A PRIMEIRA AVENTURA
O corpo se desfez na terra:
o sopro que Deus lhe dera
está livre como o vento.
Nunca pensou que pudesse
andar por tantas lonjuras
como anda o pensamento.
Mas não era de turismos...
Voltou, ficou por ali...
leu o resto de uma página
que deixara interrompida...
Sentou no topo da escada.
Sentou à beira da estrada.
Morte — que grande estopada!
Até que um Anjo Glorioso
passou
olhou
não viu nada
...um anjo tão esplendente
que a própria luz o cegava!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
CANÇÃO
Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.
Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.
Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...
que eu custei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.
Meu Deus, as coisas que ela dizia!
as coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.
As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.
O mundo é um búzio oco,
menino...
Mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
INTERROGAÇÕES
Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
LUNAR
As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...
E que importa se uns nossos artefatos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar...
E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.
Não tanto... Alguém me há de ler com um meio-sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
O ADOLESCENTE
A vida é tão bela que chega a dar medo,
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.
Medo que ofusca: luz!
Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:
Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
— vestida apenas com o teu desejo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
O AUTORRETRATO
No retrato que me faço
— traço a traço —
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
RITMO
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco
Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes
No arroio
a lavadeira bate roupa
bate roupa
bate roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!
O corpo se desfez na terra:
o sopro que Deus lhe dera
está livre como o vento.
Nunca pensou que pudesse
andar por tantas lonjuras
como anda o pensamento.
Mas não era de turismos...
Voltou, ficou por ali...
leu o resto de uma página
que deixara interrompida...
Sentou no topo da escada.
Sentou à beira da estrada.
Morte — que grande estopada!
Até que um Anjo Glorioso
passou
olhou
não viu nada
...um anjo tão esplendente
que a própria luz o cegava!
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CANÇÃO
Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.
Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.
Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...
que eu custei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.
Meu Deus, as coisas que ela dizia!
as coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.
As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.
O mundo é um búzio oco,
menino...
Mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.
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INTERROGAÇÕES
Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.
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LUNAR
As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...
E que importa se uns nossos artefatos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar...
E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.
Não tanto... Alguém me há de ler com um meio-sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo…
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O ADOLESCENTE
A vida é tão bela que chega a dar medo,
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.
Medo que ofusca: luz!
Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:
Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
— vestida apenas com o teu desejo!
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O AUTORRETRATO
No retrato que me faço
— traço a traço —
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
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RITMO
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco
Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes
No arroio
a lavadeira bate roupa
bate roupa
bate roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!
Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. 1976.
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. 1976.
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