A profissão de bufarinheiro está regulamentada; contudo, ninguém mais a exerce, por falta de bufarinhas. Passaram a vender sorvetes e sucos de fruta, e são conhecidos como ambulantes.
Conheci o último bufarinheiro de verdade, e comprei dele um espelhinho que tinha no lado oposto uma bailarina nua. Que mulher! Sorria para mim como prometendo coisas, mas eu era pequeno, e não sabia que coisas fossem. Perturbava-me.
Um dia quebrei o espelho, mas a bailarina ficou intacta. Só que não sorria mais para mim. Era um cromo como outro qualquer. Procurei o bufarinheiro, que não estava mais na cidade, e provavelmente teria mudado de profissão. Até hoje não sei qual era o mágico: se o bufarinheiro, se o espelho.
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A BELEZA TOTAL
A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.
A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.
O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito.
Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.
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ABOTOADURAS
O maior fabricante de abotoaduras de punho fechou a indústria depois de convencer-se de que é infinitamente reduzido o número de camisas de manga comprida, à disposição da humanidade. E, mais, que os exemplares deste gênero, ainda existentes, são providos de botões, dispensando abotoaduras.
— Trabalhei a vida inteira no setor — lastimava-se — e almejava legar a meus filhos a tradição das abotoaduras de punho, como requinte terminal de uma camisa digna desse nome. Os fatos ergueram-se contra mim. Não posso mais produzir abotoaduras de punho para camisas sem punho ou de punho abastardado por míseros botões de plástico.
Concluiu que é o fim da civilização, e ia enforcar-se numa camisa esporte, estampada, quando esta, movida por vento súbito, saiu pelos ares, qual bandeira solta. E era tão bonito o esvoaçar do pano bigarreado, tão graciosas as evoluções, que o homem resolveu desistir da morte e aplicar sua fortuna em uma indústria colossal de camisas de manga curta.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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