domingo, 22 de janeiro de 2023

Arthur de Azevedo (Pequetita)


Como o Bandeira é positivista e não admite a vacina, o Coriolano, que é sobrinho do Bandeira e dirigido por ele, não quis que a Pequetita se vacinasse. Quando D. Isaura, sua esposa, lhe falou nisso, foi como se lhe propusesse uma vergonha.

- Pois tu conheces as minhas ideias e me propões semelhante coisa? Vacinar a Pequetita? Que diria o tio Bandeira?

D. Isaura, que tinha muito bom senso, não costumava contrariar a vontade do marido: submetia-se resignadamente a quanto ele dizia. Por seu gosto a Pequetita se vacinaria; mas como o Coriolano era de opinião contrária, a Pequetita não seria vacinada. Ora aí está.

Mas veio a varíola, e o bairro em que morava o Coriolano foi o mais contagiado pela epidemia. O pobre-diabo via, aterrorizado, passarem todos os dias enterros de crianças da vizinhança, e tremia pela sorte da Pequetita.

Um dia em que o tio Bandeira lhe apareceu em casa, o Coriolano deu-lhe uma pequena investida em favor da vacinação, mas o positivista foi inflexível: lançou-lhe um olhar severo, pegou no chapéu e na bengala e disse:

- Se você me torna a falar em vacina, saio por aquela porta e nem o Teixeira Mendes será capaz de fazer com que eu aqui ponha mais os pés!...

- Bom, não se zangue, meu tio: já cá não está quem falou...

Entretanto, a epidemia aumentava cada vez mais, e o Coriolano, que andava inquieto e sobressaltado, um dia apanhou D. Isaura a jeito e fez-lhe ver os seus receios.

- Se não fosse o tio Bandeira.

- Mandarias vacinar a Pequetita?

- É exato.

- Entretanto, não te aconselho a que o faças sem lhe dizer francamente que tomaste essa resolução... Se lhe mentisses, ele não te perdoaria!

- O diabo! Se a Pequetita... Oh! Nem disso me quero lembrar! Eu teria remorso toda a vida!.

- Pois vai à casa do tio Bandeira, e diz-lhe com toda a hombridade que vais mandar vacinar a menina! Não és nenhuma criança, nem nenhum idiota que se deixe governar pelos outros!

- Tens razão.

O Coriolano foi à casa do tio Bandeira, e voltou amargurado, com lágrimas nos olhos e na voz.

- Então?... falaste-lhe?... - perguntou D. Isaura.

- Não.

- Por quê?

- Encontrei-o morto!

- Morto?!

- De varíola hemorrágica! Foi atacado anteontem e hoje ao meio-dia era cadáver! E eu sem saber de nada! Pobre do Bandeira!...

E o Coriolano desatou em pranto.

Quando serenou, disse a D. Isaura:

- Amanhã, pela manhã... hoje mesmo, ser for possível, vacina-se a Pequetita.

- Não é preciso.

- Por quê?

- Porque a Pequetita há dois meses que está vacinada.

- Há dois meses?!

- Sim! Desde que começou a epidemia!

- E nada me disseste!

- Para quê? Para te zangares? Se fiz mal, Deus me perdoará porque fui levada pelo meu instinto de mãe.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos. Domínio Público. Disponível na Biblioteca Virtual de Literatura.

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