domingo, 19 de junho de 2022

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 65, 66 e 67


BOM TEMPO, SEM TEMPO


Não chovia, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam. As plantas submergiam, os animais morriam, as pessoas não tinham tempo de emigrar. Assim era a vida naquele lugar privilegiado, onde medrava tudo para todos, havendo bom tempo. Mas não havia bom tempo. Havia o exagero dos elementos.

O mágico chegou para reorganizar a vida, e mandou que as chuvas cessassem. Cessaram. Ordenou que a seca findasse. Findou. Sobreveio um tempo temperado, ameno, bom para tudo, e os moradores estranharam. Assim também não é possível, diziam. Podemos fazer tantas coisas boas ao mesmo tempo que não há tempo para fazê-las. Antes, quando estiava ou chovia um pouco — isto é, no intervalo das grandes enchentes ou das grandes secas —, a gente aproveitava para fazer alguma coisa. Se o sol abrasava, podíamos fugir. Se a água vinha em catadupa, os que escapavam tinham o que contar. Quem voltasse do êxodo vinha de alma nova. Quem sobrevivesse à enchente era proclamado herói. Mas agora, tudo normal, como aproveitar tantas condições estupendas, se não temos capacidade para isto?

Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda.
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CARTA EXTRAVIADA

Por que a sua carta ao ministro da Agricultura foi parar em Wagra, no emirado de Catar, de onde a devolveram a ele, remetente, com a declaração de que o destinatário era desconhecido, ou coisa que o valha?

Evidente que não podiam conhecê-lo, pois o ministro despachava em Brasília. E o endereço estava bem claro. Ou antes, esteve. O envelope voltou tão cheio de anotações, riscos, caracteres indecifráveis, carimbos, pequenas etiquetas, que não se distinguia mais o que fora escrito inicialmente.

Ia reclamar do correio, mas lembrou-se que dois meses antes lera a notícia do assalto a um carro postal, de onde foram retiradas as malas. Certamente alguém tirara de uma delas a sua carta e divertira-se mandando-a para Catar. De que modo? Ora, viajara para lá, ou a dera a um portador, que a postou em Wagra.

Abriu o envelope, e qual não foi a sua surpresa ao deparar, não com a sua carta, mas com uma do ministro da Agricultura de Catar: “Meu caro senhor Filipe, considerei com a maior simpatia a sua proposta de venda de camelos para transportes de passageiros e cargas na região árida. Lamento não poder aceitá-la, pois já temos nosso sistema de transportes funcionando satisfatoriamente. No mais, venha visitar nossas ruínas fenícias”.
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CASOS DE BALEIAS

A baleia telegrafou ao superintendente da Pesca, queixando-se de que estava sendo caçada demais, e a continuar assim sua espécie desapareceria com prejuízo geral do meio ambiente e dos usuários.

O superintendente, em ofício, respondeu à baleia que não podia fazer nada senão recomendar que de duas baleias uma fosse poupada, e esta ganhasse número de registro para identificar-se.

Em face dessa resolução, todas as baleias providenciaram registro, e o obtiveram pela maneira como se obtêm essas coisas, à margem dos regulamentos. O mar ficou coalhado de números, que rabeavam alegremente, e o esguicho dos cetáceos, formando verdadeiros festivais no alto oceano, dava ideia de imenso jardim explodindo em repuxos, dourados de sol, ou prateados de lua.

Um inspetor da Superintendência, intrigado com o fato de que ninguém mais conseguia caçar baleia, pôs-se a examinar os livros e verificou que havia infinidade de números repetidos. Cancelou-se o registro, e os funcionários responsáveis pela fraude, jogados ao mar, foram devorados pelas baleias, que passaram a ser caçadas indiscriminadamente. A recomendação internacional para suspender a caça por tempo indeterminado só alcançará duas baleias vivas, escondidas e fantasiadas de rochedo, no litoral do Espírito Santo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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