Quando o tenente Felisberto regressou do "front", precedia-o a mais invejável das famas. Notícias dos jornais, telegramas do governo e cartas dos camaradas, haviam espalhado, realmente, pelo Brasil, os ecos da sua bravura. Em Verdun, no forte de Vaux, fora ele o herói por excelência, defendendo, uma a uma, as pedras daquele reduto. Na Champagne, comandando um pelotão de "poilus", operara prodígios, resistências assombrosas, a ponto de ser preciso arrancá-lo, às vezes, do seu entrincheiramento, rilhando os dentes, coberto de lama e de sangue. O seu heroísmo tornou-se, em suma, tão acentuado, tão famoso, tão evidente, que o seu nome se constituíra, em toda a extensão do setor, uma espécie de grito de guerra. A Morte passava por ele, medrosa, de asas fechadas, como se temesse cair ferida, ela própria, atingida pela sua espada.
Ao chegar ao Rio, eram conhecidos, já, de toda a cidade, os seus feitos, as suas investidas corajosas, o ímpeto das suas cargas de baioneta, a que correspondia, sempre, uma nova trincheira arrancada ao inimigo. E foi por isso mesmo que o seu desembarque teve o caráter de uma verdadeira apoteose, que envolvia na mesma auréola o glorioso exército nacional.
Festejado e querido, foi, aqui, o tenente Felisberto rodeado pelos amigos e, principalmente, pelos colegas de classe, que se disputavam, gentis, a sua companhia. E tanto o cercaram, tanto o arrastaram pelos lugares festivos da cidade, que ele foi acabar, uma noite, no Assírio, onde se realizava um ruidoso baile de Carnaval.
Desconfiado no meio daquele tumulto, que lhe entontecia mais os sentidos do que o perturbavam, na França, as tempestades de fogo e de fumo da formidável artilharia alemã, o tenente observava aquelas danças, aquela orgia, aquela alegria desordenada, quando um dos camaradas lhe pediu, insistente, à mesa da ceia:
- Conta as tuas aventuras de guerra, Felisberto! Que diabo! Tudo que nós sabemos de ti, é por intermédio dos outros. Ainda não nos contaste nada!
- Conta! - pediu outro, pondo-se de pé.
- Conta! Conta! - reclamaram todos.
O tenente sorriu modesto, mas, reclamado pelos colegas, começou a narrar singelamente os seus feitos.
- O que eu fiz, - começou - qualquer de vocês o faria, estando no meu lugar. Fui eu, efetivamente, quem defendeu o forte de Vaux, durante três dias, com pouco mais de duzentos homens. O rompimento da linha de Hindemburgo foi, também, obra minha, que obteve, como é sabido, os resultados mais felizes. Tomei, a arma branca, dezessete trincheiras; subjuguei algumas dezenas de soldados, corpo a corpo; conquistei, a sabre, oito canhões; destruí, em suma, todo o poder ofensivo do inimigo, no setor a meu cargo.
Nesse momento, alarmando a sala, ouve-se, a alguns metros de distancia, um tiro de revólver, e, em seguida, o barulho da multidão elegante, a precipitar-se no rumo da detonação. Ao segundo tiro, porém, o capitão, que se calara com o primeiro, empalidece, e, sem dissimular o seu pavor, põe-se a tremer, a ponto de se não poder sustentar nas pernas. Espantados com aquela modificação, os amigos entreolham-se, duvidando, já, da bravura do herói, quando um deles, indignado, pergunta:
- Está com medo?
- Estou! - confessou o bravo dos bravos.
E explicou:
- Imaginem que isto degenera em rolo, em barulho, em conflito...
E concluindo, aterrorizado, batendo o queixo:
- E minha mulher sabe... que eu vim aqui!...
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
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