sexta-feira, 3 de junho de 2022

Júlia Lopes de Almeida (Pela Pátria)

Os tiros lá fora repetiam-se, tremendos e abaladores. D. Catarina, muito lívida, segurava com os dedos magros, de encontro ao peito fundo e côncavo, o seu triste xale de viúva, escutando sozinha a agonia do coração... Morava em Niterói, num bairro afastado, e na sua pequena sala térrea, de uma nudez de ascetério (convento), o seu corpo magro e esguio, todo coberto do preto, andava desnorteadamente, como um mastro sem velas batido na borrasca.

Corria assim de canto a canto, de parede a parede, de janela a janela, sem parar, sem perceber senão que os seus dois rapazes lá estavam na guerra, o mais velho no exército, o mais novo na esquadra...

A luz pálida do crepúsculo desfazia-se aos poucos. Coisas e seres retraíam-se num silêncio expectante.

O troar da artilharia calava todas as outras vozes; nos intervalos caía sobre a terra uma mudez pesada e absoluta; mas o estampido vinha depressa fazer vibrar a natureza inteira. E o ar ficava por momentos trêmulo, como que dolorido pela passagem daquele som formidável e assassino.

D. Catarina tinha esgotado todo o fervor religioso da sua alma. A prece já lhe saía dos lábios frios como um débil perfume de flor murcha. Perdera as forças na ansiedade e no pranto; o coração não lhe destilava a água purificada da lágrima, que escorrera toda, deixando só no fundo os resíduos de sangue negro e envenenado, geradores da raiva. D. Catarina odiava a terra em que nascera e que lhe roubava agora os filhos, e execrava ainda mais os homens e a lei e tudo! Era ignorante, embora inteligente e imaginosa; e na curta parábola em que o seu espírito se abalançava (arrojava), não podia atingir esses preceitos divinos, que se escrevem com sangue e que os homens leem corrente na sua alta sabedoria...

A honra? O brio da nação? Palavras! Ela não sabia senão que amava os filhos, que os tinha criado com terno apego e grande sacrifício, pedindo honestamente e humildemente ao Senhor Deus dos exércitos, que fizera as estrelas do céu, as águas dos rios, os cedros altivos e as areias do mar, que, na sua força prodigiosa, de tantas maravilhas lhe concedesse a simplíssima graça de a fazer morrer bem velhinha, deixando neste mundo os seus dois filhos... os seus dois únicos filhos!

Tinha caído a noite. D. Catarina procurou reagir. Acendeu a lâmpada, compôs na alcova próxima as roupas e as camas dos seus rapazes. Para quê? Eles não viriam... mas era um hábito, e ela obedecia com submissão a todos os seus velhos costumes.

Ergueu depois a vela à altura dos retratos deles, que se destacavam na parede caiada, em dois quadrinhos moldurados de veludo escuro.

O mais velho era um soldado garboso, claro e bonito como o pai, de olhos rasgados e peito franco e largo.O outro, ainda muito novo, puxara ao tipo da mãe: era magro, trigueiro, de rosto comprido e lábios simpáticos. D. Catarina beijou ambos com igual ternura, confundindo-os no mesmo enleio e no mesmo cuidado. Voltou depois para a saleta, abrindo os ouvidos aos rumores de fora...

Que estranho rumor seria agora aquele que percebia ao longe, no ar imóvel da noite? Fincou o olhar na treva. Ninguém! A estrada devia estar deserta. Tornou a entrar e foi sentar-se a um canto, com os cotovelos pontudos firmados nos joelhos e o rosto sumido entre as mãos. Caíra por fim numa atonia que lhe amolentava (enfraquecia) o espírito e petrificava o corpo; nem um leve estremecimento lhe agitava os músculos. Permaneceu por longas horas em igual postura, olhando para o mesmo ponto.

A pouco e pouco ideias desencontradas foram nascendo e fugindo simultaneamente no seu cérebro de devota extinta. Deus e o diabo surgiam juntos na mesma luz indecisa que se esbatia em sombras, que mudava e que desaparecia. Santa Catarina, sua patrona, a virgem douta, vinha também, na sua nudez pálida de martirizada, atravessar-lhe a mente num clarão frouxo e frio. E depois outros santos, e grandes heresias, procissões fantásticas, mal definidas, indeterminadas, arrastavam-se lentamente, mudando de feitio e mudando de cor, esfacelando-se, extinguindo-se...

D. Catarina permanecia surda a todas as bulhas exteriores, numa abstração de louca. O rumor recrudescera, recrudescera e avizinhava–-se. Os estalidos da fuzilaria crepitavam já perto. De vez em quando ribombava o canhão, atroador, medonho.

O solo e as casas tremiam então, abalados pelo estampido que o eco repetia em ondulações soluçadas. O clamor da guerra abafava tudo, terrivelmente, dolorosamente!

Entretanto, alguém vinha pela rua solitária, batendo a calçada com passos apressados. D. Catarina, prostradíssima, continuava em igual postura, olhando para o mesmo ponto... Bateram; ela então, acordando daquele marasmo de extenuada, ergueu-se de chofre e correu para a porta.

O coração saltava-lhe em ímpetos violentos, sufocadores.

– Meu filho!

Era o João, o mais velho, o soldado. A mãe estendeu-lhe os braços, sorrindo, enlevada, numa grande ventura. Ele não respondeu ao afago; e pálido, abstrato, sem ter nem mesmo levado a mão respeitosamente ao boné, foi direito à mesa e apoiou-se nela, deixando-se cair numa cadeira.

– Como você vem sujo de pólvora e como está cansado! Meu adorado filho, que medo que eu tinha! Agora fico pensando no outro... o meu Pedrinho... você sabe dele?

João voltou-se para a mãe com ar espantado.

– Diga, você viu seu irmão?

O soldado não respondeu; fixava a mãe com olhar parvo, muito aberto, como se não compreendesse o que ela lhe dizia. Vinha fugido, com a farda rasgada, aberta no peito, as mãos negras de pólvora, o rosto transtornado.

D. Catarina apavorou-se. Estaria doido, o João? Ameigando a voz ela pediu-lhe que repousasse e ofereceu-lhe de comer.

Que não; respondeu ele com um gesto.

– Então...

O espírito da mãe clareou-se de repente: o filho vinha só para dizer-lhe: vivo! E, já com medo de tornar a perdê-lo, instou para que fosse descansar.

– Não posso... venho fugido.

D. Catarina relanceou a vista por toda a sala, procurando esconder o filho, receosa de que o vissem de fora.

– Não quero esconder-me, tornou ele, percebendo-lhe a intenção; eu volto para lá... Eles conseguiram vir a terra... temos lutado muito!

– Os revoltosos desembarcaram?

– Sim.

– Então você viu Pedrinho?

João abaixou afirmativamente a cabeça.

– Nossa Senhora! Por que é que o não trouxe?

O soldado calou-se, suspirando baixo. A mãe repetia as perguntas, atropeladamente:

– Diga! diga! Ele falou com você? Está bom? Não o feriram? Meu filho! Que saudade! Ele é tão fraco... é preciso que ele venha; quero os dois aqui, vá buscá-lo... Não, não! Eu nem sei o que digo... Espere... vou eu!

De repente D. Catarina estacou diante do rosto mudo e pálido do filho. Parou-lhe o coração no peito.

– Por que é que você não diz nada?

O mesmo silêncio contrafeito.

– Responde, João! Pedrinho está vivo?!

A palavra custava a romper por entre os lábios do soldado, e foi ainda com um aceno de cabeça que ele disse que não.

D. Catarina caiu de joelhos com as mãos juntas.

– Misericórdia! Misericórdia! Mataram meu filho!

Depois, erguendo-se, exigiu do outro que lhe dissesse tudo, e instava:

– Quem foi que o matou? Você não viu? Por que não defendeu seu irmão? Diga, quem foi que o matou, diga, diga!

João olhou para a espada, que lhe pendia do lado batendo-lhe na perna.

A mãe não entendeu e repetiu:

– Meu adorado Pedrinho! Mas você não fala, João! Diga quem foi que o matou, diga tudo!

– Fui eu...

D. Catarina recuou espavorida; depois, avançando para o filho, bateu-lhe no peito, bem sobre o coração e bateu-lhe na cara, muitas vezes e com muita força. Toda ela vibrava na convulsão do desespero, e a voz, que a dor tinha desafinado e enrouquecido, uivava e rugia a um tempo, como um cão que se lamenta ou uma fera que ataca.

– Maldito! Matar seu irmão! Você, que mamou nos mesmos peitos, saiu do mesmo ventre, nasceu do mesmo amor! Amaldiçoado... Caim!

D. Catarina esmurrava o próprio corpo, à proporção que falava; e o filho ouvia-a calado, trêmulo. A mãe teimava por arrancar-lhe uma palavra ao menos e repetiu num desespero:

– Diga tudo, maldito. Por que foi que você o matou, por quê?

– Pela pátria!

– Pela pátria! repetiu ela, rindo, raivosamente. A pátria sou eu! Eu que sofri, e que só vivia do vosso amor! Isto não é guerra por amor da pátria: eu sei o que dizem por aí. Eu sei! Infame, maldito... some-te da minha vista, Caim! Caim!

D. Catarina caiu sem um soluço. João levantou-a, fê-la voltar a si e, de joelhos, chorosamente, contou-lhe tudo. Matara o irmão na treva, na desordem da luta, corpo a corpo. Por que viera o Pedro para ele com tanta fúria e arreganho? Matara quem o queria matar, defendera-se... porque, jurava, só conhecera a voz do irmão ao ouvir-lhe o ai derradeiro. Foi então que, procurando fixá-lo, viu-o deitado de costas, com os braços abertos e o peito estreito arquejando no desprender da vida.

D. Catarina repetiu:

– Amaldiçoado!

João concluiu: viera despedir-se da mãe, pedir-lhe que lhe perdoasse... Mais nada. Voltava para o combate.

A mãe não procurou retê-lo, e ele saiu chorando.

O soldado não voltou à casa materna...

D. Catarina começou a perdoar-lhe quando teve medo de perdê-lo.

Um dia, já muito sobressaltada, saiu para ir buscá-lo, num alvoroço, sem saber como perguntar por ele; mas logo no meio da estrada esbarrou com uns soldados que lhe disseram cruamente a verdade: o João tinha sido baleado e fora levado com outros, num montão de cadáveres.

O dia estava sombrio, uma manhã cinzenta e chuviscosa. Os soldados passaram. D. Catarina ficou imóvel, com os olhos na onda verde que vinha desfazer-se na escumilha fofa da espuma, à beira do caminho silencioso.

Ela tinha-o amaldiçoado... lembrava-se só daquilo. O João estava decidido a morrer... fora-lhe solicitar o perdão e só tinha ouvido em troca as palavras:

– Maldito! Caim!

O vento agitava-lhe o xale preto, que se abria em asas de corvo, e D. Catarina, alongando a vista, julgou ver ao longe os espectros dos filhos, com os braços hirtos, muito erguidos para o céu inclemente e as bocas articulando sem voz, num esforço medonho:

– Pela pátria! Pela pátria!

Batendo então com as mãos fechadas no peito fundo, D. Catarina, no seu egoísmo materno, respondeu-lhes, gritando em arrancos de louca:

– Calai-vos, ingratos! A pátria sou eu! Sou eu! Sou eu!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

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