sábado, 21 de janeiro de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 34

 

A. A. de Assis (Já comeu truta?)


Filmes e romances com frequência falam de um peixe que, talvez por isso, me deixou sempre com água na boca. Trata-se da truta. Comi pela primeira vez há uns 20 anos, em Nova Friburgo, na região montanhosa do estado do Rio. No Brasil, pelo que me consta, só há desses peixes nas águas frias das corredeiras de serras.

Em Nova Friburgo perguntei a um morador local onde era possível comer truta. Ele me informou que o melhor lugar era um restaurante chamado Bürgermeister, que ficava em frente ao ponto final do ônibus do bairro do Cônego.

Lucilla e eu pegamos o tal ônibus, descemos no ponto final, e lá de fato estava o restaurante, espaço acanhado, mas bem acolhedor. Veio um garçom alemão falando com sotaque forte, pedimos truta para dois. Ele explicou que, se a gente não fosse comer muito, bastava uma. Pois que viesse. Ele ia pegar o peixe no fundo do quintal, ainda vivo, e preparar.

Meia hora depois veio aquela belezura: tostadinha, temperos especiais, ao lado um baita prato de batatas ao gosto germânico. O garçom trabalhou a truta com engenho e arte, extraiu a espinha dorsal, deixou a bonitona pronta para ser saboreada, cheirosa, provocosa. Nem toquei nas batatas, que batata a gente come em qualquer lugar. Meu propósito era anotar no currículo a ingênua glória de haver comido truta.

Na verdade, não garanto que a truta seja mais gostosa que a tainha ou que outro peixe menos cinematográfico. Mas o importante não é a coisa em si, e sim o que a gente imagina que seja. Desde menino via trutas no cinema e lia sobre elas nos livros. Fiquei com elas na fantasia. De repente estava com uma no prato, preparada por um cozinheiro alemão, servida por um garçom de sotaque, num restaurante que parecia essas tabernas de contos medievais.

Uns cem quilômetros abaixo, atravessando a cidade de São Fidélis, rola o rio Paraíba do Sul, onde há robalo e lagosta de água doce, dois petiscos de supina gostosura. Quando você passar por lá, não perca a chance de provar. Mas robalo e lagosta não são personagens de filmes. Truta é. A truta e “as filhas da truta”, como me disse um pescador das cujas ditas.

Vale então, portanto, subir a serra, descobrir lá em cima um restaurante meio escondido no ponto final do ônibus do Cônego, esperar que o cozinheiro pegue a truta no riacho que passa no fundo do quintal, e depois lamber os beiços.

Sempre é bom lembrar que o ato de comer tem dupla finalidade. Uma delas é renovar as nossas energias, a outra é dar de presente ao paladar um indescritível prazer. No caso das trutas, comê-las é um ato de poesia. E se você pensa que paguei caro, engana-se. A truta, as batatas, a caneca de vinho, os pães típicos da casa... tudo aquilo, para duas pessoas, custou menos que uma anchova grelhada em Balneário Camboriú.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17.11.22)
 
Fonte:
Blog do autor. https://aadeassis.blogspot.com

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 1


Ao se casar o carteiro,
o bebê chega depressa;
— Comigo o tiro é certeiro,
e a encomenda, via expressa!
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A toda pergunta feita
respondeu com tanto "não"
que lhe aplicou a Receita
multa por "só... negação"!
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A vendedora ladina
jura que não é trapaça:
— Olha o véu que a Messalina
"não" usou por ser devassa!
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Com Adão no paraíso,
Eva pensa ao ir pra cama;
— Ah! Se eu tivesse juízo,
dava pra ele... um pijama!
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Convidado a ver pelada,
diz, irado, o garanhão;
— Mulher pelada? Que nada!
Só vi homem de calção!
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Diz a galinha-d'angola:
— Meu marido é mesmo um saco!
Quando tiro a camisola,
logo ele grita: — "Tô fraco"!
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Em meu sonho, a sogra berra:
— Joga mil no burro e dobra! —
Mas seu palpite me ferra;
burro fui eu... deu a cobra!
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Imperfeita é minha lira:
meu "muso" é manco, coitado!
O verso que ele me inspira
sempre sai de pé quebrado!
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Na feira de antiguidade,
ao ancião combalido,
perguntam, não sem maldade:
— Vem comprar ou ser vendido?
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Na noite do seu casório,
sendo um noivo muito antigo,
usou até suspensório,
mas não suspendeu o artigo...
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No escuro, sente a "mão-boba"...
Grita a velha: — Patifão! —
Mas, entre os dentes, diz: — Oba!
Bendito seja o apagão!
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O ladrão me deu pancada,
me roubou e saiu rindo...
Pra vingar, xinguei, danada,
cada nome feio lindo!
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— O meu marido é carteiro,
porém bem cedo aprendeu
que, no lar, o tempo inteiro,
só quem dá as cartas sou eu!
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O meu problema é pagar
altos custos de energia;
basta a luz eu apagar
que acesa fica a Maria!…
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Pão-duro, o cara declara:
— Ter cara-metade é asneira.
Se a metade já é cara,
imagina a esposa inteira!
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Pensa o luso: — Um pesadelo!
Tudo meu em hipoteca...
É de arrepiar cabelo!
A sorte é que sou careca...
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Quando a Zazá sai da linha,
o Zezé nunca se importa;
a mulher é uma galinha,
mas ele, um galinha-morta!
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Quis apagar a queimada,
mas caiu numa esparrela,
pois, estando "alambicada",
a mais queimada foi ela!
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— Que injustiça aos meus instintos!
Amo o galo, ando na linha,
choco ovos, cuido dos pintos
e me chamam de "galinha"?!!!
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Sendo tão feia a encalhada,
com reza só conseguiu
um cego, que, na "largada"
pelo braile... desistiu!
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— Senhor, escutai meu rogo,
dai-me um exímio parceiro!
— Filha, pra apagar seu fogo
só lhe arranjando um bombeiro!
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Suja o muro o pichador.
Preso, grita e faz baderna;
— Isto é um engano, Doutor!
Só fiz arte pós-moderna.
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Tendo o Zé imensa pança,
queixa-se sua mulher
que a barriga dele avança,
porém nunca o que ela quer.
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— Tenho grande novidade:
estou grávida. Que apuro!
— Foi contra sua vontade?
— Que nada! Foi contra o muro.
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— Vem furar onda comigo! —
propõe, na praia, a faceira,
Diz o luso; — Que castigo!
Eu não trouxe a furadeira...

Fonte:
Enviado pela trovadora.
Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013.

Hans Christian Andersen (A pedra filosofal)


Você conhece a história de Holger Danske? Então não a repetiremos, mas perguntaremos se você se lembra de como "Holger Danske conquistou a grande terra da Índia, a leste no fim do mundo, para a árvore chamada 'a Árvore da o Sol'", como diz Christen Pedersen. Você conhece Christen Pedersen? Não faz diferença se não o fizer.

Holger Danske deu a Prester John seu poder e governo sobre a Índia. Você já ouviu falar do Prester John? Sim? Bem, não faz diferença se você não ouviu falar, porque ele não entra em nossa história. Você vai ouvir sobre a Árvore do Sol "na Índia, a leste no fim do mundo", como as pessoas acreditavam que fosse então, pois não haviam estudado sua geografia como nós - mas isso não faz qualquer diferença!

A Árvore do Sol era uma árvore magnífica, como nunca vimos e provavelmente nunca veremos. Sua coroa se estendia por quilômetros ao redor; era realmente um bosque inteiro, pois cada um de seus galhos menores formavam, por sua vez, uma árvore inteira. Palmeiras, faias, plátanos, sim, e muitos outros tipos de árvores cresceram aqui, árvores que podem ser encontradas em todo o mundo; elas brotavam, como pequenos galhos, dos grandes galhos, e estes, com seus nós e curvas, eram como colinas e vales, atapetados com um verde suave e aveludado e cobertos com milhares de flores. Cada galho era como um grande prado florido ou o mais belo jardim. O abençoado Sol brilhou sobre ela, pois, lembre-se, era a Árvore do Sol.

Aqui se reuniam pássaros de todo o mundo, pássaros das florestas primitivas da América, dos roseirais de Damasco, ou dos bosques selvagens da África, onde o elefante e o leão imaginam que só eles reinam. Os pássaros polares vieram para cá, e a cegonha e a andorinha naturalmente também. Mas os pássaros não eram as únicas criaturas vivas aqui; o veado, o esquilo, o antílope e centenas de outros animais bonitos e de patas leves se sentiam em casa neste lugar. A copa da árvore era um jardim amplo e perfumado, e bem no centro dele, onde os grandes galhos se erguiam em uma colina verde, havia um castelo de cristal com vista para todos os países do mundo. Cada torre erguia-se na forma de um lírio, e podia-se subir pelo caule, pois no interior havia escadas em caracol. Podia-se sair para as folhas - essas eram as varandas; e no topo da flor havia um belo e brilhante salão redondo, sem teto acima dele, apenas o céu azul, com o sol ou as estrelas.

Lá embaixo, nos amplos salões do castelo, havia o mesmo esplendor, embora de um tipo diferente. Aqui o mundo inteiro se refletia nas paredes. Podia-se ver tudo o que acontecia, então não havia necessidade de ler jornais; não havia jornais aqui, de qualquer maneira. Tudo podia ser visto em imagens vivas, se alguém quisesse ou pudesse ver tudo; pois muito é demais, mesmo para o homem mais sábio. E o mais sábio de todos os homens viveu aqui.

O nome dele é muito difícil para você pronunciar e, de qualquer forma, não faz diferença. Ele sabia tudo o que um homem na terra pode saber ou esperar saber; ele conhecia todas as invenções que haviam sido feitas ou ainda seriam feitas; mas ele não sabia nada além disso, pois tudo no mundo tem seus limites. O velho e sábio rei Salomão tinha apenas metade da sabedoria deste homem, e ainda assim ele era muito sábio de fato, e governava as forças da natureza e dominava os espíritos poderosos; até a própria Morte foi forçada a relatar todas as manhãs com uma lista daqueles que iriam morrer durante o dia. Mas o próprio rei Salomão também teve que morrer, e esse era o pensamento que muitas vezes ocupava a mente do sábio e poderoso governante do castelo da Árvore do Sol. Por mais que ele se eleve acima dos homens em sabedoria, ele também deve morrer algum dia. Ele sabia que ele e seus filhos também, devem murchar como as folhas da floresta e virar pó. Ele podia ver a raça humana desaparecer como folhas nas árvores e novos homens surgirem para tomar seus lugares. Mas as folhas que caíram nunca mais viveram; eles se tornaram pó sobre outras plantas.

O que aconteceu com o homem quando o Anjo da Morte veio até ele? O que poderia ser a Morte? O corpo tornou-se deteriorado. E a alma? Sim, o que era a alma? O que aconteceu com isso? Para onde foi? "Para a vida eterna", disse a voz reconfortante da religião. Mas qual foi a transição? Onde alguém morava e como? "No céu acima", disseram as pessoas piedosas; "e lá vamos nós." "Acima de?" repetiu o Sábio, e olhou para a lua e as estrelas. "Lá em cima?"

Do globo terrestre ele viu que "acima" e "abaixo" poderiam ser um e o mesmo, dependendo de onde a pessoa estivesse na rotação da terra. E se ele subisse tão alto quanto as montanhas mais altas da terra erguem seus picos, lá no ar que chamamos de claro e transparente - "o céu puro" - haveria uma escuridão negra, espalhada por tudo como um pano, e o sol teria um brilho acobreado sem emitir raios, e nossa terra estaria envolta em uma névoa alaranjada. Quão estreitos eram os limites do olho mortal e quão pouco podia ser visto pelo olho da alma! Mesmo os mais sábios pouco sabiam daquilo que é o mais importante para nós.

Na câmara mais secreta daquele castelo estava o maior tesouro da terra - o Livro da Verdade. Página após página, o Sábio havia lido tudo. Todo homem pode ler este livro, mas apenas partes dele; para muitos a seus olhos, as letras parecem desaparecer, de modo que as palavras não podem nem ser soletradas; em algumas páginas a escrita é tão pálida que parecem folhas em branco. Mas quanto mais sábio um homem se torna, mais ele pode ler; e os homens mais sábios leem mais. O Sábio soube unir a luz do sol e a luz das estrelas com a luz da razão e os poderes ocultos de sua alma, e sob essa luz ofuscante muitas coisas se destacavam claramente nas páginas diante dele. Mas no capítulo do livro intitulado "Vida Após a Morte" não havia nem uma única letra para ver. Isso o entristeceu.

Como o sábio Rei Salomão, ele entendia a linguagem dos animais e podia interpretar sua fala e suas canções. Mas isso não o tornou mais sábio. Ele havia aprendido os poderes das plantas e dos metais, poderes que poderiam ser usados ​​para curar doenças ou retardar a morte, mas nenhum que pudesse destruir a morte. Em todas as coisas criadas que pôde alcançar, procurou a luz que iluminaria a certeza da vida eterna, mas não a encontrou. Folhas em branco ainda apareciam no Livro da Verdade diante dele. O cristianismo lhe deu palavras de promessa de vida eterna na Bíblia, mas ele quis ler em seu livro; e lá ele não podia ver nada sobre isso.

O Sábio teve cinco filhos, quatro filhos, educados tão bem quanto os filhos dos pais mais sábios deveriam ser, e uma filha, adorável, gentil e inteligente, mas cega. No entanto, essa aflição não foi uma privação para ela, pois seu pai e irmãos eram olhos mortais para ela, e sua própria percepção aguçada deu-lhe uma visão mental clara.

Os filhos nunca se aventuraram mais longe do castelo do que a extensão dos galhos da árvore, nem a irmã jamais saiu de casa. Eles eram crianças felizes no lar de sua infância - a bela e perfumada Árvore do Sol.

Como todas as crianças, elas ficavam felizes quando as histórias eram contadas, e seu pai lhes contava muitas coisas que outras crianças nunca teriam entendido, mas essas crianças eram tão espertas quanto a maioria dos nossos velhos. Ele explicou a eles as imagens da vida que eles viram nas paredes do castelo - o trabalho dos homens e a marcha dos eventos em todas as terras da terra. Frequentemente, os filhos desejavam poder ir ao mundo e participar dos grandes feitos de outros homens, e então o pai explicava a eles que era difícil e cansativo estar no mundo, que o mundo não era como eles viam sua bela casa.

Ele lhes falou do bem, do verdadeiro e do belo, e explicou que esses três se uniam no mundo e que, sob a pressão que suportavam, endureciam e se transformavam em uma pedra preciosa, mais pura que a água de um diamante - uma joia esplêndida. de valor para o próprio Deus, cujo brilho ofusca todas as coisas; isso foi chamado de "Pedra do Homem Sábio". Ele lhes disse que, assim como o homem poderia obter conhecimento da existência de Deus ao procurá-lo, também estava dentro do poder do homem obter a prova de que uma joia como a "Pedra do Homem Sábio" existia. Essa explicação estaria além da compreensão de outras crianças, mas essas crianças poderiam entendê-la e, com o tempo, outras crianças também aprenderão a entender seu significado.

Eles perguntaram ao pai sobre o verdadeiro, o belo e o bom, e ele lhes contou muitas coisas - como quando Deus fez o homem do pó da terra, Ele deu à Sua obra cinco beijos, beijos de fogo, beijos de coração, que nós agora chame os cinco sentidos. Através deles, aquilo que é verdadeiro, belo e bom é visto, sentido e compreendido; através deles, é valorizado, protegido e aumentado. Cinco sentidos foram dados, física e mentalmente, interior e exteriormente, ao corpo e à alma.

De dia e de noite, as crianças pensavam profundamente sobre todas essas coisas. Então o mais velho dos irmãos teve um sonho maravilhoso; e, estranhamente, o segundo irmão teve o mesmo sonho, e o terceiro também, e o quarto - todos eles sonharam exatamente a mesma coisa. Eles sonharam que cada um saiu pelo mundo e encontrou a "Pedra do Sábio", que brilhava como uma luz radiante em sua testa quando, na madrugada da manhã, ele cavalgava seu cavalo veloz pelos prados verdejantes de casa para o castelo de seu pai. Então a joia lançou uma luz e um brilho tão divinos sobre as páginas do livro que tudo o que estava escrito ali sobre a vida além túmulo foi iluminado. Mas a irmã não sonhava em se aventurar no mundo, pois isso nunca havia passado por sua cabeça. Seu mundo era o castelo de seu pai.

"Vou cavalgar pelo vasto mundo", disse o irmão mais velho. "Devo descobrir como é a vida lá e me misturar com as pessoas. Farei apenas o que é bom e verdadeiro, e com isso protegerei o belo. Muitas coisas mudarão para melhor quando eu estiver lá."

Sim, seus pensamentos eram ousados ​​e grandes, como nossos pensamentos sempre estão em casa, antes de sairmos para o mundo e encontrarmos vento e chuva, espinhos e cardos.

Agora, em todos esses irmãos, os cinco sentidos foram altamente desenvolvidos, tanto interior como exteriormente; mas em cada um deles um sentido atingiu uma agudeza que ultrapassava os outros quatro. No caso do mais velho, esse sentido marcante era a Visão. Isso seria um benefício especial para ele. Ele tinha olhos para todos os tempos, disse ele, e olhos para todas as nações, olhos que podiam olhar para as profundezas da terra, onde tesouros estão escondidos, ou para as profundezas do coração das pessoas, como se apenas uma vidraça transparente fosse antes deles; em outras palavras, ele viu mais do que nós poderíamos na face que cora ou empalidece, no olho que chora ou ri.

Cervos e antílopes o escoltaram até os limites ocidentais de sua casa, e lá os cisnes selvagens o receberam e o levaram para o noroeste. E agora ele estava longe no mundo, longe da terra de seu pai, que se estendia para o leste até os confins da terra.

Quão amplamente seus olhos se abriram de espanto! Havia muitas coisas para serem vistas aqui; e as coisas parecem muito diferentes quando um homem as olha com seus próprios olhos, em vez de apenas em uma foto, como ele havia feito na casa de seu pai, por melhor que seja a foto, e as da casa de seu pai eram extraordinariamente boas. A princípio, ele quase perdeu os olhos de espanto com todo o lixo, todas as decorações carnavalescas que deveriam representar o belo; mas ele não os perdeu completamente, e logo encontrou pleno uso para eles. Ele desejava trabalhar completa e honestamente para compreender o belo, o verdadeiro e o bom. Mas como eles foram representados no mundo? Ele viu que muitas vezes o elogio que por direito pertencia ao belo era dado ao feio; que o bem era muitas vezes esquecido, e a mediocridade foi aplaudida quando deveria ter sido sibilada. As pessoas olhavam para o vestido e não para quem o usava, pediam um nome em vez de um valor e guiavam-se mais pela reputação do que pelo valor. Era o mesmo em todos os lugares.

"Devo atacar essas coisas", pensou, e assim o fez.

Mas enquanto ele buscava a verdade, apareceu o Diabo, que é o pai de todas as mentiras. Com prazer ele teria arrancado os olhos desse vidente, mas isso teria sido muito brusco, pois o Diabo trabalha de maneira mais astuta. Ele o deixou continuar a buscar e ver o verdadeiro e o bom; mas enquanto o jovem fazia isso, o Diabo soprou um cisco em seu olho, em ambos os olhos, um cisco após o outro; isso, é claro, prejudicaria até mesmo a visão mais clara. Então o demônio soprou sobre os ciscos até que se tornassem vigas e os olhos fossem destruídos. Lá o Vidente ficou como um cego no grande mundo e não tinha fé nele, pois havia perdido sua boa opinião sobre ele e sobre si mesmo. E quando um homem perde a confiança no mundo e em si mesmo, tudo acaba com ele.

"Por toda parte!" cantaram os cisnes selvagens, voando pelo mar em direção ao leste. "Por toda parte!" repetiram as andorinhas, também voando para o leste em direção à Árvore do Sol. Não eram boas notícias as que levavam para a casa do jovem.

"O Vidente deve ter se saído mal", disse o segundo irmão, "mas o Ouvinte pode ter mais sorte." Pois neste filho o sentido da audição foi desenvolvido em um grau muito alto; tão agudo era que ele podia ouvir a própria grama crescer.

Ele se despediu com amor e partiu de casa, cheio de boas habilidades e boas intenções. As andorinhas o seguiram, e ele seguiu os cisnes, até que ele estava longe de casa, longe no vasto mundo.

Então ele descobriu que alguém pode ter muitas coisas boas. Pois sua audição era muito boa. Ele não apenas podia ouvir a grama crescer, mas também podia ouvir o coração de cada homem bater, seja na tristeza ou na alegria. Para ele, o mundo inteiro era como a grande oficina de um relojoeiro, com todos os relógios marcando "Tick, tack" e todos os relógios da torre batendo "Ding, dong". O barulho era insuportável. Por um longo tempo seus ouvidos se estenderam, mas por fim todo o barulho, os gritos, tornaram-se demais para um homem. Então "garotos de rua", de cerca de sessenta anos de idade - anos sozinhos não fazem homens - levantaram um tumulto, do qual o Ouvinte teria rido, exceto pela conversa caluniosa que se seguiu e ecoou por todas as casas e ruas; foi ouvido até nas estradas do país. A falsidade avançou e fingiu ser o mestre; sinos nos bonés dos tolos tilintaram e insistiram que eram sinos de igreja, até que o barulho se tornou demais para o Ouvinte e ele enfiou os dedos nos ouvidos. Mas ele ainda podia ouvir cantos falsos e sons malignos, fofocas e palavras vãs, escândalos e calúnias, gemidos e gemidos, por todos os lados - nada disso valia a pena ouvir. O Paraíso nos ajuda! Era impossível suportar; foi tudo muito louco! Ele enfiou os dedos cada vez mais fundo em seus ouvidos, até que finalmente seus tímpanos estouraram. Agora ele não ouvia absolutamente nada; ele não podia ouvir o verdadeiro, o belo e o bom; sua audição deveria ter sido a ponte pela qual ele teria atravessado para ela. Ele ficou taciturno e desconfiado, finalmente não confiando em ninguém, nem mesmo em si mesmo, e isso foi muito lamentável. Ele não seria capaz de descobrir e trazer para casa a joia divina, então desistiu; até se entregou, e isso foi o pior de tudo. Os pássaros que voaram para o leste trouxeram a notícia disso também para o castelo do pai na Árvore do Sol; nenhuma carta chegou lá, pois não havia serviço de correio.

"Agora vou tentar", disse o terceiro irmão. "Eu tenho um olfato acentuado."

Não era uma prática muito boa para ele se vangloriar assim, mas era o jeito dele, e devemos aceitá-lo como ele era. Ele tinha um temperamento alegre e era um poeta, um grande poeta; ele podia cantar muitas coisas que não sabia falar, e as ideias vinham a ele muito mais rapidamente do que a outros.

"Eu posso sentir o cheiro de um rato!" ele disse. E foi ao seu olfato altamente desenvolvido que ele atribuiu sua grande gama de conhecimentos sobre o reino do belo.

"Cada ponto perfumado no reino do belo tem seus habitantes", disse ele. "Alguns gostam do cheiro das flores de macieira; outros gostam do cheiro de um estábulo. Um homem sente-se em casa na atmosfera da taverna, entre as velas fumegantes de sebo, onde o cheiro de aguardente se mistura com a fumaça do tabaco barato. Outro prefere estar perto do cheiro forte de jasmim, ou perfumar-se com óleo forte de cravo. Alguns buscam a brisa fresca do mar, enquanto outros escalam a montanha mais alta para observar a pequena vida agitada abaixo."

Sim, assim ele falou. Parecia-lhe como se já tivesse estado no mundo inteiro e conhecido pessoas próximas a eles. Mas essa convicção surgiu de dentro dele; era o poeta dentro dele, o presente que o céu lhe dera em seu berço.

Despediu-se de seu lar ancestral na Árvore do Sol e seguiu a pé pelo agradável campo. Quando chegou aos limites de sua casa, montou um avestruz, que corre mais rápido que um cavalo, e quando mais tarde encontrou os cisnes selvagens, saltou sobre o mais forte deles, pois amava a variedade. Para longe ele voou através do mar para terras distantes de grandes florestas, lagos profundos, montanhas imponentes e cidades orgulhosas. E onde quer que ele aparecesse, parecia que a luz do sol viajava com ele pelo campo, pois cada flor e arbusto exalava uma nova fragrância, consciente de que por perto havia um amigo e protetor que os entendia e conhecia seu valor. Então a roseira aleijada estendeu seus ramos, abriu suas folhas e deu flores às mais belas rosas; até o caracol de madeira preto e viscoso viu sua beleza.

"Vou colocar minha marca na flor", disse o caracol. "Agora eu cuspi nele e não há mais nada que eu possa fazer por isso."

“Assim sempre se passa o belo neste mundo!”, disse o Poeta.

Então ele cantou uma música sobre isso à sua maneira, mas ninguém ouviu. Então ele deu a um baterista dois centavos e uma pena de pavão, e então arranjou a música para o tambor, e o fez tocar por toda a cidade, em todas as ruas e vielas. Quando as pessoas ouviram, disseram que entenderam - foi muito profundo!

E assim o Poeta cantou outras canções sobre o belo, o bom e o verdadeiro, e as pessoas as ouviram entre as velas fumegantes das tavernas, ouvidas nos prados frescos, nas florestas e em alto mar. Parecia que esse irmão teria mais sorte do que os outros dois.

Mas isso irritou o Diabo, e então ele prontamente começou a trabalhar com todo o pó de incenso e fumaça que encontrou, o mais forte, que pode sufocar qualquer um, e que ele pode preparar com arte suficiente para confundir até mesmo um anjo - e certamente, portanto, , um pobre poeta! O Diabo sabe como se apoderar de um homem assim! Ele cercou o Poeta tão completamente com incenso que o pobre homem perdeu a cabeça, esqueceu sua missão, sua casa, tudo - até ele mesmo; ele então desapareceu na fumaça.

Quando os passarinhos souberam disso, ficaram tristes e por três dias não cantaram. O caracol de madeira preta ficou ainda mais preto, não de tristeza, mas de inveja.

"Eles deveriam ter queimado incenso para mim", disse ele, "pois fui eu quem lhe deu a ideia da mais famosa de suas canções, a canção de tambor sobre o caminho do mundo. Fui eu quem cuspiu na rosa! Posso trazer testemunhas para provar isso!"

Mas nenhuma notícia disso chegou à casa do Poeta na Índia, pois todos os passarinhos ficaram de luto e em silêncio por três dias; e quando o tempo de luto terminou, sua dor foi tão profunda que eles esqueceram por quem choraram. E é assim que acontece.

"Agora terei que ir para o mundo e ficar longe como os outros", disse o quarto irmão.

Ele tinha um humor tão bom quanto o terceiro, embora não fosse poeta, o que era um bom motivo para ele ter bom humor. Aqueles dois haviam enchido o castelo de alegria, e agora o que restava dessa alegria estava indo embora. Os homens sempre consideraram a visão e a audição os dois sentidos mais importantes, aqueles que é mais desejável fortalecer e aguçar; os outros três sentidos são geralmente vistos como subordinados. Mas essa não era a crença desse filho, pois ele cultivou especialmente seu gosto de todas as maneiras possíveis, e o gosto é realmente muito poderoso. Governa o que entra na boca e na mente; por isso este irmão provou tudo o que havia em potes e panelas, em garrafas e barris, explicando que esse era o lado grosseiro de sua função. Para ele, todo homem era uma vasilha com algo cozinhando dentro, e todo país era uma enorme cozinha,

"Talvez eu tenha mais sorte do que meus irmãos. Devo seguir meu caminho - mas como devo viajar? Os balões já foram inventados?" perguntou ao pai, que sabia de todas as invenções que haviam sido feitas ou que seriam no futuro. Mas os homens ainda não haviam inventado balões, navios a vapor ou ferrovias. "Então irei de balão", disse ele. "Meu pai sabe como eles são feitos e dirigidos, e isso eu posso aprender. Eles ainda não foram inventados, então as pessoas vão pensar que é algum espírito do ar. Quando eu terminar com o balão, vou queimá-lo e para isso, você deve me dar algumas peças de outra invenção que está por vir - fósforos."

Quando ele recebeu o que queria, ele voou para longe. Os pássaros voaram muito mais longe com ele do que com seus irmãos. Eles estavam curiosos para saber como seria o voo, pois pensaram que era algum novo tipo de pássaro. Mais e mais vieram verificar até que o ar estava preto com os pássaros; eles vieram como a nuvem de gafanhotos sobre a terra do Egito. E então agora ele, o último irmão, estava no mundo inteiro.

"O Vento Leste é um bom amigo e ajudante para mim", disse ele.

"Você quer dizer o Vento Leste e o Vento Oeste!" disseram os ventos. "Você não poderia ter voado para o noroeste se nós dois não tivéssemos ajudado você."

Mas ele não ouviu o que o vento disse, e isso não faz diferença. Os pássaros cansaram de voar junto com o balão. Muito se falou sobre aquela coisa, disseram alguns deles. Tornou-se vaidoso! "Não vale a pena voar; não é nada!" E então eles se retiraram; todos se retiraram, pois de fato muito havia sido feito do nada.

O balão desceu sobre uma das maiores cidades, e o aeronauta pousou no ponto mais alto, o campanário da igreja. O balão voltou a subir no ar, o que não deveria ter acontecido; não sabemos para onde foi, mas isso não importa, pois ainda não foi inventado. Lá o jovem sentou-se no campanário da igreja, os pássaros não mais pairando ao seu redor; ele estava tão cansado deles quanto eles dele.

Todas as chaminés da cidade fumavam fervorosamente.

"Aqueles são altares erguidos em sua homenagem", disse o Vento, que achou que deveria dizer algo agradável.

Ele se sentou lá em cima corajosamente e olhou para as pessoas nas ruas. Uma pessoa estava se exibindo, orgulhosa de sua bolsa; outro orgulhava-se da chave que trazia pendurada em seu cinto, embora não tivesse nada para abri-la; um estava orgulhoso de seu casaco comido por traças, outro de seu corpo comido por vermes.

"Vaidade!" ele disse. "Preciso descer, mergulhar meus dedos naquela panela e prová-la. Mas vou sentar aqui mais um pouco, pois o vento sopra muito bem em minhas costas; vou descansar um pouco. 'É bom dormir muito pela manhã, quando se tem muito que fazer', diz o preguiçoso. A preguiça é a raiz de todos os males, mas não há mal em nossa família. Ficarei aqui enquanto o vento soprar, isso é bom."

Então ele se sentou lá; mas como estava sentado no catavento do campanário, que girava e girava com ele, teve a falsa ideia de que ainda soprava o mesmo vento, por isso ficou sentado ali; ele poderia muito bem ficar um longo tempo e ter um bom gosto.

De volta à Índia, no castelo da Árvore do Sol, ficou vazio e silencioso depois que os irmãos, um após o outro, foram embora.

"As coisas estão indo mal com eles", disse o pai. "Eles nunca trarão para casa a joia brilhante; não é para mim. Eles estão todos mortos e enterrados!" E então ele se curvou sobre o Livro da Verdade e olhou para a página que deveria lhe contar sobre a vida após a morte, mas não havia nada para ele ver ou aprender com ela.

Agora sua filha cega era sua única alegria e consolo; ela se agarrou a ele com profunda afeição e, para sua felicidade e paz de espírito, desejou que a preciosa joia fosse descoberta e trazida para casa. Com tristeza e saudade, ela pensou em seus irmãos. Onde eles estavam? Onde eles poderiam estar morando? De todo o coração ela desejou poder sonhar com eles, mas, estranhamente, nem mesmo em seus sonhos ela poderia alcançá-los.

Por fim, certa noite, ela sonhou que suas vozes soavam até ela, chamando-a do vasto mundo, e ela não pôde se conter, mas viajou para muito, muito longe; e ainda assim ela parecia ainda estar na casa de seu pai. Ela nunca conheceu seus irmãos. mas em seu sonho ela sentiu uma espécie de fogo queimando em sua mão que não a doía - era a joia brilhante que ela trazia para seu pai.

Quando acordou, pensou por um momento que ainda segurava a pedra na mão, mas era o cabo da roca que segurava. Durante aquela longa noite ela fiara incessantemente, e na roca havia um fio mais fino que a mais fina teia de aranha; os olhos humanos não podiam distinguir os fios separados nele, tão finos eram. Ela o havia umedecido com suas lágrimas e era forte como uma corda. Ela se levantou; sua decisão foi tomada - o sonho deve se tornar realidade.

Ainda era noite e seu pai estava dormindo. Ela deu um beijo em sua mão e então, pegando sua roca, amarrou a ponta do fio no castelo de seu pai. Se não fosse por isso, em sua cegueira, ela nunca teria conseguido encontrar o caminho de casa; ela deve se apegar a esse fio e não confiar nem em si mesma nem nos outros. Da Árvore do Sol ela arrancou quatro folhas; estes ela confiaria aos ventos para levar a seus irmãos como cartas de saudação, caso ela não os encontrasse lá fora, no vasto mundo.

Como ela poderia se sair, aquela pobre criança cega? Ela poderia agarrar-se ao seu fio invisível. Ela possuía um dom que faltava a todos os outros - sensibilidade - e em virtude disso parecia ter olhos na ponta dos dedos e ouvidos no coração.

Então ela saiu silenciosamente para o mundo estranho, barulhento e rodopiante, e onde quer que ela fosse, o céu ficava tão brilhante com a luz do sol que ela podia sentir os raios quentes; e o arco-íris se espalhou pelo ar azul onde antes havia nuvens escuras. Ela ouviu o canto dos pássaros e sentiu o cheiro dos pomares de laranjeiras e macieiras com tanta força que parecia sentir o gosto da fruta. Tons suaves e sons deliciosos alcançaram seus ouvidos, mas com eles vieram uivos e rugidos; múltiplos pensamentos e opiniões se contradiziam estranhamente. Os ecos dos pensamentos e sentimentos humanos penetraram nas profundezas de seu coração. Um refrão soou tristemente:

Nossa vida terrena está cheia de névoa e chuva; E no escuro da noite choramos de dor!

Mas então ela ouviu uma melodia mais brilhante:

Nossa vida terrena é como uma roseira, tão brilhante; Está cheio de sol e verdadeiro deleite!

E se um refrão soasse amargamente:

Cada pessoa pensa apenas em si; Esta verdade para nós é frequentemente mostrada.

Do outro lado veio a resposta:

Ao longo de nossa vida, uma Fada do Amor Guia nossos passos lá do céu.

Ela podia ouvir as palavras:

Há mesquinhez aqui, por toda parte; Tudo tem seu lado errado.

Mas então ela ouviu:

Tanta coisa boa é feita aqui Que nunca chega aos ouvidos do homem.

E se às vezes as palavras zombeteiras soavam para ela:

Goze de tudo, ria de brincadeira, Ria junto com todo o resto!

Uma voz mais forte veio do coração da Cega:

Confie em Deus e em si mesmo; ore então que Sua vontade seja feita para sempre.

Sempre que a Cega entrava no círculo da humanidade e aparecia entre as pessoas, jovens ou velhas, o conhecimento do verdadeiro, do bom e do belo brilhava em seus corações. Onde quer que ela fosse, quer entrasse no estúdio do artista, ou no salão decorado para a festa, ou na fábrica lotada com suas rodas giratórias, parecia que um raio de sol estava entrando, como se a corda de um alaúde soasse, ou um flor exalava seu perfume, ou uma refrescante gota de orvalho caía sobre uma folha murcha.

Mas o Diabo não suportou isso. Com mais astúcia do que dez mil homens, ele concebeu uma maneira de realizar seu propósito. Do pântano ele coletou pequenas bolhas de água estagnada e murmurou sobre elas um eco de palavras falsas, para dar-lhes força. Em seguida, misturou poemas heroicos comprados e epitáfios mentirosos, tantos quanto pôde encontrar, ferveu-os em lágrimas de inveja, coloriu-os com tinta gordurosa que raspou das faces desbotadas de uma velha senhora, e com tudo isso formou uma donzela , com a aparência e porte da Cega, o bendito anjo da sensibilidade. Então a trama do Diabo foi consumada, pois o mundo não sabia qual dos dois era o verdadeiro e, de fato, como o mundo poderia saber?

Confie em Deus e em si mesmo; ore então que Sua vontade seja feita, para sempre.

Cantou a Menina Cega com total fé. Então ela confiou aos ventos as quatro folhas verdes da Árvore do Sol como cartas de saudação a seus irmãos, e ela estava certa de que eles chegariam a seus destinos e a joia seria encontrada, a joia que ofusca todas as glórias do mundo. Da fronte da humanidade brilharia até a casa de seu pai.

"Até na casa de meu pai", ela repetiu. "Sim, o lugar da joia é nesta terra, e trarei comigo mais do que a promessa dela. Posso sentir seu brilho; em minha mão fechada ela cresce cada vez mais. Cada grão de verdade, por mais fino que seja era, que o vento girava em minha direção, eu apanhei e entesourei; deixei penetrar nela a fragrância do belo, que há tanto no mundo, mesmo para os cegos. Ao primeiro acrescentei o som do coração batendo, fazendo o bem. Trago apenas pó comigo, mas ainda é o pó da joia que procurávamos, e é em grande quantidade. Tenho toda a minha mão cheia dele!"

Então ela estendeu a mão para o pai. Ela estava em casa. Ela havia viajado para lá com a rapidez dos pensamentos em fuga, sem nunca ter soltado o fio invisível que conduzia ao lar.

Com a fúria de um furacão, os poderes do mal varreram a Árvore do Sol, e suas rajadas de vento correram pela porta aberta, para dentro do santuário do Livro da Verdade.

"Vai ser levado pelo vento!" gritou o pai, e ele agarrou a mão que ela havia aberto.

"Nunca!" ela respondeu com calma segurança. "Não pode ser soprado; posso sentir os raios aquecendo minha alma."

E o pai percebeu uma chama deslumbrante, bem onde o pó brilhante derramava de sua mão sobre o Livro da Verdade, que daria a certeza de uma vida eterna. Agora, na página em branco brilhava uma palavra brilhante - uma palavra apenas -

ACREDITEM

E mais uma vez os quatro irmãos estavam com o pai e a irmã. Quando a folha verde caiu sobre o seio de cada um, uma grande saudade de casa se apoderou deles e os trouxe de volta; os pássaros de passagem os seguiram, assim como o cervo, o antílope e todas as criaturas selvagens da floresta, pois todos desejavam compartilhar de suas alegrias - e por que não deveriam quando podiam?

Muitas vezes vimos como uma coluna de poeira gira em torno de onde um raio de sol irrompe por uma fresta de uma porta em uma sala empoeirada. Mas isso não era poeira comum e insignificante; até as cores do arco-íris são sem vida em comparação com a beleza que se mostrou aqui. Da página do livro, da brilhante palavra Acredite, surgiu cada grão de verdade, enfeitado com a beleza do belo e do bom, flamejando mais brilhante do que a poderosa coluna de fogo que conduziu Moisés e os filhos de Israel à terra de Canaã. E da palavra Acreditar surgiu a ponte da Esperança, estendendo-se ao amor eterno no reino do Infinito.

Fonte:
Traduzido do Inglês por GP Feldman, do Wikisource. Publicado originalmente em 1858.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 25: Tempo de Amar

 

Filemon Martins (Conto da vida)


Gilberto estava casado há mais de sete anos. Muitos foram os seus romances na juventude. Mas poucos sabiam que o seu verdadeiro amor ficou perdido há treze anos atrás. Miridan, era este seu nome, com dezessete anos, morava no bairro do Limão, em São Paulo. Ele, com vinte e três anos, numa pensão do Brás. No velho e nostálgico bairro do Brás. Trabalhava a semana inteira, mas no sábado e domingo, lá estava ele com sua amada. O tempo passou e não se sabe exatamente porque, eles não se casaram.

Gilberto ficou arrasado. Queria fugir da vida. Isolou-se completamente. Tentou esquecê-la. Não deu mais notícias, nem quis saber notícias dela. Tempos depois, ainda jovem, ele se casou. Morava na periferia de São Paulo. Naquele bairro, já havia comprado uma casa e levava uma vida relativamente boa. Trabalhava, é verdade, mas quem não trabalha hoje em dia? Só se estiver desempregado. Não era o caso do Gilberto.

Do seu casamento, nasceram dois filhos. Lindos. Eram o sol de sua vida. Aparentemente, não lhe faltava nada. Parecia feliz. Que mais ele queria? A esposa também trabalhava, dividindo a despesa, que ninguém é de ferro.

Quase sempre tomavam o trem até a estação do Brás.

Numa certa manhã, entraram no trem, e a esposa se sentou; ele, porém, ficou em pé. Depois, a esposa lhe disse: há um lugar ali, sente-se. De imediato, obedeceu. Não observou que no banco já havia uma moça, com quem, mais tarde, começou a conversar.

Ficou meio tonto. Aquela voz não lhe era estranha. Havia alguma coisa no ar. Olhou e pensou em silêncio: não é possível, é ela, a Miridan. Estava ali, lado a lado, com sua paixão maior. Fora ela, há treze anos atrás, sua inspiração, sua razão de viver. Não queria acreditar. Seu coração batia cada vez mais forte. E começou a matutar: Nem o destino resistira a tanto amor. Era demais. Agora, ela estava ali, perto dele, também casada e com um filho. Cursava o último ano de Direito. Inteligente. Batalhadora. Mas não era feliz no casamento.

Passaram-se alguns dias e algumas noites e ele continuou pensando nela. E ela, pensando nele. Não era possível esperar mais. Marcaram encontro. Foi-se o primeiro, o segundo, o terceiro... Não havia como fugir. Era a força do amor, a emoção de sentir a vida. De viver outra vez.

Tinha que partir. E assim o fez. Um belo dia, largou tudo: mulher, filhos e partiu. Em busca de uma nova vida. De um novo e antigo amor. Definitivo, duradouro ? Quem sabe ?

Algum tempo depois foi visto numa outra cidade e pelo que se sabe, sua mulher e filhos nunca mais o viram, nem tiveram notícias dele. Sua esposa o esperou por mais de 6 ou 7 anos com a aliança no dedo. Aqui, nunca mais ele voltou. Desapareceu do mapa. Não se sabe se o Gilberto encontrou a tão sonhada felicidade e sequer se ficaram juntos ou se ainda vivem para confirmar esta história.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLIX


O céu de todos os invernos

 
O céu de todos os invernos
Cobre em meu ser todo o verão...
Vai pras profundas dos infernos
E deixa em paz meu coração!

Por ti meu pensamento é triste,
Meu sentimento anda estrangeiro;
A tua ideia em mim insiste
Como uma falta de dinheiro.

Não posso dominar meu sonho.
Não te posso obrigar a amar.
Que hei de fazer? Fico tristonho.
Mas a tristeza há de acabar.
Bem sei, bem sei...

A dor de corno
Mas não fui eu que lho chamei.
Amar-te causa-me transtorno,
Lá que transtorno é que não sei...

Ridículo? É claro. E todos?
Mas a consciência de o ser,
fi-la bastante clara deitando-a a rodos
Em cinco quadras de oito sílabas.
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O Contra-Símbolo
 
Uma só luz sombreia o cais.
Há um som de barco que vai indo.
Horror! Não nos vemos mais!
A maresia vem subindo.

E o cheiro prateado a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tomar-se este como porto
E este cais a bruxulear.

Um apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinheiral? -
O expresso inútil atrasado.

E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto do barco ido.
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Ó curva do horizonte, quem te passa,
 
Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista,
não de ser ou 'star.
Não chameis à alma, que da vida esvoaça,
Morta. Dizei: Sumiu-se além no mar.
Ó mar, sê simbolo da vida toda -
Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!
Finda a viagem da morte e a terra à roda,
Voltou a alma e a nau a aparecer.
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Ó ervas frescas que cobris
 
Ó ervas frescas que cobris
As sepulturas,
Vosso verde tem cores vis
A meus olhos, já servis
De conjeturas.

Sabemos bem de quem viveis
Ervas do chão,
Que sossego é esse que fazeis
Verde na forma que trazeis
Sem compaixão.

Ó verdes ervas, como o azul medo
Do céu sem Ser,
Cunhado como entre segredo
Da vida viva, e outro degredo
Do infinito haver.

Tenho um terror como todo eu
Do verde chão...
Ó sol, não baixes já no céu,
Quero um momento ainda meu
Como um perdão.
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O grande sol na eira
 
O grande sol na eira
Talvez seja o remédio...
Não quero quem me queria,
Amarem-me faz tédio.

Baste-me o beijo intacto
Que a luz dá a luzir
E o amor alheio e abstrato
De campos a florir.

O resto é gente e alma:
Complica, fala, vê.
Tira-me o sonho e a calma
E nunca é o que é.
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Ouço passar o vento na noite
 
Ouço passar o vento na noite.
Sente-se no ar, alto, o açoite
De não sei quem em não sei quê.
Tudo se ouve, nada se vê.

Ah, tudo é igualdade e analogia.
O vento que passa, esta noite fria.
São outra coisa que a noite e o vento -
Sonhos de Ser e de Pensamento.

Tudo no narra o que nos não diz.
Não sei que drama a pensar desfiz
Que a noite e o vento passados são.
Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.

Tudo é uníssono e semelhante.
O vento cessa e, noite adiante,
Começa o dia e ignorado existo.
Mas o que foi não é nada isto.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
http://www.jornaldepoesia.jor.br/pessoa.html

Guy de Maupassant (O Guarda)

 


Contavam-se aventuras e desastres de caça, no fim de jantar. Um velho amigo de todos nós, o sr. Boniface, grande matador de bichos e grande bebedor de vinho, homem robusto e alegre, cheio de espírito, bom senso e filosofia, de uma filosofia irônica e resignada, manifestando-se por patuscadas provocantes e nunca por tristezas, — disse de repente:

— Sei eu uma história de caça, ou antes um drama de caça, bem singular. Não se parece nada com o que nesse gênero se conhece; e nunca portanto o contei, pensando que a ninguém divertiria. Não é simpático, percebem? Quero eu dizer que não tem essa espécie de interesse que apaixona, que seduz, ou que comove agradavelmente. Mas enfim, lá vai.

Tinha eu então os meus trinta e cinco, e caçava como um danado. Possuía nesse tempo uma propriedade muito isolada nos arredores de Jumièges, cercada de matas, esplêndida para lebres e coelhos. Só lá ia passar quatro ou cinco dias por ano, porque a instalação me não dava para levar um amigo. Tinha eu lá metido por guarda um gendarme reformado, bom homem, violento, ríspido em cumprir as ordens, terrível para os caçadores furtivos, homem que não devia nem temia. Morava sozinho, longe da aldeia, numa casinha, ou antes casebre, composto de cozinha e despensa em baixo, e de dois quartos no primeiro andar. Um deles, espécie de edícula em que cabiam ao certo uma cama, um armário e uma cadeira, era-me reservado. O tio Cavalier ocupava o outro.

Dizendo que morava sozinho na casa, exprimi-me mal. Tinha consigo um sobrinho, um malandrinho de catorze anos que ia às compras à vila, distante três quilômetros, e ajudava o velho nos seus trabalhos cotidianos. Esse garoto, comprido e magro, um pouco adunco, tinha o cabelo loiro como uma penugem de franga depenada, tão raro que parecia calvo. Pés enormes e mãos gigantes, mãos de colosso. Entortava um pouco a vista, e nunca encarava ninguém. Na raça humana, fazia-me o efeito dos bombardeiros entre os irracionais. Ou era doninha ou raposa, o maroto.

Dormia num desvão ao cimo da escada; mas durante as minhas estadas no Pavilhão, — nome que eu dava ao casebre — o Mário cedia o seu nicho a uma velhota de Ecorcheville, chamada Celeste, que me vinha fazer a comida, porque os pitéus do tio Cavalier eram uma desgraça. Conhecem, pois, os personagens e o local. Agora, aí vai a ventura:

Foi em 1854, 15 de outubro, — lembro-me bem, e nunca me esquecerei. Parti de Ruão a cavalo, seguido do meu cão Bock, perdigueiro magnífico do Poitou, largo de encontros e ladrador, que flanava pelos silvados como um gozo de Pont-Audemer. Levava eu na garupa o saco de viagem, e a tiracolo a espingarda. Dia frio, de ventania triste, com nuvens sombrias a correrem pelo céu fora. Subindo a ladeira de Cinteleu, olhava o largo vale do Sena, que o rio atravessava até ao horizonte, com sinuosidades de serpente. À esquerda, Ruão perfilava no céu todos os seus campanários, e à direita, estacava o olhar nas encostas longínquas, cobertas de mato. Atravessei depois a mata de Roumare, ora a passo ora a trote, e por volta das cinco cheguei ao Pavilhão, onde o tio Cavalier e a tia Celeste me esperavam.

Havia dez anos que eu me apresentava da mesma forma na mesma época, e que as mesmas bocas me saudavam com as mesmas palavras.

— Viva, meu senhor. O meu senhor tem passado bem?

O Cavalier estava o mesmo. Resistia ao tempo como uma velha árvore; mas a Celeste, especialmente de quatro anos àquela parte, nem parecia a mesma. Tinha-se quebrado ao meio, e, bem que sempre videira, andava, com o corpo tão dobrado que fazia quase um ângulo reto com as pernas. Muito dedicada, a velha parecia sempre alvoroçadíssima quando me via, e dizia-me sempre à despedida:

— Lembrar-me eu que talvez o não torne a ver meu rico senhor!

E essa despedida consternada, tímida, da pobre criada, essa resignação sem esperança perante a morte inevitável e decerto próxima para ela, bulia sempre comigo, de um modo esquisito. Apeei-me pois, e enquanto o Cavalier, a quem eu tinha apertado a mão, levava a cavalgadura para o telheiro (abrigo de animais) que lhe servia de estrebaria, entrei, seguido da Celeste, na cozinha, que também servia de sala de jantar.

O guarda lá foi depois ter conosco. Vi num relance que não vinha bem. Parecia preocupado, constrangido, inquieto. Disse-lhe:

— Então, Cavalier? Corre tudo a seu gosto?

Ele murmurou:

— Assim... assim... Há só uma coisa que me não agrada.

Perguntei:

— O que é? Conte lá isso.

Mas ele abanava a cabeça:

— Nada, por ora não, meu senhor. Não o quero incomodar logo à chegada, com as minhas rabugices.

Eu insisti, mas ele recusou absolutamente contar-me antes de jantar o que havia. Pela cara dele, contudo, eu bem via que a coisa era séria. Sem saber que dizer-lhe, pronunciei:

— É a respeito de caça? Temo-la por cá?

— Ora! É o que falta... Tem caça para dar e vender. Graças a Deus, eu cá andei de olho à
mira.

Dizia isto com tanta gravidade, com uma gravidade tão aflita, que chegava a ser cômica. Parecia mesmo que lhe caíam do beiço os grandes bigodes grisalhos. De repente, fiz reparo em que ainda não tinha visto o sobrinho:

— E o Mário? Que é feito dele? Porque se não mostra?

O guarda teve uma espécie de sobressalto, e encarando-me:

— Pois aí está, meu senhor, mais vale contar-lhe já o caso. Antes isso, é por causa dele que eu ando apoquentado.

— Olá! Então onde está ele?

— Está na cavalariça, meu senhor, eu esperava ocasião de o fazer aparecer.

— Então que fez ele?

— Lá vai, meu senhor.

O guarda hesitava contudo, com a voz mudada e trêmula, as feições repentinamente cavadas de rugas profundas, rugas de velho. E continuou:

— Ora pois, este inverno, eu bem vi que andavam ao laço nas matas das Roseraies, mas não conseguia pilhar o homem. Passei noites e noites à caça. Nem nada! E durante esse tempo, quem quer que era pôs-se a armar ao laço para as bandas de Ecorcheville. Eu até andava na espinha, de raiva; mas quanto a apanhar o malandrinho, era uma vez! Parecia que sonhava os meus passos e os meus projetos. Nisto, um dia, ao escovar as calças do Mário as calças domingueiras encontro-lhe quarenta sous no bolso. Onde os teria ele ido buscar? Andei a matutar no caso oito dias, e notei que ele saía justamente quando eu me recolhia para descansar. Espreitei-o então; mas nem por sombras suspeitava da coisa. Um dia de madrugada, tendo acabado de me deitar à vista dele, ergui-me num pronto, e segui-o. Não há outro como eu para ir na cola a alguém. E vai então, pilho o Mário a armar laços nas suas terras, meu senhor; ele, meu sobrinho, sobrinho do seu guarda! Subiu por mim a cima uma coisa, e não sei como não dei cabo dele, de tanto que lhe bati. Isso é que foi bater! E ainda por cima, prometi-lhe outra sova para quando o senhor chegasse! Só para lhe ficar de castigo. Ora aí está; pus-me definhado de desgosto. O senhor bem sabe o que são estas arrelias. Mas o que faria o senhor no meu caso? O rapazinho já não tem pai nem mãe, eu sou o seu único parente, deixei-o ficar, que o não havia de pôr fora, pois não é assim? Mas jurei-lhe que se tornasse, punha-o com dono. Fiz bem, meu senhor?

Eu respondi, estendendo-lhe a mão:

— Fez bem, Cavalier. Você é um homem honrado.

Ele ergueu-se:

— Muito obrigado, meu senhor. Agora vou buscá-lo, para lhe dar a outra sova.

De mais sabia eu que era escusado tentar dissuadir o velhote. Deixei-o pois. Foi buscar o garoto e trouxe-o por uma orelha. Eu tinha-me sentado numa cadeira de palhinha, com cara solene de um juiz.

Pareceu-me crescido o Mário, ainda mais feio que o ano anterior, com o seu ar velhaco e mau. E as suas mãos pareciam monstruosas. O tio empurrou-o para diante de mim, e no seu tom militar:

— Pede perdão ao patrão!

O rapaz ficou-se.

Então, metendo-o debaixo do braço, o antigo gendarme levantou-o em peso, e desandou-lhe uma data de açoites com tamanha violência, que me levantei para lhe ter mão.

O rapaz berrava agora:

— Perdão! Perdão! Perdão! Eu prometo...

Cavalier pousou-o no chão, e forçando-o a pôr-se de joelhos:

— Pede perdão! — disse ele.

O garoto murmurava, de olhos baixos:

— Peço perdão...

O tio levantou-o então, e pô-lo fora com um derradeiro tabefe que não sei como o não fez ir de cangalhos. Ele pirou-se, e não o tornei mais a ver. Mas o Cavalier parecia aterrado:

— É má rês. — dizia ele.

E durante todo o jantar, não cessava de dizer:

— Nem o senhor calcula a pena que isto me faz.

Tentei consolá-lo, mas em vão. E deitei-me cedo, para ir à caça logo de madrugada. Já o meu cão estava a dormir no assoalho aos pés da cama, quando apaguei a luz. Pelo meio da noite acordou-me o Bock, ladrando furiosamente. Notei logo que tinha o quarto cheio de fumo. Saltei da cama abaixo, acendi a vela, corri à porta e abri-a. Entrou uma onda de labaredas. Estava casa a arder. Fechei logo a grossa porta de carvalho, e enfiando as calças, desci primeiro o meu cão pela janela com uma corda feita de lençóis enrolados, e depois atirado fora o fato, a espingarda e a bolsa de caça, safei-me pelo mesmo caminho. E pus-me a gritar com quanta força tinha:

— Cavalier!... Ó Cavalier!... Ó Cavalier!

Mas o guarda não acordava. Tinha um sono de chumbo. Entretanto, pelas janelas de baixo, via que todo o rés do chão era uma fornalha; e notei que o tinham enchido de palha para favorecer o incêndio.

Era portanto fogo posto!

E continuei a gritar com furor:

— Cavalier! Ó Cavalier!

Lembrou-me então que o asfixiava o fumo. Numa inspiração, e carregando os dois canos da minha espingarda, disparei um tiro contra a janela dele. Os seis vidros desfizeram-se em cacos; mas daquela feita o velho tinha ouvido, e apareceu desvairado, em fralda de camisa, atarantado sobretudo por aquele clarão que alumiava violentamente toda a frente da casa.

Gritei-lhe:

— Tem a casa a arder. Salte pela janela, depressa, depressa!

As labaredas, saindo bruscamente pelas aberturas de baixo, lambiam a parede, chegavam até ao guarda, não tardariam a tomar-lhe o caminho. Ele saltou e caiu de pé, como um gato. Não era sem tempo. O teto de colmo abriu ao meio, por cima da escada que servia de chaminé ao fogo de baixo, e subiu aos ares um imenso fogaréu vermelho, elevando-se como um repuxo de água e espalhando uma chuva de fagulhas em torno da habitação. Em poucos instantes a casa ficou reduzida a um braseiro.

Cavalier, aterrado, perguntou:

— Como seria isto?

Respondi:

— Foi fogo posto na cozinha.

Ele murmurou:

— Quem era que ia pôr fogo?

E eu, adivinhando num ai, pronunciei:

— O Mário.

O velho compreendeu, e balbuciou:

— Jesus Maria! Foi então por isso que ele não se recolheu!

Mas um pensamento horrível me atravessou o espírito, e clamei:

— E a Celeste? E a Celeste?

Ele não respondeu, a casa desabou diante de nós, formando apenas um espesso braseiro faiscante, sanguinolento, de fazer doer a vista, uma fogueira formidável, em que a pobre mulher devia estar reduzida a uma brasa de carne humana.

Nem um só grito nós tínhamos ouvido.

Mas como o fogo fosse a alcançar o telhado contíguo, lembrou-me de repente o meu cavalo, e o tio Cavalier correu a soltá-lo. Mal abriu a porta da cavalariça, um corpo ágil e rápido, passando-lhe entre as pernas, atirou com ele de ventas ao chão. Era o Mário, fugindo à desfilada.

O homem levantou-se num momento, quis correr mas compreendendo que o não alcançaria, e com a cabeça perdida por um furor irresistível, cedendo a um desses ímpetos irrefletidos, instantâneos, que não é possível prever nem reprimir, apanhou do chão a minha espingarda, pôs a arma à cara e antes que eu pudesse fazer um movimento, desfechou, mesmo sem saber se a arma estava carregada.

Um dos cartuchos que eu metera nos canos para anunciar o fogo, não tinha chegado a servir; e a carga, apanhando o fugitivo pelas costas, fê-lo cair de borco, alagado em sangue. O rapaz pôs-se ainda a engatinhar na terra com as mãos e os joelhos, como se quisesse correr, à maneira das lebres mortalmente feridas, vendo o caçador aproximar-se.

Corri. Já o pequeno agonizava. Expirou antes de apagado o fogo, sem ter proferido uma palavra. Cavalier, sempre em fralda de camisa, com as pernas à vela, ficava-se ao pé de nós imóvel, atoleimado.

Quando os habitantes da aldeia acudiram, levaram o meu guarda como doido. Fui ao julgamento como testemunha, e contei os fatos pelo miúdo, sem nada mudar. O Cavalier foi absolvido. Mas sumiu-se nesse mesmo dia, abandonando a terra. Nunca mais o tornei a ver.

E aí têm, meus senhores, a minha história de caça.

Fonte:
Guy de Maupassant. A sereia. (Beldemónio, tradutor). Publicado originalmente em 1884 .

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Adega de Versos 99: Carolina Ramos

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 73


O pé de uvaia anda com cara triste, melancólico, folhas desbeiçadas. O que há com você, sombra amiga? Adoro tanto vê-lo florido nas noites de lua cheia de dezembro.  Daqui a alguns dias . . .

Vida de encantos e desencantos.

Vida sem encantos ?

A vida não é feita de mesmismos, senão de variedades.  Os humanos serezinhos são mesminhos que as companhias da natureza. Ora alegres, ora tristes, inflados ou vazios, vivem as variáveis do viver terreno.

Ninguém é grande, ninguém é pequeno, mais frágil ou menos frágil, somos todos acometidos de alegrias e tristezas, ventos fortes e calmaria, doçuras e amarguras. Dualidades da existência.  Deste cadinho deve surgir a vida açucena de cada dia.

Por isso, meu belo tronco de uvaia, logo o verei novamente com as folhas verdejantes, brilhando, esbanjando NATURIDADE.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nilto Maciel (Um coveiro monstruoso)


Montado num cavalo recém-domado, Átila percorria a vista pelos prados da Panônia. O animal trotava, cheio de garbo, como se quisesse dizer ao homem que também tinha dignidade.

Satisfeito com o procedimento do cavalo, Átila pôs-se a falar, carinhosamente. Dar-lhe-ia um belo nome. Que tal Huno? Não, arranjaria um nome próprio dos melhores animais. Leão, por exemplo. Sim, Leão.

O animal relinchou, como se risse, gostasse da fala do homem.

Átila prometeu outras cortesias ao cavalo. Invadiria Roma, montado nele. Destruiria o Império Romano. E lhe daria até um cognome: Leão, o Cavalo. Para distingui-lo do Papa Leão, o Grande.

De novo o animal relinchou, agora de maneira esquisita, e deu pulos, como se tivesse gostado das últimas palavras do rei.

Para sossegá-lo, Átila comprometeu-se a nomeá-lo papa. O rei do mundo cavalgaria o papa-cavalo.

Leão desembestou e livrou-se, de vez, da carga. Machucado, furioso, Átila sacou a espada e investiu contra o cavalo. Ia ensinar como uma animal devia tratar um rei.

Ameaçado, o cavalo ergueu as patas dianteiras e, gigantesco, atacou o pequeno homem. E relinchava e arreganhava os dentes.

Átila recuava, praguejava, desequilibrava-se. E terminou caindo num buraco.

Leão chegou à beira da cova, olhou para o homem caído e pôs-se a escavar o chão. Sim, ia jogar terra sobre Átila, enterrá-lo vivo.

Desesperado, o rei dos hunos gritava, se debatia, tentava escalar as paredes da cova. E mais terra sobre ele caía. O cavalo ria, gargalhava, feito um coveiro monstruoso. Átila, porém, salvou-se no último instante. Sacudiram-no e ele acordou.

Fonte:
Enviado pelo escritor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 18


Cansada do próprio colo,
do ventre da terra mansa,
a semente rasga o solo
e enche a vida de esperança!
= = = = = = = = =

Depois que tu foste embora,
sem motivo e sem razão,
soluça o vento lá fora
e, aqui dentro, a solidão!
= = = = = = = = =

Dou tanta crença ao meu ego,
que essa crendice, me acalma.
Vê que essa paz que carrego,
também carrega minha alma!
= = = = = = = = =

É mais triste o meu versejo,
ao ver nos portais da fome...
Crianças, comendo sobejo
dos restos que ninguém come!
= = = = = = = = =

Em meio a tantos extremos,
às vezes, até presumo,
que somos barco sem remos
remando num mar sem rumo!
= = = = = = = = =

Escuto a voz da neblina.
olho e não vejo ninguém;
e o pranto da chuva fina,
lembra-me o choro de alguém!
= = = = = = = = =

Fere-me a saudade antiga,
daquele amor, que te dei!
Hoje, a saudade é cantiga
do antigo amor que sonhei!
= = = = = = = = =

Filho, a honra é tão sagrada,
que a vida, sem honradez,
para o mundo é quase nada,
para Deus, nada, outra vez!
= = = = = = = = =

Lágrima, essência, caída,
dos olhos de quem padece;
às vezes, fonte de vida,
regando a vida da prece!
= = = = = = = = =

Madrugada!... E, em meio ao drama,
escuto, outra voz sem sono,
de um violino que reclama
da dor, nas mãos de outro dono!...
= = = = = = = = =

Maria estende a mantilha
e forra o berço de palha,
onde a luz que tanto brilha,
brilha e no mundo se espalha!
= = = = = = = = =

Não seja escravo do tédio,
que o ódio fere e magoa;
só vence um mal sem remédio,
aquele amor que perdoa!
= = = = = = = = =

Na paz, do mosteiro, ao longe,
sem que da oração, se prive,
solitário, o velho monge,
tenta saber por que vive!
= = = = = = = = =

Na vida, o que mais me enleva,
quando em silêncio eu medito,
é ver, que quem fez a treva,
fez toda a luz do infinito!
= = = = = = = = =

Peço sempre, no altar mor,
de joelhos, aos pés da cruz...
Paz para um mundo melhor
sem treva e, cheio de luz!
= = = = = = = = =

Quando Deus rasgou o véu
mostrando a noite estelar,
via-se estrelas no céu,
na areia, estrelas-do-mar!
= = = = = = = = =

Quando sozinho, eu me deito,
e um travesseiro eu descarto,
a ausência dela em meu leito
dobra a saudade em meu quarto!
= = = = = = = = =

Saudade, é sem dimensão
na dor, de alguém, na orfandade!
Quem fez da dor, solidão,
fez sem limite a saudade!
= = = = = = = = =

Se a maldade lhe atrapalha,
beije-a, de forma discreta;
que o mal nunca se agasalha
no coração de um poeta!
= = = = = = = = =

Se a saudade, nunca passa
e a solidão nunca finda,
entram por minha vidraça,
os olhos da noite linda!
= = = = = = = = =

Sem usar tinta ou pincéis,
o sol, com sua energia,
pinta à tarde, em seus painéis,
a cor da melancolia!
= = = = = = = = =

Se o outono que nos invade,
tivesse mais compaixão,
não juntava mais saudade,
à velhice e à solidão!
= = = = = = = = =

Se o vento em seu destemor,
gera fortes vendavais...
A tempestade do amor
ruge mais forte em seus ais!
= = = = = = = = =

Torna-se mais pensativo
o olhar do velho ancião.
que aos poucos, se faz cativo
do templo da solidão!
= = = = = = = = =

Tudo que a vida me empilha,
de algum tipo de saber...
Dedico à velha cartilha
que um dia, ensinou-me a ler!
= = = = = = = = =

Tu queimaste as minhas cartas;
mas nas cinzas da memória,
eu guardo lembranças fartas
das cinzas de nossa história!
= = = = = = = = =

Velha rua da esperança,
onde na infância eu brincava...
Hoje, a saudade é que dança,
no mesmo chão que eu dançava!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Sammis Reachers (O Pau-de-Sebo)

As novas gerações e mesmo as mais maduras, porém criadas em ambiente urbano, talvez não saibam o que seja um pau-de-sebo – ou imaginem, de pronto e maldosamente, que ele seja algo muito diverso do que é na realidade.

Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à semelhança de um poste desses de eletricidade, completamente lambuzado, lubrificado, empapado com sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?

O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa, sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas hoje já tão raras.

Instalada a grande tora em ponto central da festa, já devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou um cheque representando um valor algo considerável – digamos, em valores de agora, 300, 500 reais. Pois bem: Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro, ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e bermudas... Alguns, já quase chegando ao topo, cansados e de repente tocando área de banha ainda “virgem”, repentinamente despencavam – e o sebo restante na enorme envergadura daquele pau fazia as vezes de poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.

Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui na comunidade do Jardim Nazaré, e bem em frente à minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas; bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem simpático, eterno candidato a vereador (eterno não, depois cansou-se), o William. William era também cana, meganha, magarefe: Soldado porra-louca.

Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis numa batalha.

Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos heróis de birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se daquela quantia, a essa altura já mítica.

Eu e Renato, junto a outros peraltas, bem que tentamos dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir qualquer remédio que achasse no lixo durante as expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.

A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas, num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia na área. Iluminados ou apertados pela desesperança, elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns seis bravios canabravas...

E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a pontinha do cheque.

Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som um burro faz quando avoa!

Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor era nenhum: O cheque estava em branco.

O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver. O impasse entre xerife William e aqueles homens agora furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.

Naquele vai-não-vai que sempre impede o cidadão de bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi para o segundo-em-comando da festa: O DJ, eletricista, técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor Pardal da comuna, o Paulo.

E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê, entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram arrancados, caniços de bambu se tornaram varas justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em estouro.

O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa, parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão e, contrafeito, observava de por cima do muro. Era cada um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e sebenta tromba, e aplicando emplastro de saião nas feridas e nos magoados.

Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o valor imaginado, custavam aquelas caixas de som que foram despedaçadas naquela festa de São João, um São João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na cara, e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal festim!

(No camarote das santidades, imagino que o bom São Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e, desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia, soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma festa, meu padrinho...”)

Fonte:
Enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 46

 

Machado de Assis (O segredo do bonzo)

CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos*, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga* (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!” E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.

Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço:

— Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.

— Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cume de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Não sabíamos de que maneira dessemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.

Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas*, lanchas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de uma espórtula*, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinquenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo.

A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo.

— Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.

Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e charamela*, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes*, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembleia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu.

Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.

A assembleia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.
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* Vocabulário
Ademanes = aceno, trejeito.
Bonzo = membro de qualquer ordem religiosa, frade, sacerdote.
Charamela =instrumento medieval de sopro, de timbre estridente, com o corpo de madeira cilíndrico dotado de orifícios e com embocadura de palheta, considerado o antecessor do oboé e do clarinete modernos
Espórtula = esmola, gorjeta.
Fustas = embarcação indiana comprida e rasa, a vela ou a remo, mercante ou de guerra
Veniaga = comércio, tráfico.

Fonte:
Machado de Assis. Papéis avulsos. Publicado originalmente em 1882. Disponível em domínio público.