segunda-feira, 27 de junho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 9

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLV

VELHICE ADOLESCENTE

 
MOTE:
Fim da estrada... e de repente
um colóquio de meiguice,
faz do amor adolescente
a ternura da velhice!
Almerinda Liporage
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:
Fim da estrada... e de repente
certo jovem se aproxima,
é um alguém tão diferente
que minha alma, então, fascina.
 
As palavras vão surgindo...
Um colóquio de meiguice,
cheio de um carinho lindo,
tem ares de garotice!
 
O amor me deixa contente...
apesar da meia idade...
faz do amor adolescente
 a minha realidade!
 
Esse amor, já no meu fim,
mais parece peraltice,
mas faz vibrar dentro em mim,
a ternura da velhice!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

QUE IMPORTA?
 
MOTE:
Que importa a nós dois o mundo
que importa o lugar que vamos...
Nosso amor é tão profundo
que só de nós precisamos!

Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

 GLOSA:
Que importa a nós dois o mundo

se temos o nosso, aparte?
se nos amamos a fundo?
se nós vivemos com arte?
 
Não interessa o caminho...
que importa o lugar que vamos...
se vivemos com carinho,
se nós dois, só, nos bastamos?
 
Fazemos nosso segundo,
durar uma eternidade...
nosso amor é tão profundo
feito de sinceridade!
 
Seguimos juntos... mãos dadas...
temos tudo o que sonhamos:
almas tão enamoradas,
que só de nós precisamos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SUPREMA POESIA
 
MOTE:
Nada existe de mais belo,
que ver (suprema poesia)
o sol pintar de amarelo
as portas cinzas do dia!

Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA

GLOSA:

Nada existe de mais belo,
nada com maior beleza,
nada mais rico e singelo,
do que o sol, na natureza!
 
Nada melhor neste mundo,
que ver (suprema poesia)
o sol caindo, profundo
nos mares da fantasia!
 
Não existe paralelo
para essa tela imortal:
O sol pintar de amarelo
esse horizonte sensual!
 
Nesse amarelo dourado
em linda monocromia,
colore, de amor, tomado
as portas cinzas do dia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EU SABIA SONHAR...
 
MOTE:
O adeus... O beijo gostoso...
A esperança de voltar...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
em que eu sabia sonhar!

Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:

O adeus... O beijo gostoso...
nós dois... o hoje... o amanhã...
o nosso sonho ardoroso,
a cada nova manhã!
 
Depois do adeus, a esperança,
a esperança de voltar...
Como é doce essa lembrança!
Como é doce recordar!
 
Nosso colóquio amoroso,
era tão lindo e tão puro...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
que ao lembrar me transfiguro!
 
Era um tempo de alegria,
um tempo só para amar...
Um tempo de fantasia
em que eu sabia sonhar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MOÇO... VELHO... ESPELHO...
 
MOTE:
O espelho não me enganou,
sem disfarce, esse sou eu:
Um moço que não sonhou,
um velho, que não viveu!

Zaé Júnior
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

GLOSA:

O espelho não me enganou,
me mostrou, sem falsidade,
exatamente o que eu sou:
a minha realidade!
 
Fiquei surpreso, indeciso...
Sem disfarce, esse sou eu:
de coragem eu preciso
pra ver o reflexo meu!
 
Vejo alguém que nunca amou,
que não soube ser feliz...
Um moço que não sonhou,
que nunca fez o que quis!
 
O tempo passou voando,
e a juventude morreu...
Meu espelho vai mostrando,
um velho, que não viveu!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

João Ubaldo Ribeiro (O dia em que nós pegamos Papai Noel)


Na nossa turma em Aracaju - uns 15 moleques de 9 a 10 anos de idade, no tempo em que menino era muito mais besta do que hoje - quem sabia de tudo era Neném, cujo verdadeiro nome até hoje desconheço. Neném era chamado a esclarecer todas as dúvidas, inclusive em relação a mulheres, assunto proibidíssimo, que suscitava grandes controvérsias. Ninguém sabia nada a respeito de mulheres e muitos nem sabiam direito o que era uma mulher. As mulheres usavam saias, falavam  fino, tinham direito a chorar e os homens mudavam de assunto ou tom de voz quando uma delas se aproximava - e pouco mais do que isso  constava do nosso cabedal de informações, razão por que Neném assumiu  grande importância no grupo.  

Neném sabia tudo de mulher, contou cada coisa de arrepiar os cabelos. Houve quem não acreditasse naquela sem-vergonhice toda: como  é que era mesmo, seria possível uma desgraceira dessas? Quer dizer que aquela conversa de que achou a gente dentro da melancia, não sei o quê,  aquela conversa... Pois isso e muito mais! - garantia Neném, e aí tome novidade arrepiante em cima de novidade arrepiante. Um menino da turma, o Jackson (em Sergipe há muitos Jacksons, por causa de Jackson de Figueiredo, é a mesma coisa que Ruy na Bahia), ficou tão abalado  com as revelações que foi ser padre.  

Mas, antes de Jackson se assustar mais e entrar para o seminário, chegou o primeiro Natal em que o prestígio de Neném já estava amplamente consolidado e a questão das mulheres - tão criadora de tensões, incertezas e pecados por pensamentos, palavras e obras - foi substituída  por debates em relação a Papai Noel. A ala mais sofisticada lançava amplas  dúvidas quanto à existência de Papai Noel e o ceticismo já se alastrava galopantemente, quando Neném, que tinha andado gripado e ficara uns dias preso em casa para ser supliciado com chás inacreditáveis, como faziam com todos nós, apareceu e, para surpresa geral, manifestou-se pela  existência de Papai Noel. Ele mesmo já estivera pessoalmente com Papai  Noel. Não falara nada porque, se alguém fala assim com Papai Noel na hora do presente, ele toma um susto e não bota o presente no sapato. Apenas abrira um olho cautelosamente, vira Papai Noel, com um sacão maior que um estudebêiquer, tirando os presentes lá de dentro, foi até no ano em que ele ganhara a bicicleta, lembrava-se como se fosse hoje. Então Papai Noel existia, era fato provado.  

Alguns se convenceram imediatamente, mas outros resistiram. Aquele negócio de Papai Noel era tão lorota quanto a história da melancia. Neném se aborreceu, não gostava de ter sua autoridade de fonte fidedigna contestada, propôs um desafio. Quem era macho de esperar  Papai Noel na véspera de Natal? Tinha que ser macho, porque era de noite, era escuro e era mais de meia-noite, Papai Noel só chega altas horas. Alguém era macho ali?  

Ponderou-se que macho ali havia, machidão é o que não falta  em Sergipe, não se fizesse ele de besta de achar que alguém ali não era macho do dedão do pé à raiz do cabelo. Mas era uma questão delicada, como era que se ia fazer para enganar os pais e conseguir escapulir de  casa à noite? E quem tivesse sono? Havia alguns que tomavam um copo de leite às oito horas e caíam no sono 15 minutos depois, era natureza mesmo, que é que se ia fazer? Era muito fácil falar, mas resolver mesmo  era difícil.  

Neném não quis saber. Disse que macho que é macho vai lá e enfrenta esses problemas todos, senão não é macho. Macho era ele, que  só não ia sozinho para o quintal de Zizinho apreciar a chegada de Papai Noel porque, sem companhia, não ia ter graça e infelizmente não havia ali um só macho para ir com ele. Por que ninguém aproveitava que a Feirinha de Natal funciona até tarde e os meninos têm mais liberdade  de circular à noite?  

Claro, a Feirinha de Natal! Todo Natal havia a Feirinha, montada  numa praça, com roda-gigante, carrossel, barracas de jogos e tudo de bom que a gente podia imaginar, iluminada por gambiarras coloridas e enfeitada por todos os cantos. Sim, não era impossível que um bom  macho conseguisse aproveitar a oportunidade gerada pela Feirinha e escapulir para ver Papai Noel no quintal de Zizinho. Só que não podia ser mais perto, por que tinha de ser no quintal de Zizinho? Elementar, na explicação meio entediada de Neném: Zizinho tinha mais de dez  irmãos, era a primeira casa em que Papai Noel passaria, para descarregar logo metade do saco e se aliviar do peso. Além disso, o quintal era grande, cheio de árvores, dava perfeitamente para todo mundo se esconder, cada qual num canto para manter sob vigilância todas as entradas do casarão, menos a frente, é claro, porque Papai Noel nunca entra pela  frente, qualquer um sabe disso.  

Eu fui um dos machos, naturalmente. E, já pelas dez horas, o burburinho da Feirinha chegando de longe com a aragem de uma noite  quieta, estávamos nos dispondo estrategicamente pelo quintal, sob as  instruções de Neném. Alguns ficaram com medo de cobra (macho pode ter medo de cobra, não é contra as normas), outros se queixaram do frio,  outros de sono, mas acabamos assentados em nossas posições.

Acredito que cochilei, porque não me lembro do começo do rebuliço. Alguém tinha visto um vulto esgueirar-se pela janela do quarto  da empregada, que ficava separado da casa, do outro lado do quintal. Era Papai Noel indo dar o presente de Laleca, a empregada, uma cabocla  muito bonita e, segundo Neném, "da pontinha da orelha esquerda". No  duro que era Papai Noel, já havia até descrições do chapéu, da barba, do riso, tudo mesmo. Como os soldados dos filmes de guerra que passavam no cinema do pai de Neném, fomos quase rastejando para debaixo da janela de Laleca. Estava fechada agora, Papai Noel certamente não queria  testemunhas.

Mas como demorava esse Papai Noel! Claro que, nessas horas, o tempo não anda, escorre como uma lesma. Mas, mesmo assim, a demora  estava demais.

- Estou ouvindo uns barulhinhos. - cochichou Neném.

- Eu também.

- Eu também. E foi risada, ainda agora, foi risada?  

- Psiu!  – Silêncio entre nós, novos barulhinhos lá dentro.  

- Quem é macho aí de perguntar se é Papai Noel que está aí? - perguntou Neném.

Eu fui macho outra vez. Estava louco para apurar aquela história  toda, queria saber se Papai Noel tinha trazido o que eu pedira e aí gritei  junto às persianas:

- É Papai Noel que está aí?

Barulhos frenéticos lá dentro, vozes, confusão.  

- É Papai Noel?  

A barulheira aumentou e, antes que eu pudesse repetir a pergunta outra vez, a janela se abriu com estrépito e de dentro pulou um homem esbaforido, segurando uma camisa branca na mão direita, que imediatamente desabalou num carreirão e sumiu no escuro. Lá dentro,  ajeitando o cabelo, Laleca fez uma cara sem graça e perguntou o que a gente estava fazendo ali.

- Era Papai Noel que estava com você?  

- Era, era! - respondeu ela.  

Mas ninguém ficou muito convencido, até porque o homem que pulara tão depressa janela afora lembrava muito o pai de Zizinho,  que por sinal, no dia seguinte, deu cinco mil réis a ele, disse que ficasse caladinho sobre o episódio e explicou ainda que Papai Noel não existia, Papai Noel eram os pais, como ele, pai de Zizinho, que todo Natal ia de quarto em quarto distribuindo presentes. De maneira que até hoje a coisa não está bem esclarecida e nós ficamos sem saber se bem era uma história de Papai Noel ou se bem era uma história de mulher daquelas  de arrepiar os cabelos.

Fonte:
João Ubaldo Ribeiro. Contos e crônicas para ler na escola. RJ: Objetiva, 2010.

domingo, 26 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 12: Força e fé

 

Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 1

CONSTATAÇÃO


Ao artista Deus deu mãos de ferramenta, e o Amor acrescentou vontade e leveza nos toques.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

GRAVIDEZ

No choro da descoberta, o desespero escorreu em lágrimas formato bebê.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INTRIGA

Borboleta magérrima olhou a lagarta, mediu sua balofice e desdenhou: – fitness, amiga!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INSÔNIA

No lençol amassado, pelos, cabelos e marcas da noite. Também olheiras por testemunha.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MANHÃ

Curioso, o sol penetrou pela fresta e a iluminou ainda nua: transpirava restos de amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MESTRA

A vida que nasceu com relho* na mão não alisa; e ai daquele que não aprende.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NA ESTAÇÃO

O aviso de partida sangrou o ar e tirou, do coração constrito, lágrimas da despedida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

OBSERVAÇÃO

A vida lhe deixou espinhos, mas o amor ofertou sementes de flores.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ONTEM E HOJE

Namorados de ontem não se desgrudavam; nem os de hoje, só que agora do celular...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERSISTÊNCIA

Impoluta, a rocha nem ligou para a água que batia e quando menos esperava, se lascou...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SINTONIA

Enquanto riscava a viola, a fumaça da chaminé desenhava ao vento as curvas da clave de sol.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

TERNURA

Os olhos da alma, ao apreciá-la na foto, nem percebiam o amassado do papel.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

UPA!

Entre a freada e a mancha na rua, só a bola continuou brincando.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VALOR

Soberbo, o sol cuspiu suor no gari que humilde, limpou-se diante    da podriqueira**.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VAZIO

Cão e lua curtem, cada qual no seu quadrado, a solidão. O que pensam?
===========================================
* relho = açoite feito de couro torcido.
** podriqueira = podridão.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Versos Di Versos) 2

A DESPEDIDA


É triste, como dói a despedida,
maltrata nos ferindo incontinente,
nos faz sofrer assim, tão inclemente,
as mágoas todas ânsias da partida.

Sentindo grande angústia, incontida,
que faz o coração bater mais forte,
sem ter um certo alguém que nos conforte,
que estirpe a nossa dor ali vivida.

E triste, sim, o adeus, as ilusões,
que fazem sufocar os corações,
deixando por um tempo os dois distantes.

Porém, em meio a toda insegurança,
com eles, permanece uma esperança,
de um dia se entregarem, como amantes...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LUA

Tu chegas. prateando a minha vida,
me ornando, com tua luz, com teu clarão,
mas sempre sorrateira, escondida,
enchendo de prazer meu coração.

Clareias, vez por outra, os arvoredos,
onde, eu, mirando a ti, me encontro agora,
conheces, quase todos meus segredos,
és linda, és mulher, lua senhora.

Vaidosa, companheira das noitadas,
mentora das canções, pelas calçadas,
e que, as interpretei, com frenesi.

Mas, quando as cantava, a uma janela,
sequer me dirigia pra ela,
volvia o meu olhar só para ti.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MAL DE AMOR

À noite, no silêncio do meu quarto,
procuro, em vão, achar recordações
e, logo, as alegrias eu descarto
pois, sinto, dentro em mim, desilusões.

Tão fortes são as minhas emoções,
que esqueço tudo que o coração diz
e, indiferente, às minhas aflições,
eu tenho a sensação que sou feliz.

Mas, eis que se apresenta a realidade,
mostrando que o meu caso é uma saudade,
que faz com que eu amargue tanta dor.

E que, por esse estranho sofrimento,
angústias, essa dor, esse tormento,
há cura! Se voltar meu grande amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O CANTO DOS BEM-TE-VIS

Se achegam, todo dia, ao meu jardim,
revoando e entoando, cantos seus,
enchendo de harmonia, os áudios meus,
em grande sinfonia, para mim.

Foi Deus, quem os criou e os fez, assim,
solenes, majestosos, na amplidão,
seu trino, é um solfejo, uma canção,
que alegra o coração, o meu ser, enfim.

Em seus voos, de liberdade e pujança,
transladam, no seu mundo pequenino,
aos sons, de sonorosos pot-pourris.

Com eles, eu me sinto, uma criança,
pois, recorda o meu tempo de menino,
o canto perenal dos bem-te-vis!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ZUMBI

Mirando este horizonte à minha frente,
o velho mar, revolto, ao vento alado,
os verdes coqueirais com seu bailado,
eu sinto este universo tão presente.

Escuto, no aconchego, no poente,
o canto prazeroso das graúnas,
que vão ao Punaú, com suas dunas,
em busca de um aninho e água corrente.

É lindo! A natureza se acentua,
fazendo um aparato para a lua,
mostrando o belo que se expõe aqui.

E a lua se acercando, com encanto,
aguça, mais ainda, este recanto,
emoldurando a praia de Zumbi!*
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Localizada no município do Rio do Fogo, um dos lugares mais lindos do estado potiguar, a Praia do Zumbi herda seu nome de um sítio, uma pequena propriedade rural, que existia na região no século XVIII.

Isto porque Zumbi é uma palavra de origem africana que pode ser traduzida como fantasma e a propriedade em questão estava abandonada, com aspecto escuro dava impressão de ser mal assombrada e acabou sendo chamada assim pelos locais. (site Natal/RN)


Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Miriam Leitão (Imprevistos de bastidores)

Queria ser cronista. Só disso eu tinha certeza nos primeiros dias de jornalismo, iniciados, sem aviso prévio, aos 18 anos, em Vitória. Procurava emprego que me ajudasse a pagar as contas e consegui em uma redação. Foi assim que virei jornalista. Cheguei ao Espírito Santo depois de ler todo livro de Rubem Braga que encontrara, já sabendo que o estado tinha tradição no gênero. Tinha lido crônicas de Machado a Drummond. Era um sonho secreto, atrevido, que não contava para ninguém. Acabei sendo tudo: repórter, editora, colunista, comentarista. Crônica só em alguns raros momentos, quando a faina diária abre um breve intervalo, uma ligeira fresta no noticiário pesado. Ficou, então, esse desejo incompleto que realizo aos sábados neste espaço.

Ouvi dizer que todo cronista tem um momento em que não sabe o que escrever e tem de deixar a mente bem solta para ver se pega alguma inspiração, uma certa associação de ideias, uma lembrança que pouse como um passarinho.

Foi assim que me lembrei da mosca. Ela entrou no estúdio e o programa era ao vivo. Eu avisei, no intervalo, que uma voadora passara rasante sobre mim. Ninguém deu ouvidos. Todos falavam ao mesmo tempo. A televisão é um milagre que se renova a cada dia. Aquela confusão e, de repente, todos no ar, organizados, como se tivessem ensaiado.

Pergunta feita, comecei meu comentário. Aí a mosca voltou. Ela envidou os maiores esforços para chamar a atenção. Deu volta na minha cabeça e parou como uma equilibrista no ar, entre meu rosto e a câmera. Depois veio direto na minha direção, ameaçadora. Então sumiu. Antes do respiro de alívio, retornou num golpe traiçoeiro, por trás, contornou a nuca, zuniu no ouvido e passou rente ao meu rosto. O comentário era sobre uma notícia séria. Não dava para brincar com o inusitado da presença de uma espectadora alada. E dançante. Que mosca, aquela! Ela dava piruetas no ar e voltava a fincar sua atenção em mim. Gostava de economia, aparentemente. O estúdio inteiro petrificado. E eu fazendo exercícios mentais para ignorar a intrusa e continuar concentrada na difícil notícia que devia analisar. Comentário longo, mosca insistente, e eu tendo de dedicar um superávit de atenção ao tema. Consegui chegar ao ponto-final. Respirei. Ao fim do programa dei caça implacável à mosca. Tão misteriosamente quanto apareceu, ela sumiu.

Houve também o problema do salto. Oito é o máximo que consigo. Meu sapato cinza tem salto oito. Eu caminhava, resoluta, para o estúdio quando senti uma certa maciez estranha e desequilibrante sob os pés. Olhei e o salto do pé direito tinha virado. Parei, tentei consertar e ele saiu na minha mão. Estava na porta do estúdio, quase na hora de entrar no cenário. Precisaria caminhar até os apresentadores explicando a volátil conjuntura econômica, mas, naqueles instantes prévios da entrada em cena, eu adernava sobre um sapato com salto e outro sem. Entrei no estúdio e disse, nos bastidores, ao Caju, do áudio:

— Socorro!

Entreguei a ele o sapato e o salto separados e a minha aflição. Caju saiu rapidamente do estúdio e eu só ouvi um barulho assim: Tuuuummmm! Em seguida, ele voltou triunfante com salto e sapato reconciliados. Acabava de calçar e já ouvia a ordem para entrar em cena. Andei sem saber o grau de resiliência do meu sapato cinza de salto oito. Mas ele aguentou, heroico, até o fim do comentário.

Foi falar do sapato e me lembrar da bota. Um dos cameramen é alto e forte. É ele que maneja o mais pesado dos equipamentos, uma câmera que corre em trilhos e dá a imagem em movimento. Simpático, o colega. Delicado nos gestos e nas palavras, apesar daquele tamanhão todo. Ele usa botas pesadas, como se precisasse da grossura da sola para se sustentar no chão. Naquele dia me avisaram para entrar. Fiz o primeiro movimento para contornar as câmaras por trás e ir para o centro do cenário. Meu colega grandão, de costas para mim, puxou seu superequipamento e deu marcha a ré levantando seu enorme pé calçado com as grossas botas. Movimentei meu pé 36, em uma delicada sandália que pouco protegia, no exato instante em que ele descia sua bota 44 impiedosamente sobre o dorso do meu pé. Dor indescritível. Eu gritaria se possível fosse, porém ouvi a ordem insistente do diretor no meu ouvido:

— Entra, Míriam.

Meu pé não queria ir, o grito parado no ar, e eu tive de desfilar diante das câmeras explicando a situação econômica. O pé latejava. Um filete de sangue escorreu, mas ninguém viu, porque não estava em quadro, só meu delicado colega olhava, desolado. E eu explicava o choque externo que atingira a economia brasileira, em voz pausada, sentindo o pé aos gritos. A marca desse encontro desigual perdurou por dois meses em um hematoma. Até hoje não fico mais atrás desse meu colega, e ele sempre se certifica de onde estou antes de recuar.

O telespectador, em casa, nada soube da mosca, do salto quebrado nem da mais esmagadora pisada que sofri na vida.

Sou comentarista. Dizem que ser cronista é um risco, porque há um momento em que nada vem à mente. Há imprevistos maiores nesta vida.

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.