terça-feira, 7 de junho de 2022

Hans Christian Andersen (O Porco de bronze)


Na cidade de Florença, não muito longe da Piazza del Granduca, fica uma pequena travessa. Creio que lhe dão o nome de Porta Rosa. Ali, em uma espécie de mercado de verduras, está um porco de bronze, artisticamente trabalhado. Escorre-lhe da boca um fio de água clara e fresca, e o animal, com a idade, foi tomando uma cor negra. Só o focinho brilha ainda, como se fosse polido, e de fato o é: centenas de crianças e de lazzaroni (mendigos) o seguram com as mãos, enquanto unem a boca ao focinho do animal, para beber. E é um quadro realmente belo o que apresenta aquele animal tão talhado, abraçado por um bonito menino seminu, que lhe roça pelo focinho os lábios frescos.

Quem visita Florença encontra facilmente aquele sítio. Basta perguntar a qualquer mendigo onde fica o porco de bronze e achá-lo-á logo.

Era à boca da noite, já no fim do inverno. Estavam as montanhas cobertas de neve, mas havia luar; e a luz do luar italiano vale tanto ou mais que a de um dia nublado do inverno setentrional. Lá o ar cintila e nos eleva da terra, ao passo que na Norte a fria coberta de cinza que pesa sobre nós, aperta-nos contra a terra fria e úmida, que um dia há de pesar também sobre o nosso caixão.

No jardim do castelo do grão-duque estivera sentado o dia inteiro um menininho todo esfarrapado; bem podia ele servir de símbolo da Itália: bonito, sorridente , e contudo sofria. Tinha fome e sede, mas ninguém lhe dava esmola; e ao escurecer, à hora de fechar o jardim o porteiro enxotou-o. Ficou ele muito tempo parado, absorto em cismas, na ponte que atravessava o Arno, olhando para as estrelas que cintilavam na água , aquém da suntuosa Ponte Della Trinità.

Dali seguiu o caminho que vai dar ao porco de bronze. Meio ajoelhado, cingiu-lhe o pescoço com os braços e, encostando a boca no focinho reluzente, bebeu a grandes sorvos  a água fresca. Ao pé estavam algumas folhas de alface e castanhas: era seu jantar. Além dele não havia ninguém na rua: pertencia-lhe toda, portanto. Confiante o menino sentou-se nas costas do porco, curvou-se para a frente, descansando a cabeça crespa sobre  a  do animal. E, sem dar tino do que fazia, adormeceu.

Era agora meia-noite. O porco de bronze mexeu-se. O menino ouviu distintamente estas palavras:

- Agora, menininho, segura-te bem, porque vou correr!

E lá se foi o porco correndo, com ele às costas. Foi um passeio maravilhoso! Primeiramente chegaram à Piazza del Granduca, e o cavalo de bronze, que a estátua do duque cavalga, relinchou fortemente. Os brasões multicores da antiga Casa Do Conselho Municipal pareciam quadros transparentes. O David de Miguel Angelo brandia a funda. E havia estranha agitação. Os grupos de bronze que representam Perseu e o Rapto das Sabinas pareciam vivos: erguia-se deles um brado de medo mortal, que ecoava por toda a praça.

Junto ao Palazzo degli Uffizi, sob as arcadas, onde a aristocracia costuma reunir-se para os divertimentos carnavalescos, o porco de bronze estacou. Depois, disse ao menino:

- Segura-te bem! Segura-te bem, pois vamos subir a escada!

E o menino, meio assustado, meio alegre, nada dizia.

Entraram em uma extensa galeria, onde ele já estivera, cujas paredes estavam cheias de pinturas. Ali se viam bustos e estátuas, banhadas em uma luz esplêndida, como a luz do claro dia. Mas o mais lindo foi quando se abriu a porta de uma das salas laterais.O menino já conhecia toda a magnificência que ali reinava, mas nessa noite via as coisas no auge do esplendor.

Ali estava, de pé, uma bela mulher sem vestes, tão bela como a natureza e o maior dos mestres da escultura a poderiam plasmar. Aos seus suaves movimentos, delfins saltitantes cercavam-lhe os pés; nos seus olhos fulgia a imortalidade. O mundo chama-a Vênus de Médici. Aos seus lados, estavam estátuas de mármore inteiramente impregnados da vida do espírito. Eram homens nus, maravilhosos; um deles afiava a espada e chamam-no de o Afiador; os gladiadores em luta formavam  outro grupo. E aquela espada  que se afiava, e aquela luta que se tratava - era tudo pela deusa da beleza.

Tanto esplendor deslumbrou o menino. As paredes resplandeciam de tantas cores. Tudo ali era vida e movimento. Mas nenhum dos quadros ousou sair inteiramente da moldura. A própria deusa da beleza, os gladiadores e o afiador permaneciam nos seus lugares, imobilizados pela glória irradiada da Madona, de Jesus e de São João. As imagens dos santos já não eram mais imagens: eram os próprios santos.

Que esplendor e que beleza, de sala em sala! O menino tudo contemplava, pois o porco de bronze ia andando passo a passo, através de toda aquela magnífica pompa. Uma visão substituía outra visão. Mas um único quadro gravou-se profundamente na alma do menino, e isso sobretudo por causa das crianças alegre e felizes que nele apareciam.

É possível que muita gente passe por aquele quadro sem lhe prestar atenção. E contudo, encerra ele um tesouro de poesia: representa Cristo, que desceu ao limbo. Aqueles que o rodeiam não são os condenados, mas os pagãos. Pintou-o florentino Angiolo Bronzino. O que nele aparece de mais belo é a expressão da fisionomia das crianças; a confiança plena de que entrarão no céu. Duas meninas já se abraçaram; um menino estende a mão a outro, que está mais abaixo, apontando com o dedo para si mesmo, como se dissesse: "Eu entrarei no céu!" Os mais velhos mostram uma atitude de incerteza; esperam e curvam-se diante  do Salvador em humilde adoração.

O olhar do menino fixou-se naquele quadro mais tempo do que nos outros. O porco de bronze permanecia imóvel. Ouviu-se então um leve suspiro. Vinha do quadro, ou saíra do peito do animal? O menino ergue as mãos para aquelas crianças risonhas; mas nesse momento o animal levou-o, a correr, para o vestíbulo aberto.

- Muito agradecido! Abençoado sejas, maravilhoso animal! - disse o menino, acariciando o porco de bronze que, com ele às costas, ia pela escada abaixo.

- Abençoado sejas tu! - respondeu o porco. - Prestei-te um serviço e tu me fizeste outro, pois é somente com uma criança inocente no dorso que adquiro forças para correr. Vês? Posso entrar até no nimbo dos raios da lâmpada que arde em frente da imagem da Madona: só não posso entrar na igreja. Mas enquanto estás comigo posso deitar um olhar pela porta aberta. Não desças das minhas costas! Senão ficarei como morto, como vês o dia inteiro, na Porta Rosa.

- Não, ficarei contigo, meu querido porco! - disse a criança.

E lá se foram correndo a bom correr, pelas ruas de  Florença; chegaram assim à praça, em frente à igreja da Santa Croce.

Repentinamente abriu-se a porta e a luz dos círios do altar estendeu-se até a praça deserta.

De um monumento sepulcral, na nave lateral esquerda, irradiou um esplendor maravilhoso. Eram milhares de estrelas móveis que circundavam um túmulo, formando uma auréola: era o túmulo , de Galileu. É um monumento simples, mas a escada vermelha que fica ao fundo tem muita significação: é o símbolo da arte, pois indica um caminho que, por uma escada de brasas, conduz ao céu. Todos os profetas do espírito buscam o céu, como profetas Elias.

Na nave da direita, as estátuas , dentro de seus ricos sarcófagos, pareciam dotadas de vida. Lá estava Miguel Ângelo, mais além Dante , coroado de louro: Alfieri, Maquiavel: jazem ali, lado a lado, os grandes homens que são orgulho da Itália. É uma igreja magnífica, muito mais bela, ainda que menor do que a catedral de mármore de Florença.

Parecia que aquelas vestes de pedra tinham movimento, e que os vultos sublimes iam erguendo a cabeça, cada vez mais alto, mais alto , para contemplar, por entre os sons da música e dos cânticos, o radiante altar multicor, onde os meninos vestidos de branco agitam os turíbulos de ouro. E o aroma arrebatador encheu a igreja, transbordando para a vasta praça.

Mas quando o menino estendeu a mão para aquele esplendor, o porco deitou de novo a correr e ele teve de se segurar com toda a firmeza. Soprava-lhe o vento nos ouvidos e ainda ouviu o rangido dos gonzos da porta, que se fechava. Naquele mesmo instante pareceu-lhe que perdia o conhecimento; um frio glacial despertou-o e ele abriu os olhos.

Era já dia. Estava ainda deitado no dorso do porco de bronze, mas escorregara um pouco por sobre o animal. que ainda lá estava no mesmo lugar em que costuma repousar, na Rua Porta Rosa.

Ao lembrar-se daquela a quem chamava mãe, e que na véspera o mandara sair em busca de dinheiro, encheu-se o menino de terror. Não tinha nada: só fome e sede! Abraçou ainda uma vez o pescoço do porco de bronze e beijou-lhe o focinho. E com um gesto de adeus foi-se dali para uma das vielas mais estreitas, que mal dava passagem a burro carregado. Chegou a uma grande porta entreaberta; subiu a escada de pedra, entre paredes sujas; servia de corrimão uma corda. Chegou a uma galeria aberta, onde se via farrapos estendidos. Dali outra escada levava ao pátio, onde havia um poço, do qual partiam cabos de ferro para todos os andares da casa. E os baldes oscilavam no ar, enquanto a roldana guinchava, derramando a água sobre o pátio. Outra escada velhíssima levava para cima.

Dois marinheiros russos, muito alegres, que iam descendo, aos pinotes, quase deitaram abaixo o pobre menino. Atrás deles apareceu uma mulher, já não muito moça, mas cheia de vida; seus cabelos eram negros e abundantes.

- Que trazes? - perguntou ao menino.

- Não fiques zangada! - suplicou ele. - Não ganhei nada, nada!

E segurou o vestido da mãe, fazendo menção de beijá-lo.

Entraram num quarto pequenino, um quarto que nem quero descrever. Direi apenas que havia lá uma panela de alças, cheia de brasas, daquelas a que chamam marito. A mulher pegou nela, para aquecer os dedos, e dando uma cotovelada no menino, disse-lhe:

- É claro que trouxeste dinheiro.

A criança pôs-se a chorar e a mulher deu-lhe pontapés e mais pontapés, até fazê-lo gritar.

- Cala a boca, senão quebro-te a cabeça, gritalhão!

E, enquanto dizia, ia agitando o fogareiro. Com um grito de terror, o menino abaixou-se; nesse momento ia entrando a vizinha, carregando um marito.

- Felicita! Que fazes à criança?

- A criança é minha. Posso matá-la se quiser - e a ti também, Giannina!

E brandia o fogareiro, enquanto a outra levantava o seu para se defender. As panelas entrechocaram-se com tanta violência que voaram pelo quarto os cacos , cinzas e faíscas, Mas o menino esgueirou-se pela porta, atravessou o pátio e saiu para a rua. Correu, correu, até perder o fôlego. Parou diante da igreja, cuja grande porte lhe abrira à noite, e entrou. Lá dentro tudo resplandecia. Ajoelhou-se junto do primeiro túmulo à direita, o de Miguel Ângelo e desatou a chorar.

Entrava e saía gente. Terminou a missa. Ninguém deu pela presença da criança, a não ser um um burguês idoso, que parou e o olhou um instante. Depois foi andando, como os outros.

Torturado pela fome e pela sede, o menino sentia-se doente; parecia-lhe que ia desmaiar. Foi-se arrastando para um canto entre os monumentos de mármore, e ali pegou no sono. Já à tarde acordou-o um leve puxão. Viu então, sobressaltado, que estava ao seu lado aquele mesmo burguês idoso.

- Que é isto? Estás doente? Onde moras? Passaste o  dia inteiro aqui?

Foram essas algumas das perguntas que o velho fez. Respondeu-lhe o menino e o velho levou-o consigo para a sua casinha, que ficava perto, em uma travessa. Entraram em  uma oficina  de luveiro, onde estava uma mulher costurando diligentemente. Um pequeno lulu da Pomerânia, tosquiado tão rente que se via a pele rosada, saltou para cima da mesa e foi parar em frente ao menino.

- As almas inocentes se reconhecem - disse a mulher, acariciando a cachorrinha e a criança.

Deu-lhe aquela boa gente um prato de comida, e depois que comeu e bebeu disseram-lhe que podia passar a noite ali. Deram-lhe uma caminha pobre, mas que para ele, que tantas vezes dormira no frio chão de lajes, representava luxo principesco. E o rico sono dormiu, sonhando com os belos quadros e com o porco  de bronze!

No dia seguinte, de manhã, o pai Giuseppe saiu. A pobre criança não se alegrou nada com essa saída, pois sabia que dela resultaria a sua volta para o poder da mãe. Abraçou-se então com a cachorrinha brincalhona, e a mulher olhava para ambos com bondade.

Que resposta teria trazido o pai Giuseppe?

Falou demoradamente com a mulher, que fez sinal de assentimento com a cabeça, acariciando o menino. Depois ela disse:

- É uma criança magnífica, que pode  vir a ser um luveiro tão bom como  tu foste. Tem os dedos delicados e flexíveis: Nossa Senhora destinou-o para luveiro.

O menino ficou com eles e a  mulher ensinou-lhe a costura. Comia e dormia bem; tornou-se uma criança alegre e mexia com Belíssima - a cachorrinha - até que a mulher, ameaçando-o com o dedo, zangou-se um dia e ralhou com ele.

O menino tomou aquilo a sério. Ficou pensativo no seu cubículo, que dava para a rua, onde secavam peles. As janelas eram barradas por grossas varas de ferro. Ele não pode conciliar o sono: vinha-lhe sempre à ideia o porco de bronze. De repente ouviu um ruído que vinha de fora: "Claque, claque, claque!" Era um porco, não havia  dúvida! Correu à janela, mas nada viu: acabaram-se o ruído.

- Ajuda o senhor a levar a caixa de tintas. - disse no dia seguinte a luveira ao menino.

O moço vizinho, que era pintor, ia passando; levava na mão a caixa e uma grande tela enrolada. O pequeno pegou na caixa e acompanhou o moço. Escolheu este o mesmo caminho da galeria e subiram a mesma escada que o menino conhecia tão bem, desde aquela noite em que montara o porco de bronze. Conhecia também as estátuas e os quadros, a bela. Vênus de mármore e aquela outra, que vivia em cores. E tornou a ver a Madona, Jesus e São João.

Pararam diante do quadro de Bronzino, em que se vê Cristo no limbo e as crianças sorrindo em roda dele, na doce expectativa do céu. E o pobrezinho também sorriu.

- Agora podes ir para casa. - disse o pintor, quando viu que o menino ficara a seu lado, enquanto ia armando o cavalete.

- O senhor dá-me licença de olhar enquanto pinta? - perguntou a criança. - Posso ver como é que prende a tela no quadro?

- Ainda não vou pintar. - respondeu o moço, tirando o crayon da caixa.

Movia-se rapidamente a mão; tomando a olho as medidas do quadro grande, começou o trabalho. E, se bem que apenas aparecesse um traço muito fino, foi surgindo o Cristo, a pairar, bem como se via no quadro colorido.

- Mas vai-te embora, afinal! - disse o pintor.

E a passos silenciosos, lá foi indo o menino para casa; sentou-se, para aprender...a coser luvas.

Mas o dia inteiro seus pensamentos vagaram pela galeria de quadros. Daí resultou que picou o dedo com a agulha, mostrando-se desajeitado. Mas em compensação não buliu mais com a Belíssima.

Ao escurecer, vendo aberto o portão, saiu . Ainda fazia frio, mas o brilho das estrelas era belo e alegre. O menino andou peregrinando pelas ruas já desertas; achou-se em frente ao porco de bronze; curvou-se para lhe beijar o focinho polido e sentou no seu dorso.

- Ó animal abençoado! Quanta  saudade tenho tido de ti! Hoje vamos dar um passeio. Mas o porco de bronze permaneceu imóvel, a brotar água fresca do focinho O menino, escarranchado sobre o animal, sentiu que lhe puxavam o casaco. Era a Belíssima! A pequena Belíssima, de pelo tosquiado, ladrando como se dissesse:

- Olha, vê que também eu estou aqui! Por que estás neste lugar?

Um dragão, vomitando chamas, não teria espantado mais o menino do que ver a cachorrinha ali. Imagine! A Belíssima na rua , sem estar vestida, como costumava dizer a mulher! Que iria resultar daquilo? A cachorrinha nunca saía no inverno sem estar abrigada em uma pele de ovelha, cortada e cosida especialmente para ela. A pele, toda guarnecida de guizos e laçarotes, era presa do lado de baixo e no pescoço por meio de fitas vermelhas. A cachorrinha parecia um cabrito, quando saía na rua, sem estar vestida! Que iria acontecer agora? Foram-se-lhe todas as fantasias. o menino deu mais um beijo no porco de bronze e pegou a cachorrinha, que tiritava; saiu então a correr com ela nos braços.

- Que levas aí, fugindo assim? - gritaram dois soldados da guarda-civil, no caminho.

A cachorrinha ladrou, furiosa! Tirando-a do menino, perguntaram ainda:

- Onde roubaste esta cachorrinha tão bonita?

E como o menino pediu-lhes, chorando, que lha devolvessem, declararam:

- Pois se não a roubaste, podes avisar em casa que a procurem na Delegacia.

Deram-lhe o endereço e foram-se, levando Belíssima.

E foi uma coisa horrível! O menino não sabia se devia afogar-se no Arno ou se tornava à casa e confessava tudo. Com certeza iam matá-lo! Por fim decidiu:

- Mas era melhor que me matassem mesmo! Eu quero morrer, pois assim irei para perto de Jesus e de Nossa Senhora...

E por esse motivo foi que voltou: para ser morto.

Encontrou o portão fechado e não pode alcançar a aldrava. Não aparecia ninguém na rua. Afinal achou uma pedra e com ela batendo o portão, atroadoramente. De dentro perguntaram:

- Quem é?

- Sou eu! A Belíssima fugiu. Abram e matem-me! Grande foi o susto na casa, mas quem se horrorizou foi a senhora, pois olhando imediatamente para a parede, para o lugar onde estava habitualmente pendurada a roupa da cachorrinha, viu que lá estava a pele de ovelha.

- A Belíssima... a Delegacia! - exclamou a mulher. - Ó menino malvado! Como foi que levaste de casa? Agora ela vai morrer de frio... Um animal tão mimoso no meio daqueles soldados!

Teve o marido de sair imediatamente; a mulher lamentava-se, o menino chorava, Reuniram-se todos os moradores da casa, entre eles estava o pintor, que chamou o menino e o colocou entre os joelhos para interrogá-lo. Foi somente aos trancos que conseguiu apanhar todas a história do porco de bronze e da galeria - história que lhe pareceu um tanto fantástica. Consolou o menino e procurou sossegar a velha. Mas esta não se deu por satisfeita enquanto não chegou o pai Giuseppe com a Belíssima, que estivera no meio dos soldados! Grande foi então a alegria. O pintor acariciou o menino e deu-lhe um punhado de desenhos.

Que coisas maravilhosas! Quantas cabeças engraçadas! E lá estavam também o porco de bronze. Não se podia imaginar nada mais lindo. Fora fixado no papel mediante muito poucas linhas, e ali estava também esboçada a casa que lhe ficava por detrás.

Ah! Quem soubesse desenhar e pintar seria capaz de reunir ao redor de si o mundo inteiro!

No primeiro momento em que  se viu só, no dia seguinte, o menino pegou no lápis e procurou copiar o esboço do porco de bronze no lado em branco de um dos desenhos. Conseguiu-o, mas o desenho saiu meio  torto e desajeitado; uma perna era muito grossa, outra muito fina. Mas ainda assim, reconhecia-se o porco e o menino exultou de alegria. observou que o lápis não se movia exatamente como era preciso, mas no dia seguinte surgiu outro porco de bronze ao lado do primeiro e cem vezes melhor, e o terceiro já saiu tão bom que todo o mundo pode identificá-lo.

Mas a costura das luvas ia piorando e os recados pela cidade eram feitos com muita lentidão. O porco de bronze ensinou-lhe que todas as figuras podem ser representadas no papel, e a cidade de Florença é um livro de figuras! É só querer folheá-lo. Na Piazza della Trinità erguia-se uma coluna esguia, pedestal da deusa da Justiça, que lá está de olhos vedados e balança na mão. Também ela um dia apareceu fixada no papel - desenhara-a o pequeno aprendiz de luveiro. Ia crescendo a coleção de quadros, mas até então só continha reprodução de coisas mortas. Mas um dia em que Belíssima andava aos pulinhos em roda do menino, disse-lhe ele:

- Fica quietinha, que vais entrar na minha coleção de quadros e vais ficar muito bonita.

Mas a cachorrinha não quis ficar quietinha. E ele teve  de amarrá-la, prendendo-a pela cabeça e pelo rabo. Ela latia e dava pulos e o menino viu que tinha de retesar a corda. Nesse instante entrou a mulher do luveiro.

- Ah! bandido! Coitado do animalzinho!

E foi só o que pode dizer. Empurrou o menino para um lado, a pontapés, enxotou-o de casa, chamando-o de menino ingrato, que não prestava para nada, criança ímpia. E beijava , lavada em lágrimas, a sua pequena Belíssima, quase estrangulada.  

Ia o pintor entrando, de volta a casa, e ... foi aqui que esta história tomou outro rumo.

No ano de 1834 houve uma exposição na Academia delli Arti, em Florença. Dois quadros, colocados ao lado um do outro, atraíam a atenção de grande número de visitantes. No menor aparecia um menininho alegre, sentado a desenhar. O modelo era um lulu da Pomerânia, branco, com o pelo tosquiado de uma maneira muito esquisita. Como o animalzinho não quisera ficar quieto, o menino amarrara-o com um barbante, pela cabeça e pela cauda. Havia naquele quadro um cunho de verdade, que a todos agradava.

Contava-se que o pintor era um jovem florentino, que em criança fora encontrado na rua e criado por um velho luveiro, e  que aprendera o desenho sem mestre. Um pintor, ora célebre, descobrira-lhe o talento no dia em que o enxotavam de casa, por ter ele amarrado, para lhe servir de modelo, o luluzinho, que era o mimoso da mulher do luveiro.

O aprendiz de luveiro chegara a ser um grande pintor, como o demonstravam aquele dois quadros, sobretudo o maior. Neste via-se uma única figura - um belo menino coberto de andrajos, que dormia, sentado em plena rua, recostado no porco de bronze da Rua Porta Rosa. Todos conheciam aquele lugar. A criança, descansava os braços sobre a cabeça do porco e dormia profundamente. O lampião que arde em frente à imagem de Nossa Senhora lançava uma luz forte  de grande efeito, sobre o pálido e magnífico rosto da criança. Era um quadro maravilhoso.

Circundava-o uma grande moldura dourada, a qual estava suspensa uma coroa de louros . Mas por entre as folhas verdes serpeava uma fita preta - um longo crepe; o jovem pintor morrera poucos dias antes.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicado originalmente em 1842.

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