quarta-feira, 22 de junho de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLII

GRANDE SOL A ENTRETER


Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...

Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...
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HÁ LUZ NO TOJO E NO BREJO
 
HÁ luz no tojo e no brejo
Luz no ar e no chão...
Há luz em tudo que vejo,
Não no meu coração...

E quanto mais luz lá fora
Quanto mais quente é o dia
Mais por contrário chora
Minha íntima noite fria.
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HÁ MÚSICA. TENHO SONO
 
Há música.  Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
'Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.

A música é pobre mas
Não será mais pobre a vida?
Que importa que eu durma? Faz
Sono sentir a descida.
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HÁ QUANTO TEMPO NÃO CANTO
 
Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sal nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda a vida
Para cantar não sonhou.
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HÁ UMA MÚSICA DO POVO
 
Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado...

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...

E ouço-a embalado e sozinho...
É isso mesmo que eu quis ...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção ...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração ...

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!
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HÁ UM FRIO E UM VÁCUO NO AR
 
Há um frio e um vácuo no ar.
‘Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.

Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
‘Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.
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HÁ UM GRANDE SOM NO ARVOREDO
 
Há um grande som no arvoredo.
Parece um mar que  há lá em cima.
É o vento, e o vento faz um medo...
Não sei se um coração me estima...

Sozinho sob os astros certos
Meu coração não sai da vida...
Ó vastos céus, iguais e abertos,
Que é esta alma indefinida?
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HÁ UM MURMÚRIO NA FLORESTA
 
Há um murmúrio na floresta,
Há uma nuvem e não já.
Há uma nuvem e nada resta
Do murmúrio que ainda está
No ar a parecer que há.

É que a saudade faz viver,
E faz ouvir, e ainda ver,
Tudo o que  foi e acabará
Antes que tenha  o que esquecer
Como a floresta esquece já.

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