quinta-feira, 16 de junho de 2022

Manuel Du Bocage (Sonetos) IX

Lá onde o Fado impenetrável mora,
Voa o menino Amor entre os Amores:
Loureja a trança, que matizam flores,
Cintila o facho, que a Razão devora :

Entra, saúda o nume, ao nume implora
Que de Marília os olhos tentadores
Vejam sempre ante as Graças, e os Louvores
De seus anos gentis surgir a aurora:

Fronte rugosa vezes três sacode
O deus, cujo poder tudo atropela,
E às súplicas de Amor destarte acode:

"Escape às minhas leis Marília bela,
seja, seja imortal ; durar não pode,
o mundo sem amor, amor sem ela".
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Quantas vezes , Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até reagia a mão do fado,
Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo de existência à morte!

Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida;
É da lei da Natureza ,é lei da sorte
Que seja o mal e o bem matriz da vida.
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Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitosa, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:

Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:

Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;

E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que umedece o Ganges.
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Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar c’o sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
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Adeja, coração, vai ter aos lares,
Ditosos lares, que Gertrúria pisa;
Olha, se inda te guarda a fé mais lisa,
Vê, se inda tem pesar dos teus pesares:

No fulgor dos seus olhos singulares
Crestando as asas, tua dor suaviza,
Amor de lá te chama, te divisa,
Interpostos em vão tão longos mares:

Dize-lhe, que do tempo o leve giro
Não faz abalo em ti, não faz mudança,
Que ainda lhe és fiel neste retiro:

Sim, pinta-lhe imortal minha lembrança;
Dá-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro,
Que alente, coração, tua esperança.

Fonte:
Manuel Maria Barbosa Du Bocage. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994.

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