MARCELO REMAVA o tempo todo contra a maré. Se desmanchava no incerto do avesso e criava, ao seu redor, um universo terrificante e aziago (funesto). Vomitava, à torto e a direita, os seus imundos, como se fosse um bicho enjaulado numa gaiola imaginária. E era, de fato, um ser desprezível, metuendo (medonho) e caliginoso (extremamente tenebroso). Ao contrário dele, na sinuosidade de uma anomalia imaculada e invulnerável, uma donzela na flor da idade, mais nova que o sacripanta, cinco anos, sonhava sonhos encantados como os de uma princesa dos fabulosos contos de fada.
Marília, se constituía na joia rara. Se fundamentava num poço cálido de águas mansas, de venturas bamburriosas (*), repletas, por sua vez, de um fadário puro e sem máculas. Viera a graciosa, de uma família de tronco humilde, nascida de berço honesto, de pai e mãe sem máculas. Se tornara, por assim, uma moça linda e delicada, mimosa e prestativa, capaz de dar a própria vida, se preciso fosse, para ver seus semelhantes livres e distanciados das dificuldades e agruras impostas pela vida madrasta.
Resumindo o seu currículo: Marília trazia em sua alma radiosa, a ambição da sereia encantada. Onde chegava, todos se alegravam e se colocavam a seus pés. Perfeita em tudo, certinha em demasia, exceto em matéria de amor, e, logicamente, às coisas ligadas ao coração. Nesse quesito, se constituía numa jovem donzela completamente alienada. Se fizera amordaçada, presa, sem saída em face de ter aparecido em seu caminho aquele traste vindo dos quintos. Marcelo, sem dúvida alguma, a sombra negra oscilante. O malandro plantado num vagabundo parlapatão (fanfarrão), erradio e capadócio (trapaceiro) de si mesmo.
“Bon-vivant”, se transformara num empecilho para a sua família. Não trabalhava, não produzia, não tinha emprego certo. Se fazia ferrenho às calçadas do alheio tirânico e draconiano (exigente), ferrenho às noções do tempo ambíguo e da realidade em que vivia. A sua exatidão, aliás, girava em torno de amigos os mais estranhos. Rapazes (filhos de abastados pais com bolsos recheados) entre dezoito e vinte e três, que passavam os dias ao deus dará, procurando incautos para conseguirem vantagens ilícitas. Viviam de baques e golpes, roubos e furtos.
Se prestavam à assaltos e outras canalhices próprias de quem não aprendeu a honrar e a dar valor ao que é certo, distinguindo, com seriedade, o bom e o mau. De roldão, o esplendoroso do feio; o estragado do sadio; o ruim do péssimo. Enfim, todas essas variações sopesadas de uma forma plena, sem intenções segundarias dignas de algum valor moral. Marcelo se moldara à semelhança de ratos de porão. Verme espargido do bom senso. Mamão mofado, alma impura, estragada, vida desregrada em sintonia meridiana com os bafejos dos ventos tenebrosos que sopravam em seus caminhos.
Ventos que vinham de longe e carregavam presságios perversos. O infeliz, por azar da virginal, estava caidinho por ela. Queria a Marília, só via a Marilia, respirava seus cabelos. Cobiçava, a todo custo, fazer dela a sua esposa e mãe de seus filhos. Esposa e mãe de seus filhos? Não, isso não! Jamais! Longe passava tal ideia. Se arrimava o âmago de tal situação, num absurdo tenebroso em sua mente doentia. Marcelo acolhia algo assim mais prático e ligeiro, fugaz e transitório. Um método espúrio (falso) que não oferecesse nenhum tipo de retenção que lhe pudesse ser ou se moldar desfavorável.
Dito de forma mais explícita: o crápula almejava um trololó passageiro. Uma troca de carinhos sombrios e obscuros, tétricos e apavorantes. O prófugo (falso) queria se aproveitar da ingenuidade daquela pérola generosa, pacata criaturinha, inocente criança, e fazer dela uma “mulher-coisa” sem norte. Almejava transformar a vidinha daquela interiorana numa meretriz de boate periférica. Uma vadia sem nome, sem rumo, sem apoio, mercê da sorte. O desmiolado tencionava, ainda, afogar seus instintos bestiais e ganhar o mundo.
Os pais dela em trilhos opostos, se desdobravam em lágrimas. Avisavam, se debatiam e imploraram. Rezaram sermões compridos, davam conselhos os mais diversos. Contudo, a pomba rola contaminada pelo frescor da lombriga sem juízo, levada por palavras melosas, não escutava. Não dava ouvidos. Não atinava com o abismo imensurável logo à frente. Um abissal imensurável que a esperava, para leva-la para o fundo de um despenhadeiro sem volta. De fato, um dia o inevitável aconteceu. Marília engravidou de gêmeos. Marcelo, arisco ao saber da prenhez, deu asas aos pés. Botou sebo nas canelas.
No desalumiado abrolhoso (amargurado) de uma noite recém pousada, o excomungado picou a mula tomando rumo ignorado. Marília, a barriga farta, os pais em desespero, toda a família e demais consanguíneos em polvorosa nunca mais ouviram falar do hilota (pobre). Num domingo, quase a completar nove meses, Marilia achou que não deveria mais continuar dando trabalho aos autores de seus dias. Com essa ideia estapafúrdica sediada à quilômetros do acarinhar de um novo porvir, depois que todos se recolheram, tomou uma decisão deveras drástica. Caminhou até a rodovia que cortava as cercanias do pequeno povoado.
Estrada longa essa via, assoberbada pelo tráfico intenso, não tinha um minuto de calmaria. De repente, o momento oportuno se fez real. Uma carreta ligeira na noite sem estrelas, pintou veloz. Marília esperou o momento certo. Quando o veículo se aproximou ganhando a curva fechada, ela, inopinadamente, voou de uma pequena elevação e aterrissou à frente. Pulou com tudo, numa corredeira agitada, não permitindo que o motorista tivesse o tempo necessário para acionar os freios. O impacto, com a força do seu gesto impensado, se afigurou tremendo. Se compôs aterrador, calamitoso, inflexível, angustiante, violento e fatal.
Pedaços de seu corpo se espalharam num amplexo contumaz para a morte certeira, precoce e horrivelmente inóspita. Partes deles foram igualmente esmagados por outros veículos que vinham logo atrás e tantos demais que cruzavam em contrário. Gritos irrefreáveis vincaram a calmaria da noite sem lua, num imenso de céu sem estrelas. Da cena do desastre, restou apenas, na manhã seguinte, um silêncio denso de santo sepulcro. À lembrança do fato, três cruzes de madeiras toscas restaram fincadas na via pública, mostrando, num desvanecido, o palco fatal da ocorrência que se fizera sombria e inimaginável.
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* Bamburriosas– Aqueles que fazem fortuna da noite para o dia.
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Texto enviado pelo autor.
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