quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Coelho Neto (A árvore)


Ninguém sabia explicar como, em tão árido deserto, conseguira medrar a árvore propícia. Fora da sombra ameníssima da sua copa tudo era esterilidade adusta — areias amarelas,- sem erva, sem sulco de riacho, esbraseando ao sol.

Os viajantes respiravam aliviados quando, de longe, avistavam o vulto frondoso da árvore ; os animais amiudavam os passos e, sob a densa e derramada folhagem, impenetrável aos raios caniculares, juntavam-se as caravanas e, como havia uma cisterna no diversório virente (diversão verdejante), todos bebiam à farta e renovavam a provisão dos odres.

A providência daquela árvore não era apreciada, mal lhe prestavam atenção os viajantes e muitos, por passatempo, escorchavam-lhe o tronco com as facas, arrancavam-lhe os ramos ou acendiam fogueiras sobre as suas robustas raízes.

Certo ancião, abrigando-se á sombra da árvore, descobriu que um mal roaz (devastador) a consumia e logo, piedosamente, pôs-se a tratá-la com o desvelo carinhoso com que se dedicaria a um ser humano.

Mofaram da sua paciência os homens da caravana e o velho, sem agastar-se, assim lhes falou:

— Tendes de mim porque pratico o bem; talvez venhais a arrepender-vos da vossa descuidosa ingratidão quando, de regresso, não achardes sombra que vos acolha. A árvore sucumbe, nada há mais a fazer-lhe.

Foram-se os caminheiros. Certa tarde, a um rijo golpe de vento, a árvore, cuja folhagem amarelecera, rolou, com fragor, no solo.

Vinha de volta a caravana e os homens antegozavam a delícia de um lento repouso á sombra, quando pasmaram do encontro: folhas secas, ramos quebrados e o tronco desconforme meio coberto pelas areias.

A cisterna ficara entulhada e a alfombra verde morrera ressequida. Foi então que os homens compreenderam o valor da árvore e a fortuna que haviam perdido.

Pobre árvore! Enquanto viveu foi sempre desprezada, sofrendo toda a sorte de maus tratos; morta, porém, deixando o vazio, eis todos lamentando à sombra agasalhadora que ela, sempre generosa, oferecia, as flores de perfume suave que se abriam nos seus ramos, os pássaros que neles se juntavam, alegrando a região com os seus cantos concertados, a água que parecia brotar das suas fundas raízes.

Ainda hoje, os que trilham o deserto inóspito, mostrando uma tora que aparece acima das areias, param e, tristemente, murmuram :

— Era aqui que a grande árvore, coberta de flores e de passarinhos, abria às caravanas a sua sombra hospitaleira.

Fonte:
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão
Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

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