sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Beatriz Moraes (Cafeteria)


- Um chocolate quente, por favor.

- Com ou sem chantilly, senhor?

O chantilly faria o chocolate ficar mais doce. Mais apresentável. Ia criar uma camada leve e açucarada em cima do meu pedido. Um pedaço de neve desfeita feito bruma passeando por cima da penumbra. Uma irritavelmente perfeita variação do leite, aquele líquido tão simples e abominável, que minutos antes teria se transformado em chocolate. Minutos antes. Numa mistura peculiar, onde ambos se ajudariam, dentro dos trancos do liquidificador, a crescer e transformar-se num só, aquela encorpada bebida marrom e quente. Daí viria a parte mais prazerosa. Era só pegar o dito cujo do leite, desprezar a parceria com o pó de cacau, sacudir e sacudir o sem-graça, aguado, inútil e insípido, dar-lhe uns bons sopapos, sem esquecer de acrescentar, claro, a serenidade do açúcar. Pronto. O inocente líquido branco teria sido atirado ao crescimento pelo pior meio possível, para tornar-se o superficial chantilly.   A máscara de todo conteúdo. A parte bonita e carismática que aparece sempre encobrindo a parte densa e realmente consistente. A parte que todos admiram. Que todos anseiam. A parte que esperam que nunca termine. O doce sabor da superficialidade. A maravilhosa experiência de não ter de preocupar-se com o que vem depois. Mal sabem que o verdadeiro sabor ainda está por vir. Mas chocolate já é doce. E é tão sem-graça. Tão sem emoção. O chantilly vem todo dengoso... todo superior... todo cheio de sonhos embutidos, criando milhares de expectativas, para conquistar à primeira vista. Para derreter e encantar ainda mais. A mim, e a um bom raio que o assista à minha volta. Quem sabe às crianças o efeito seja mais perceptível, ah, essas são alvo fácil. Muitas vezes certeiro. Mas elas deixam-se envolver pelo encantamento. Pelo sabor. Pela novidade. Já os que calculadamente optam por um chocolate com chantilly, não. Esses querem é ver o circo pegar fogo. Querem botar o dedo na ferida, dramatizar a vida, escancarar seu anseio por um mundo melhor. Um mundo melhor para si, obviamente. Se quisesse um mundo melhor para todos iria logo a uma doceria comprar um enorme bolo com muita cobertura de chantilly e daria uma bela festa, regada à infames sorrisos amarelos, partilhando a peculiaridade da salvação com incontáveis convidados. Pelo menos a salvação momentânea. Ia ser divertido ver de perto o rosto das pessoas celebrando a parte leve e rasa da vida. No geral já podem ser vistos em cada esquina, em cada gesto, em cada momento. Mas acredito que nunca alguém observou o ser humano celebrar a superficialidade hipnotizante do chantilly.

- Senhor?

– Pensando bem. Traga-me um café amargo.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=185.htm
Acesso em 09.01.2016

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