quinta-feira, 16 de junho de 2022

Rachel de Queiroz (Isabel)

SEMPRE DIZIA QUE NÃO se casara por amizade: casara por “iludição”. Para vestir vestido branco, ir ao Quixadá na garupa do cavalo, ser mulher casada, ter seus filhos, a sua cozinha, o seu terreiro.

Agora era aquela a sua vida. A casa isolada guardava a extrema da terra, numa capoeira deserta, na seca ribeira do Sitiá. No verão, ali, quase não há água, e a pouca que há tem piranha. A terra é pedregosa; aqui e além uns campestres bonitos de capim-panasco — mas que adianta ao pobre a pastagem bonita? Pasto é para o gado, e o gado é do dono da terra. O marido ganhava uns vinténs no corte de lenha — e ela ia se arrastando entre a fadiga, a preguiça e os desgostos. Um roçado pequeno, quase no quintal da casa: era como roça de bugre; fazia-se com o caco da enxada um buraco do tamanho do covo da mão, atirava-se nele a semente, e o milho e o feijão iam crescendo como podiam, furando a terra dura, recobrindo os tocos mal queimados da coivara. Um pé de jerimum, um pé de melancia e, rodeando tudo, a ramada de garranchos, tão precária que as cabras das redondezas comiam mais do legume do que o dono do roçado.

Nos fundos da casa, o galinheiro velho — e já há dias a raposa carregara o galo, último sobrevivente de um terno de galinhas que Isabel deveria criar de meia com uma comadre. Do lado esquerdo o chiqueiro, onde ainda restava uma pouca de criação: duas cabras velhas e um cabritinho novo, que sempre berrava, aflito, no meio da noite. E aquele balido do animal arrepiava ainda mais os nervos cansados de Isabel, que, de cócoras no canto da cozinha, com as lambadas do chiqueirador ainda lhe doendo nas costas, ia curtindo o seu pavor e o seu ódio, enquanto lá na camarinha escura o marido curtia a bebedeira, atirado no jirau de varas. Aquela “cama” — quatro forquilhas de palmo e meio de altura, dois caibros fazendo as barras e a estiva de varas servindo de enxerga — ela mesma a preparara com suas mãos, quando o filho estava para nascer. Era serviço de homem, sim, mas contava ela com homem?

Naquelas varas duras, mal-cobertas por uns trapos, penou durante todo o resguardo — o frustrado resguardo do menino morto, que nasceu já roxo, com o corpinho mole e nem sequer chorou. A vizinha, que a acudira, batizara a criança, assim mesmo morta — mas todos lhe diziam que um batizado desses não tinha virtude e era até pecado o que haviam feito.

Agora, em vez de um anjo no céu que rezasse por ela, Isabel sabia que pusera apenas mais um pagão no limbo, sofrendo inocente pelo pecado original de que não pudera ser remido.

Lá na cozinha, onde estava, ouvia o roncar do marido; um ronco estertorado, aflitivo, que mais parecia o cirro de um moribundo. Ronco de bêbedo. O braço pendia da cama e a mão quase tocava, no chão, o chiqueirador de cabo de jucá, tendo na extremidade a longa fita de relho cru ensebado e cortante.

Isabel continuava de cócoras, sem ânimo de se erguer e armar a rede, sem ânimo de tirar a roupa e passar arnica pelas costas magoadas, como às vezes fazia. Mantinha-se quase imóvel, a cabeça encostada nos joelhos magros, a barra da saia tocando uma poça de água que pingara no alguidar rachado; e murmurava baixinho, num soluço trêmulo: “Desgraçado, desgraçado!”

Ali mesmo dormiu. E no sono parecia uma criança açoitada, que dorme ainda chorando. De vez em quando suspirava, estremecia, dava um soluço curto, e se encolhia mais ao canto da parede.

Igual àquela noite muitas noites houvera antes, muitas noites houve depois, Isabel ia ficando mais velha, mais magra, com um olhar estranho e escorraçado. Raramente punha uma toalha à cabeça e ia à casa da sua comadre, que ficava a meia légua de distância. E lá pouco falava, deixava se ficar no canto da cozinha, assistindo à lida da outra, escutando a algazarra da criançada. Comia um bocado escasso, bebia um gole de café, tornava a pôr o pano à cabeça e voltava para o seu desterro. Mas não se queixava nunca, só aquele olhar fundo, vidrado, gritava mágoas; a boca de lábios finos quase não falava — mal dava um boa-tarde ou um bom-dia.

Certo sábado, era boquinha da noite quando o marido chegou em casa, tombando pela vereda. Trazia pendurada no dedo, por um cordão, a garrafa de querosene. Só por milagre não a quebrara.

— Tá aí o gás... Depois ainda se queixe...

Isabel foi encher a lamparina e consertar o pavio velho, aproveitando o resto de claridade do dia; e enquanto, junto à porta, acocorada segundo o seu costume, ela torcia entre os dedos a mecha de algodão, lá na cozinha o marido enfiava o quengo do côco no pote, em busca de água, e reclamava:

— Água salobra; essa peste nem coragem tem pra ir buscar água na cacimba do riacho... E o fogo apagado... isso não é mulher, é um castigo de Deus... Não tem um caroço de feijão pra se comer... não tem uma galinha no terreiro... não tem um canteiro com um pé de coentro pra remédio... não me remenda uma roupa... não costura, não faz renda, não planta nada, não cria nada...

Isabel entrara segurando a lamparina, e procurava uma caixa de fósforo no caritó da parede da sala, debaixo da estampa de são Sebastião. O marido foi de mansinho, apanhou atrás da porta o chiqueirador, instrumento da sua justiça; esperou que Isabel riscasse o fósforo, pendurasse a lamparina no prego, de onde um cone preto de fuligem subia até a palha do teto. E habilmente, com um virtuosismo de domador, enrolou a mulher com o relho, que sibilou no ar, com um silvo de cobra. Isabel deu um grito, correu em direção à porta — mas três vezes o relho ainda a apanhou durante a fuga.

O marido não a perseguiu, viu-a atravessar o terreiro, esconder-se na moita de mofumbo (planta da caatinga brasileira), que ainda estava florida e cheirosa em pleno mês de julho. Ficou encostado ao portal com o açoite na mão, resmungando coisas, com um riso mau; depois recuou uns passos, fechou a porta, desceu a taramela e falou satisfeito:

— Vai dormir no mato, cachorra... vai dormir com as jararacas, tuas parceiras...

E atirou-se à rede que lá estava, a um canto — pois Isabel já não se dava o trabalho de a desarmar pela manhã. E o homem dormiu, sem sequer retirar as alpercatas, sem desapertar o cinturão.

Alta noite, saiu Isabel da moita onde se abrigara. Seriam mais de dez horas talvez; uma lua tardia já se erguera no céu limpo.

Caminhou até a porta da frente, empurrou-a: trancada. Rodeou a casa, entrou pela cozinha, que ele não se lembrara de fechar. Foi direto à sala: lá estava ele dormindo, bem estirado de seu, dono da rede, a boca aberta, o fartum de cachaça ao redor. Esteve algum tempo a olhar a criatura. Depois se dirigiu ao quarto, apanhou o balaio onde guardava a roupa velha e os remendos. Tirou uma agulha grossa, um fio forte — bem comprido, de mais de braça.

Devagarinho — tão devagar, tão silenciosa, que parecia até mais lenta e mais calada do que a sua grande sombra projetada pela luz da lamparina na parede de barro — chegou junto à rede. O adormecido deitara-se de través, com os pés meio de fora. Isabel, com a mão tão leve quanto a da mãe que muda a posição do filhinho adormecido, soergueu os pés do marido e os colocou dentro da rede. Depois, ele próprio a ajudou — talvez inconscientemente estimulado pelo gesto dela; virou-se, emborcou a cara contra o pano e ficou deitado a fio comprido, a cabeça mais embaixo, os pés pertinho do punho. Era uma rede grande, listada de vermelho e verde, que comportava bem todo o corpo do homem; e, como o espaço entre os dois armadores era pequeno, ela ficava baixinha, arrastando pelo chão a varanda rala de crochê.

Isabel tirou a agulha que enfiara no peito do casaco. E rapidamente costurou uma contra a outra, as duas beiradas da rede, do punho direito ao esquerdo, envolvendo, prendendo o homem no cartucho de pano, como um bicho-da-seda no seu casulo. Depois foi ao terreiro dos fundos e veio rolando o pilão, cozinha adentro, atravessou com ele a sala, rolou-o mais um pouco até debaixo da rede, e o pôs, como um cepo, sob a cabeça do marido — que não deixara de roncar.

Deu nova viagem à cozinha, trouxe a mão de pilão, pesada, feita de aroeira rija. E lentamente, com a mesma força cadenciada com que pilava o milho, malhou a cabeça que a rede envolvia e o pilão amparava por baixo.

A primeira pancada talvez não acertasse em cheio — e o homem estrebuchou, sacudindo-se com força na prisão de pano. Mas aos poucos foi ficando imóvel, e a mão de pilão descia sempre, provocando, ao cair, um ruído surdo de coisa quebrada, como uma cuia que se esmaga.
 
Isabel continuou batendo, batendo ritmicamente, até perder a força no braço. Aí descansou a mão de pilão, foi à camarinha, juntou alguns panos numa trouxa, cobriu a cabeça; atravessou a cozinha e, já do lado de fora, cerrou a porta, que quase nunca se fechava, abriu o chiqueiro da criação, para que as cabras não morressem de fome e sede, e sumiu-se no caminho que se perdia caatinga adentro.

Quando levantou urubu na casa, foi que os vizinhos descobriram o morto. Já fazia tantos dias, o estrago fora tão grande que, se o identificaram, foi porque o sabiam morador daquela casa; e, ademais, num dos pés, ainda calçados na alpercata, uma velha vizinha reconheceu o coto amputado de um dedo comido de piranha — acidente sofrido por ele em criança e que ela própria benzera para não arruinar.

Enterraram-no ali mesmo no terreiro, com rede e tudo; em cima puseram uma cruz — e o lugar ficou mal-assombrado.

Quanto a Isabel, não se soube dela. Alguns pretendem que caminhou até o açude de Cedro, distante de lá três léguas, e se atirou do paredão abaixo. A comadre por sua vez recordava que a ouvira falar certo dia na vontade que tinha de fugir, arranjar uma passagem de trem com uma alma caridosa e ir pedir esmolas bem longe, na estação de Baturité, por exemplo.

De qualquer forma, afogada ou mendiga, nunca mais ninguém a viu.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

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