assis (Maringá)

Fonte:
Texto enviado por A. A. de Assis 

João do Rio (A Sensação do Passado)


Estávamos a conversar no gabinete de Jorge Praxedes. Era um fim de tarde prolongado por um lindo e maravilhoso ocaso. Jorge oferecia chá em xícaras de porcelana da Pérsia; havia largos divãs sonhadores entre as mesas atulhadas de bugigangas de arte, e naturalmente, a atmosfera, o tabaco turco, o chá, tudo isso nos dava a lombeira[1] das recordações e o desejo de fazer frases. Já tínhamos falado do amor, da vertigem do tempo, do galope da existência e de outras coisas novas.

— É curioso, disse um da roda, nós os homens modernos não temos a sensação do passado, do não sentido, do total alheamento que o passado devia dar. As dores, as alegrias, as modas ficam na memória como coisas presentes que se afastaram. Para um homem que vive a vida intensa não há propriamente passado, há um acumulador que não dá a impressão especial do antigo, do acabado, do que não volta mais e há muito tempo terminou.

— Paradoxo!

— É fato. Como homem as minhas amantes mesmo mortas vivem todas na minha memória como se estivessem ali, por trás do paravento[2]; como artista nunca me foi possível ter a impressão do extinto diante de uma estátua grega, a ouvir um trecho de música clássica, a ver uma linda tela antiga.

Houve um prudente silêncio, e todos olhavam prudentemente as janelas, quando o barão Belfort, que tocava um pouco distante um vago Schumann num piano meio desafinado por falta de uso, exclamou:

— Como tem você razão! Os grandes sentimentos e as grandes emoções são sempre os mesmos. Por isso, os homens guardam na história o mesmo fenômeno de memória da sua vida interna, lembram-se mais de fatos do tempo de infância do que do tempo de ontem. Como artistas, neste torvelinho moderno em que a beleza desapareceu, só o que é medíocre, muito medíocre, dá a sensação do passado, mesmo que seja de ontem. Diante da Vitória de Samotrácia no Louvre é impossível deixar de ter o enebriamento do triunfo diante daquele bloco de pedra ardente que parece arrastar as embaterias[3] da conquista, e anima os nossos nervos de hoje como animaria os dos helenos. A vista da delicadeza pré-angelical de uma cabeça de Murilo, o nosso amor pela beleza vibra como vibrava o dos contemporâneos do grande artista. Que digo! Diante dos simples pedaços de pedra apanhados nas escavações do Egito nós sentimos a vida porque eles sabiam reproduzir a feição eterna da Vida. Um homem moderno não se admira do progresso porque o presente não sente o passado porque o guarda no próprio plasma.

— Grande fantasista.

— Repito, só a mediocridade, a “camelote”[4] pode dar a sensação do bem velho, do velho quase incompreensível para nós, do velho antipático, do velho repugnante, do passado integral. E para isso bastam dois anos. Eu apalpo as opiniões, o afinamento nervoso dos homens, nas pequenas coisas, nas emoções dos sentidos. Qual dos senhores que amam perfumes sente a velhice da essência de rosas? É dos mais velhos perfumes do mundo e é divino e sempre da nossa alma. Qual dos senhores será capaz de usar, sem se sentir fora da moda, fora do tempo, um perfume lançado por qualquer fabricante francês com grande espalhafato e grande êxito há vinte anos, o “ Jockey Clube” por exemplo? Ao ouvir uma sinfonia de Mozart, sentindo a cada passagem uma sugestão aos sentimentos eternos, ninguém achará essa música velha. Ao ouvir uma valsa de 1870, cada um de vocês tratará de fugir...

A roda riu desabaladamente. O barão, levantou-se do piano, um pouco animado.

— Mas é um fato. Só as coisas absolutamente insignificantes dão a sensação do passado. Eu já tive essa sensação, não solitariamente, como me aconteceria cheirando um frasco de perfume da ex-moda, mas num salão de baile, num dia de baile. E até jamais esquecerei a sensação porque vi, olhei, encarei e sofri o miserável passado com toda a sua imensa insignificância.

Como André de Belfort contava sempre coisas interessantes, os cavalheiros presentes aguçaram a atenção.

— Nunca pensei, meus amigos, que fosse tão simples e tão doloroso. Eu que saía dos museus de indumentária da Idade Média com ensinamento de arte e a alma renascida, eu que vibrara diante dos frescos de Botticeli como diante da revelação para o futuro, fiquei aniquilado.

Há cerca de três anos, fui convidado para um baile nas Laranjeiras. Não era um sarau super-elegante, absolutamente fashion... Aqueles senhores dançavam ao som de um piano. Havia, entretanto, casacas, algumas notabilidades literárias e científicas arrumadas na saleta de fumar, um farto serviço de buffet, a elegância das mulheres, das moças vestidas de tecidos leves, a adejar a gracilidade suave dos gestos. O dono da casa recebeu-me com as reverências com que receberia um bonzo. As moças olharam-me curiosamente, os valsistas ergueram os olhos, as matronas indagaram o meu nome e eu fui conduzido ao fumoir, onde murchavam cinco ou seis glórias urbanas. Nesta sala estava o piano, o piano torturador. Um mulato de pastinhas[5], com os colarinhos altíssimos e o jeito pernóstico de levantar o dedo mínimo onde fuzilava um solitário, dirigia a caravana das notas, radiante como um deus e suado como uma caldeira. De vez em quando, chegavam rapazes com vozes súplices:

— Firmino, agora, aquela tua polca.

— Qual delas? interrogava o pianista com a fronte de orango camarinhada de suor.

— Aquela muito bonita, aquela mole...

E, ali mesmo, baixinho, trauteavam compassos.

— Tocas?

— Pois não.

Por esta apreensibilidade de motivos musicais, percebi estar diante de um desses pianistas da moda, peculiares à nossa sociedade, homenzinhos que vivem de escrever, com alguns erros e muitas aclamações, polcas, valsas e outros sons dançantes. Os jornais anunciavam mensalmente, havia dois anos, novas composições suas, e, como um decreto, o seu nome triunfava nos salões modestos.

A vaidade enlouquecera-o quase. O Firmino tinha a certeza de estar no galarim[6] e, tocando, acompanhava com os ombros e a cabeça o balanço langoroso dos compassos, de olho aberto, beiço revirado, tal qual um gênio inebriado com a própria revelação.

Talvez o fosse. Há gênios para tudo.

Eu ficara depositado numa rocking[7], ouvindo o Firmino e um velho químico, professor de Faculdade, o dr. Hortêncio Guedes. O dr. Hortêncio falava mal do próximo, de modo que o Firmino não me escapava, dada a minha natural reserva de responder com monossílabos quando se ataca a vida alheia.

O pianista era, de resto, curiosíssimo. À roda do piano havia três ou quatro indivíduos hipnotizados pela sua virtuosidade. De vez em quando, um rancho de moças, escoltadas por cavalheiros, invadia a saleta para lhe fazer o pedido de uma composição comovente, e o Firmino logo esticava mais os dedos, erguia a cabeça ao teto, fingindo-se em pleno sonho, para ter um sobressalto, curvar-se, dizer:

— Minhas senhoras...

Então, todas falavam a um tempo

-— Firmino, toca a Estrela d’alva.

— Não! Antes a Irresistível...

— Silêncio! Firmino, mlle. Abigail deseja aquela tua valsa... aquela muito dançante. Como se chama, mlle.?

— Lolita.

— É isso, a Lolita.

O pianista lambia os beiços.

— Ah! v. exa. gosta da Lolita ? Um poucochinho velha, tem seis meses.

— Mas é tão bonita!

— Muito obrigado.

E, mais suado, com o lenço entre o pescoço e o colarinho a desabar, o pianista sacudia no piano os saracoteios da valsa. Não sei, meus senhores, qual a vossa impressão ouvindo esse gênero musical. Eu, francamente, sentia-me moço, com vontade de dar à perna, tamborilando nos braços da cadeira, gostando. Aqueles sons eram do meu tempo.

De repente, porém, quando o relógio batia uma hora, o Firmino parou bruscamente, pôs a mão no queixo.

— Não posso mais!

Logo acudiram rapazes, o dono da casa, senhoras. Era a desgraça. A nevralgia, a terrível nevralgia do Firmino rebentara. A notabilidade passava o lenço da fronte ao queixo numa ânsia raivosa. Havia dor de dentes e, principalmente, a dor de não poder continuar a ser o ídolo do grupo. As meninas, cheias de carinho, já tinham ido buscar cocaína, um palito, algodão; um dançarino trouxera o espelhinho do toucador:

— Põe isso, Firmino, a ver se passa.

— Qual! não passa... chorava o artista. E, subitamente, desapareceu da sala, arrastando os dançarinos.

Durante dez minutos o dr. Hortêncio tomou sorvete e absorveu as atenções. Eu já estava enfastiado, quando o anfitrião surgiu:

— Ora esta! E que tal, hein? Uma festa que ia correndo tão bem! Logo hoje o sr. Firmino dá para ter dores de dentes. Estraga-me a noite!

Atrás do anfitrião vinham a pouco e pouco surgindo os convidados e o interesse de gozar a noite aumentava o ódio contra o pianista, como se ele tivesse a nevralgia só para os desgostar. Aquilo não passa! É um mulato de maus dentes! E agora? Sim, e agora? Que se há de fazer? D. Julieta toca? D. Julieta era tímida e ainda estava estudando. Ninguém tocava, ninguém sabia o que fazer? E tudo por causa desse Firmino...

Um dos rapazes, que usava lunetas e parecia muito brincalhão, propôs o suicídio geral, um holocausto a Terpsychore[8] e, para dar o exemplo, atirou-se à janela. Mas voltou de lá, em pontas de pé, a face feliz, pedindo silêncio

— Meus senhores, está tudo resolvido. Descobri um pianista! Agarrei o impossível!

Todos, num ímpeto, indagaram onde o guardava

— Ali, em baixo, na rua, vendo o baile. É o Prates. O Prates, há vinte e cinco anos, era o Firmino de hoje. Morreu-lhe a mulher, foi para uma fazenda, não sei. O fato é que, quando voltou, já outros lhe tinham tomado o lugar. O Prates anda por aí furioso contra os rivais, e passa as noites assistindo aos bailes como convidado do sereno. Não perdeu o hábito, coitado! Era a sua atmosfera... De manhã lê os cumprimentos dos jornais e à noite espia os saraus. Original. Lá está ele. É aquele gorducho, de cavaignac branco, com um ar de agente de polícia aposentado.

— Que romântico! fez o Dr. Hortêncio, e todos nós fomos à janela, sutilmente, espiar a rua negra, onde, com um cavaignac branco estava o caso esquisito.

O mocinho indagou do anfitrião:

— V. ex. permite que o vá chamar?

— Sei lá! se os senhores quiserem.

         — É velho, clamou alguém.

— Que tem isso? indagou facundamente[9] o Dr. Hortêncio. Então, se ali embaixo estivessem Beethoven, Schumann, Mozart ou outros luminares da música, nós não os deixaríamos entrar!

Aquele argumento pareceu decisivo, apesar de estarmos convencidos de que se Beethoven e os outros luminares aparecessem, teriam que ficar na calçada e sem abrigo.

O jovem partira, entretanto, e minutos depois entrava na sala conduzindo um homem ventrudo que tinha um cavaignac de bode branco e rolava o chapéu nas mãos.

— Meus senhores, o pianista Prates, que teve a bondade de aceitar o nosso convite.

— Eu passava na ocasião, murmurava o homem, achei linda a festa...

Um bando de dançarinos já o envolvia, oferecendo-lhe licores, tirando-lhe o chapéu, sentando-o ao piano.

— Vai tocar alguma coisa?

— Quem estava aqui?

— Nós todos.

— Pareceu-me ouvir as composições do Sr. Firmino... Abancou, correu uma escala do piano. Hein? Que era aquilo? Era uma outra escala, uma escala estranha.

— Bem, vou tocar uma valsa.

— Bem moderna, Sr. Prates; uma valsa dançante.

— Sim, sim...

         Os pares voltaram todos ao salão. Prates pareceu recordar; atacou um acorde, depois outro, e os primeiros compassos ecoaram. Um vago mal estar pareceu, de repente, estreitar a sala. Que coisas cômicas, que coisas grotescas, que coisas estúpidas, essas notas de piano sugestionavam à gente !... A sensação do passado enraivece sempre. Os convidados estavam irritados como se fossem recebendo uma longa humilhação. Eu tinha vontade de rir e ao mesmo tempo de destruir, de quebrar o piano. Na sala, as meninas largaram os pares desanimadas; moças nervosas sentavam-se aos cantos e era uma crescente exclamação de desprazer.

— Qual ! Não é possível! Ninguém compreende isso! Para! Afinal, um, mais ousado, aproximou-se do piano:

— Ó Prates, toca qualquer coisa de mais novo.

Uma voz rouca respondeu:

— Hein? não estão gostando?

— Muito, não. Vê se nos dá a Valse Bleu.

— A Bleu? Ah! Essa não conheço. Parou, fitou um instante a parede fronteira, correu a mão pelo teclado:

— Vou tocar um dos meus sucessos.

Eu olhava-o como se olha um monstro, um trambolho que é preciso destruir e ele estatelava nas sete oitavas uma espécie de belchior melódico, tendo tudo, desde o Seu soldado não me prenda até os compassos do tempo em que o Furtado Coelho intitulava as valsas de homenagens e as meninas dançavam a Flor de neve, a Flor de baile, a Feíticeirinha e a Varsoviana.

Eu nunca vira coisa tão assustadoramente horrenda. Era como se, de súbito, saltasse ao salão uma velha horrível, remexendo molemente as pernas bambas. A mixórdia espoucava como um rebate devastador. Os tais sons dançantes eram impossíveis de dançar. Por mais desejos, por mais esforços que fizessem os dançarinos hábeis no “ boston” e nas “ americanas” , eram incapazes de fazer duas voltas sem errar, sem se encontrarem, sem desanimar. Dançar com aquela música tornava-se um tormento superior para os mais alegres. E ele, feliz, com o cavaignac pendente, num gozo infinito, corria os dedos, evocando recordações, o Prates de outrora, que dirigia os salões, o Prates querido, o Prates animado no turbilhão das valsas, enquanto cada um de nós sentia o acostar de um espectro, o esmagamento com o dia de ontem, uma impressão de bolor, de umidade, de ridículo...

No salão o gás silvava só, e as janelas abriam num largo bocejo para a escuridão da noite. O pianista chegava ao fim em dificuldades, de mãos cruzadas no teclado, empinando o cavaignac, glorioso, ébrio de satisfação. De repente, parou, olhou para todos os lados, sem ver, limpou o suor das fontes, abriu a boca num sorriso alvar.

Não havia ninguém.

Já muita vez, com certeza, lhe acontecera aquilo, na sua peregrinação melancólica.

Prates ergueu-se pálido, tão pálido que eu pensei vê-lo cair com uma vertigem; pegou do chapéu, apertou o lenço na boca barbuda, como afogando um soluço e saiu vagarosamente. Dentro batiam os cristas da ceia...

Foi esta a única vez que eu tive a sensação do passado.
_______________________
Notas:
[1] Moleza. Sonolência.
[2] Biombos.
[3] Esbarrão. Encontro violento ou brusco entre dois objetos. Choque.
[4] Bugiganga. Quinquilharia. Mercadoria de baixa qualidade. Em francês no texto.
[5] Penteado em que o cabelo forma uma ou mais ondas sobre a testa.
[6] O ponto mais alto. Pináculo.
[7] Abreviação de rocking chair (cadeira de balanço). Em inglês no texto.
[8] Musa da dança na mitologia greco-romana.
[9] Eloquentemente.


Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

Vicência Jaguaribe (O Jogo da Amarelinha)


Para todas as mulheres,
que confiam mais do que
recomenda o bom-senso.

Atirei a pedra na casa de número 1 e comecei o jogo. Sabia de cor as regras e conhecia os obstáculos que teria de enfrentar, para chegar com êxito e sem tropeços à última casa — o céu. O perigo morava na passagem da casa de número 10 para a meia-lua celeste. Entre as duas casas, havia o retângulo do inferno, no qual não se poderia mergulhar, por motivos óbvios.

Sabia que iniciava um jogo no qual enfrentaria adversários numerosos e impiedosos — alguns, conhecidos; outros, muito próximos; alguns outros, desconhecidos. Mas todos unidos para me impingir uma derrota exemplar — a derrota de minha vida. Eu, no entanto, não desistiria. Levaria o desafio até o fim.

Com a pedra na primeira casa, fiz o percurso de ida e de volta, ora pulando folgadamente com os dois pés, ora saltando com certa dificuldade com um único pé — o primeiro obstáculo do jogo. A conquista da primeira casa estava garantida, e eu dera o primeiro passo para atingir o paraíso.

Atirada a pedra na casa 2, venci os apuros — todos previsíveis - e fiz uma segunda passagem provisória pelo céu, pulando despreocupadamente as águas do Estige, sem nelas tocar. Garantia a posse de duas casas. Cobriu-me o manto da fantasia, e eu andei pelas nuvens sem tirar os pés da terra.

Enquanto tentava atingir a casa de número 3, encontrei os dois olhos que me seguiam com insistência, e me deixei iludir. Até aquele momento o traçado estava limpo, e os números demarcadores das casas, perfeitos. Nada indicava perturbação.

Ao lançar a pedra na quarta casa, eu estava tranquila. E ela aterrisou serena como uma pétala que se desprende da rosa, por haver terminado seu tempo. Fiz o percurso de ida e de volta sem incidentes ou acidentes. O mar estava em calmaria, e o céu prometia ficar firme até o final do jogo. A jogada seguinte, no entanto, foi infeliz - a pedra projetou-se de mau jeito c caiu fora da casa. Cedi a vez ao outro jogador e esperei. 

Quando a pedra me voltou às mãos, eu já não estava tão tranquila. Alguma coisa me perturbara. Cochichos à minha volta e os primeiros sinais da noite avizinhando-se. Repeti a jogada na casa de número cinco e, desta vez, não houve titubeio. Um pouco mais animada, pulei as casas restantes e voltei sem problemas. Os olhos estavam lá de novo e, envolvida pelo entusiasmo da boa jogada, prometi-lhe tudo, que cumpri ao alcançar a sexta casa. A casa de número 6, o número ambivalente, o número do pecado. Mas eu estava vivendo meu encantamento particular! Não poderia ater-me a esses detalhes.

O delírio envolveu-me quando atirei a pedra no número 7. Os sinos repicaram, as Três Marias começaram a piscar, e a Lua, que se escondia numa nuvem mais escura, lançou seu brilho esbranquiçado sobre mim. Abriram-se as portas do paraíso,

A pedra que lancei em direção à casa 8 caiu bem no centro. Bons presságios! Não considerei, no entanto, o fato de que há falsos oráculos e continuei a entregar-me, não só no plano da fantasia, mas também na dimensão do real.

A vez da casa 9, o número fatídico - o número do fim e do começo. A luz do dia começava a ir embora. Era o momento em que o Sol ofuscava e alucinava. E eu senti um novo começo dentro de mim - o sinal de um novo começo, parte de mim, que também traria o desespero e a infelicidade. Cumpri o percurso de ida e de volta, meio aturdida, meio desnorteada.

Não sei como atingi a décima casa. O número 10... o número do conjunto de leis... O decálogo... a condenação das transgressões. O fruto do pecado dentro de mim. O escândalo... a maldição… O momento definitivo... o salto para alcançar o céu.

Procurei o olhar que me perseguia. Não o encontrei. Estava só! Fechei os olhos e saltei. Não consegui. Caí no centro do retângulo infernal, mergulhando nas leteias águas, no momento exato em que a Terra caía na escuridão de uma noite sem Lua e sem Três Marias.

Fonte:
Livro enviado pela autora.
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em porto aberto. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XIX


Antonio Carlos de Barros (Nilo Bairros de Brum: Tropeiros)


O Rosariense NILO BAIRROS DE BRUM, vencedor de muitos Festivais da Canção Gaúcha no Rio Grande do Sul e em outros Estados, autor da letra TROPEIROS, cujo tema vamos abordar, é formado em direito, Procurador de Justiça aposentado, advogou na área do Direito Autoral e dedica-se à pesquisa independente de História. Tem seis livros publicados e centenas de letras de músicas de muito sucesso.

Livros: 
- Requisitos Retóricos da Sentença Penal, publicado pela Editora Revista dos Tribunais, São Paulo (edição esgotada);
- Caminhos do Sul, pesquisa de história, republicado pelo Clube de Autores;
- Inconfidências Gaudérias, crônicas e conto, republicado pelo Clube de Autores;
- Clave e Lua, Poemas e Letras de Música, publicado pelo Clube de Autores;
- O Homem Metáfora, poemas para declamar, publicado pelo Clube de Autores;
- Cartilhas do Tropeirismo, pesquisa de História, publicado pelo Clube de Autores.


Vamos então ao tema de: Tropeiros. 

O amigo Nilo Bairros de Brum, em uma conversa informal comigo, contou-me uma história interessante sobre essa música, Tropeiros.

Ele me contou que a princípio, o verso onde diz: João Miguel era Tropeiro, ele havia escrito assim: Meu avô era Tropeiro... e diz que, não sabe o porque, alterou a letra para: João Miguel era Tropeiro. Ofereceu então a letra para o amigo, cantor e compositor Léo Almeida colocar melodia. Após, concluída a melodia, enviaram para o Festival: SAPECADA DA CANÇÃO DE LAGES – SANTA CATARINA. A música foi classificada para o Festival. E para lá se deslocaram.

A interpretação do Léo Almeida foi brilhante e a música encaixou como uma luva para a população de Lages, pois muitos dos habitantes tinham descendência Tropeiras.

Moral da história, a música além de ganhar o Festival, fez um enorme sucesso perante todos os que lá estavam e até hoje é muito requisitada pelos ouvintes das rádios que apresentam músicas Gaúchas.

O detalhe dessa música fica por conta quando, na hora em que os autores recebem a premiação, o Nilo nos fala, até emocionado, que uma família de Lages, em prantos o procura e o questionam como ele, o Nilo, conheceu o João Miguel. Que, Ele era o seu avô paterno, que saiu para uma tropeada e nunca mais voltou para casa. O que havia acontecido com o João Miguel? Se ele estava ferido gravemente, se ainda vivia ou se estava morto? E como ele sabia do desaparecimento do João Miguel. E que a sua avó, enquanto vivia, todos os dias ficava com bem diz a música: com um olho nas crianças e o outro fitando a estrada. Enfim, após as devidas explicações dadas pelo Nilo, que nem ele mesmo soube explicar direito aos familiares, deixo as devidas conclusões para os leitores dessa verídica história, analisando o conteúdo da letra.

Tropeiros - Interprete: Léo Almeida

"O romantismo rendeu versos ao Gaudério* e a história decantou
Bandeirantes mas foram eles, os Birivas*, que fizeram
a integração destes povoados tão distantes"

João Miguel era tropeiro gastou a vida na estrada
Levando mulada* xucra do Rio Grande a Sorocaba
Aprendeu nas arribadas* que a sorte a gente é que faz
Um Biriva de vergonha não deixa mula pra trás

O facão Sorocabano levado sem aparato
O chapéu de abas largas as botas de cano alto
O trajar era modesto, mas a mirada era altiva
Subindo ou descendo a serra João Miguel era Biriva.

Bota n'água esta madrinha, madrinheiro*
Que a tropa vai seguindo enfileirada
Vou na balsa segurando o meu cargueiro*
Com as bruacas* de paçoca bem socada.

Maria murchou na vida de casa e cabo de enxada
Com um olho nas crianças e o outro fitando a estrada
João Miguel virou lembrança na cruz à beira da trilha
E Maria foi plantada lá no alto da coxilha*.

João Miguel era tropeiro, seus netos tropeiros são
De esperanças mal domadas que desgarrando se vão
A esperança madrinha segue na frente entonada
E seu cargueiro de sonhos traz a bruaca lotada.

GLOSSÁRIO:

- Arribadas - consistia em procurar e resgatar animais extraviados e devolvendo-os à tropa.
- Birivas – nome dado aos habitantes de Cima da Serra, descendentes de Bandeirantes, ou aos Tropeiros Paulistas.
- Bruacas – espécie de mala de couro cru, com alças laterais, apropriada para ser conduzida em lombo de animal, pendurada na cangalha, uma de cada lado.
- Cargueiro – animal utilizado para conduzir cargas, em geral muar.
- Coxilha – grande extensão ondulada de campinas cobertas de pastagens, que constituem a maior parte do território Rio Grande do Sul e onde se desenvolve a atividade pastoril dos Gaúchos.
- Gaudério – denominação dada ao antigo Gaúcho, em sentido depreciativo.
- Madrinha – era a égua madrinha. A égua mais experiente, de muitas tropeadas.  
- Madrinheiro - era a pessoa que cavalgava a égua madrinha, seguindo na frente da tropa, para regular a marcha da mesma.
- Mulada – Tropa de mulas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Elisa Alderani (Jardim de Versos) I


BEIJA-FLOR

Bom dia, meu amigo beija-flor,
Você não acha que está atrasado?
São quase onze horas,
As flores das minhas jardineiras,
Há muito tempo estão à sua espera.
O sol já está alto no céu
A atmosfera preencheu-se de calor.
O barulho do trânsito não vai atrapalhar o seu revoar?
De frente à minha janela vibram suas pequenas asas.
Você chegou! Tão pequeno e tão gracioso
Veio me visitar,
Qual noticia vai me dar?
Eu, nada tenho para contar:
O ontem como o hoje, é igual.
Talvez você more longe,
Do seu reino encantado
Traga notícia alegre,
Com minha fantasia queira adivinhar;
A certeza da sua liberdade, não é segredo...
Você passa de flor em flor, de cor em cor.
Colhendo amor!
Parado no ar, já sei, vai dizer:
Não está sozinha.
Eu estou aqui.

CAMINHO DO ARCO-ÍRIS

Deixo o afã do meu dia,
Procuro serenidade olhando o céu.
A tempestade passou.
Surpreende-me o arco-íris coroando a Terra.
Uma gota de chuva,
Brilha sobre a pétala de uma flor,
Reflete minha imagem,
No meu vulto cansado, linhas profundas.
Tramas de uma história
Cujo enredo continua confuso.
Ficam sonhos vazios.
Lentamente o olhar segue o caminho do arco-íris
Que se arrasta até o horizonte
Pincelando lembranças.
Neste percurso recolho flores,
Enfeito com seus aromas os pensamentos.
O sol fulgurante transforma minhas lágrimas
Nas cores do arco-íris traçado no tempo sereno.
Neste encontro entre terra e céu,
Abraço o profundo silêncio.

GRADES

Piscam no ar parado os vaga-lumes,
São minhas palavras sem voz,
Sem rumo, sem sentido.
Nem uma estrela aparece
No preto veludo do céu.
Nem a lua aponta no horizonte.
No silêncio da casa,
Quebrado pelo chiado do velho ventilador
As horas avançam preguiçosas.
O cansaço mistura-se com sutil melancolia.
Pálpebras pesadas caem sobre o livro aberto.
Grades enferrujadas pelas intempéries da vida.
Falta só um capítulo.
Fim!

MÃOS

Mãos sobrepostas,
Mãos fechadas,
Mãos abertas,
Mãos entrelaçadas,
Dedos abertos, fechados,
Curvados...
Mãos que falam,
Mãos que produzem.

Mãos lindas,
Mãos carinhosas,
Mãos audaciosas,
Mãos calosas,
Todas são obras de arte.

Esculpidas pelo Artista da vida
Todas elas são diferentes,
Obras primas...
Clones? Nem pensar!
Todas têm digitais exclusivas...
Os cientistas... Podem pensar pesquisar...
Mas, jamais obras vivas irão criar!

PRAIA DESERTA

Quando o deserto da solidão me invade
Os pensamentos vagam como nuvens
Empoeiradas pelas lembranças…

Perdidos, na areia branca da praia,
Milhões de porquês
Enchem todo o vazio.

No vai e vem das ondas
Voltam às emoções perdidas...
Sem respostas
Pelo amanhã da vida!

RAÍZES

No coração da casa
Temos muitas coisas estranhamente guardadas.
Este fato é tão comum, não assusta, é só curioso.
Encontrar nas gavetas refugos de um tempo passado.
Fotografias amareladas, roupas desbotadas.
Agendas com páginas brancas...
Será que perdemos este dia,
Ou esquecemos de vivê-lo?
Lembranças são parasitas
Sugam o presente, como orquídeas perfumadas,
Ornam os galhos ressequidos.
Grudadas, na alheia árvore hospedeira,
Que afunda suas raízes...
Na escuridão da terra endurecida
Procura o sumo
Para concluir o ciclo inacabado.
Da vida.

SOMBRAS E LUZES

Quem acaricia os galhos da árvore?
Será o vento?
Ou serão os galhos que acariciam o vento?
Sonhos e realidade!
Serão os sonhos que acariciam a realidade?
Ou a realidade que acaricia os sonhos?
A árvore não sabe responder,
Ela continua firme. Suas raízes são profundas.
Ergue-se para o céu sem medo.
O cume frondoso balança sem barulho.
Encantada, descrevo este lindo cenário.
Meus pensamentos ascendem,
Chegam até o mais alto galho.
Não os deixo desabar como folhas amareladas.
Por trás da árvore, o céu está cinzento.
Nuvens escuras ameaçam chuva...
Logo cairá a noite.
As cortinas de veludo pretas
Fecham-se frente á plateia.

Fonte:
Livro enviado pela autora.
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilíngue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.

Francisca Júlia (Balada alemã: Rei Fantasma)


Quem é que cavalga a esta hora, na escuridão da noite, sob a chuva que cai e o vento que uiva? As árvores agitam a folhagem descabelada, arrepiadas do terror da noite.

O velho passa apressadamente, apertando nos braços o filhinho amado, fazendo-lhe com o rosto e com as mãos um carinhoso abrigo.

- Oculta-me o rosto, pai.

- Para que queres que te oculte o rosto, filho?

- Não vês o rei envolvido em seu manto de púrpura, brandindo o cetro como um louco?

- Não tenhas medo, filho, é uma nuvem e mais nada; é uma nuvem que estremeceu à fúria do vento e se desfez em água.

"Linda criança, vem comigo! vamos gozar as riquezas do meu reino, embriagar a vista no esplendor do meu ouro, correr os meus campos onde há flores perfumadas e árvores vergando ao peso dos frutos".

- Pai, pai! não ouves o que o rei me promete em voz baixa?

- Não é nada, meu filho; é o vento brando que murmura nas ramas e que resvala nas folhas, e mais nada. Filho, não tenhas medo.

" Criança linda, queres vir comigo? As minhas filhas são claras como a neve e têm cabelos louros como o sol; elas te conduzirão à dança noturna em companhia das fadas do bosque; elas te ensinarão brinquedos nunca vistos e te farão passear numa barquinha azul sobre as águas do lago. E tu hás de adormecer ao seu canto e sonhar sob seus afagos".

- Pai, pai! Não vês as filhas do rei dançando lá em baixo na planície, vestidas de branco, com os rostos escondidos nos cabelos?

- Meu filho, meu filho, eu vejo bem: são os salgueiros distantes, embranquecidos de neve, que o vento agita e balança, e mais nada.

"Amo-te, bela criança; gosto do teu rosto pálido, dos teus olhos azuis como o céu e dos teus cabelos negros como a noite; vem! quero levar-te comigo para deslumbrar-te nas riquezas do meu reino. Se tentas resistir, arranco-te dos braços do teu pai".

- Pai, pai! o rei me leva, o rei me arranca, o rei me mata. Livra-me, pai! ele é tão mau, ele é tão grande, ele é tão feio!

O pobre pai treme; fustiga o cavalo; atravessa a escuridão da noite sob a chuva que cai e o vento que uiva; aperta tanto o filho contra o peito que o sufoca. 

Muito tempo depois, quando entrou em casa, tinha nos braços a criança morta.

Fonte:
Iba Mendes.