sexta-feira, 24 de junho de 2022

Sílvio Romero (A onça, o veado e o macaco)

(Conto do Sergipe de origem indígena)


Uma vez, amiga onça convidou amigo veado para ir comer leite (*) em casa de um compadre, e amigo veado aceitou. No caminho tinham de passar um riacho, e a onça enganou o veado, dizendo que ele era muito raso, e não tivesse medo. O veado meteu o peito e quase morreu afogado. A onça passou por um lugar mais raso e não teve nada.

Seguiram. Adiante encontraram umas bananeiras, e a onça disse ao veado: “Amigo veado, vamos comer bananas; você suba, coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

Assim fez amigo veado, e não pôde comer nenhuma, e a onça encheu a pança. Seguiram; adiante encontraram uns trabalhadores capinando uma roça.

A onça disse ao veado: “Amigo veado, quem passa por aqueles trabalhadores deve dizer: ‘Diabo leve a quem trabalha.”

Assim foi; quando o veado passou pelos homens gritou: “Diabo leve a quem trabalha!” Os trabalhadores largaram-lhe os cachorros, e quase o pegaram.

A onça, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os homens gostaram daquilo, e a deixaram passar.

Adiante encontraram uma cobrinha de coral, e a onça disse: “Amigo veado, olhe que linda pulseira para você levar à sua filha!”

O veado foi apanhar a cobra, e levou uma dentada; pôs-se a queixar-se da onça, e ela lhe respondeu: “Quem manda você ser tolo?”

Afinal chegaram à casa do compadre da onça; já era tarde e foram dormir. O veado armou sua redinha num canto e ferrou no sono. Alta noite, a onça se levantou devagarzinho de pontinha de pé, abriu a porta, foi ao curral das ovelhas, sangrou uma das mais gordas, aparou o sangue numa cuia, comeu a carne, voltou para casa, largou a cuia de sangue em cima do veado para o sujar, e foi-se deitar.

Quando foi de manhã o dono da casa se levantou, foi ao curral e achou uma ovelha de menos. Foi ver se tinha sido a onça, e ela lhe respondeu: “Eu não, meu compadre, só se foi amigo veado, veja bem que eu estou limpa.”

O homem foi à rede do veado e achou-o todo sujo de sangue.

“Ah! Foi você, seu ladrão!”

Meteu-lhe o cacete até o matar. A onça comeu bastante leite e foi-se embora.

Passados tempos, ela tomou um capote emprestado ao macaco e o convidou para ir comer leite em casa do mesmo compadre. O macaco aceitou e partiram. Chegando adiante, encontraram o riacho, e a onça disse: “Amigo macaco, o riacho é raso, e você passe adiante e por ali.”

O macaco respondeu: “Ah! Você pensa que eu sou como o veado que você enganou? Passe adiante se quiser, senão eu volto...”

A onça, que viu isto, passou adiante. Quando chegaram nas bananeiras, ela disse:

“Amigo macaco, vamos comer bananas; você coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

— “Vamos”, disse o macaco, e foi logo se trepando. Comeu as maduras e atirou as verdes para a onça.

Ela ficou desesperada, e dizia: “Amigo macaco, amigo macaco!... Eu te boto a unha!...”

— “Eu vou-me embora se você pega com histórias.”

Assim respondia o macaco e foram seguindo. Quando passaram pelos trabalhadores a onça disse: “Amigo macaco, quem passa por aqueles homens deve dizer: — Diabo leve a quem trabalha; porque ali eles estão obrigados.”

O macaco, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os trabalhadores ficaram satisfeitos, e o deixaram passar. A onça passou também.

Adiante avistou uma cobrinha de coral, e disse ao macaco: “Olhe, amigo, que lindo colar para sua filha! Apanhe e leve.”

— “Pegue você!”, e não quis o macaco pegar.

Afinal chegaram à casa do compadre da onça e foram-se deitar porque já era tarde. O macaco, de sabido, armou sua rede bem alto, deitou-se e fingiu que estava dormindo. A onça, bem tarde, saiu de pontinha de pé, foi ao chiqueiro das ovelhas, sangrou a mais bonita, comeu a carne, e foi com a cuia de sangue para derramar no macaco.

Ele, que estava vendo tudo, deu-lhe com o pé, e o sangue caiu todo em riba da onça. Quando foi de para manhã, o dono da casa foi ao curral, e achou uma ovelha de menos, e disse: “Sempre que a malvada desta comadre dorme aqui, falta-me uma criação!”

Largou-se para casa, e já encontrou o macaco de pé e apontando para a onça, que fingia que estava dormindo. O homem a viu toda suja de sangue, e disse: “Ah, é você, sua diaba!”

Deu-lhe um tiro e a matou. O macaco comeu muito leite, e foi-se embora muito satisfeito.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

* leite: comer coalhada, provavelmente.


Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

Nenhum comentário: