quinta-feira, 2 de junho de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Demônios eternos)

Nota do blog: Devido a falha técnica, quando da publicação deste texto no dia 30 de maio, faltou o parágrafo inicial. Por esta razão, está sendo publicado novamente na íntegra.
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QUANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível, que me pelava todo, da Cuca, que vovô João, dizia, a toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada, e me levaria dentro de um saco preto para um lugar distante. E eu fazia muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou de separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisas erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado para cortar cana na vendinha, onde comercializava pastéis, quibes, coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava em cena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente, numa espécie de cinto que comia, sem dó nem piedade, por cima do lombo.

Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar uma porção de salgados (já preparados na véspera) para, às sete horas em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao público e vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.

Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu também estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velho Airão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas, entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada para pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria da garotada ficava do lado de fora comendo, sentada na calçada, porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora que fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido o jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoado de moedinhas. Depois, separavam cada uma pelo seu valor correspondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó. Só, então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam.

Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante que havia no quarto do casal, e vovó Marta seguia para a cozinha para preparar o jantar. Geralmente, a última refeição se constituía numa suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes. Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias de manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se fazia presente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre por perto, prestes a dar o bote e me matar. O Orlando, um amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, se movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e, praticamente, todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo, costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava, com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho “danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudasse direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da notícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado, filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma outra coleguinha de classe (que sentava ao meu lado direito) não acontecia diferente. Aninha morava com uma tia feia e chata, de cabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinha mãe, nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da via férrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio, em que viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros, que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destino ao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simples menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado de choque.

Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto. Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos. Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um carrega dentro de si. Serão imortais esses mal nascidos, alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados, que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichos de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços, invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estão dentro de nossos corações.

A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta, nem leva ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos mais…

Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras mitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes davam vida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medo bobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido, inoculado, como uma vacina de horrores, pronto para entrar em cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi da Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos um receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma doença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca, definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja, no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela que ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá, desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele, preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz apagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto.

Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho do nosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem de dentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo o infinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios têm a vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas narinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas se movimentam, segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, a amedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois, tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão e estarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão e estarão presentes em nosso caminho, como aquela gigantesca árvore do mal, fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobre nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais vida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce do centro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões. Precisamos exorcizar esses demônios, banalizar a barbárie, de maneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida, apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossa memória.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book.

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