domingo, 8 de janeiro de 2023

José Feldman (As aparências enganam)


Epitáfio Epaminondas era um homem simples, que vivia na Vila dos Velhos, no
litoral brasileiro, em um apartamento no último andar, que fazia questão de afirmar que era de cobertura, mas ele mal-mal conseguia dividi-lo com seus dois cachorros, o gato, o papagaio e alguns passarinhos. Apesar da idade, já beirando seus 65 anos, vivia tranquilo. Trabalhava num jornal chamado “Fumos Cão”, fazendo bicos e, mesmo gostando de escrever - às vezes - ele possuía um cargo semelhante a um office-boy, ou como ele mesmo  denominava: “office-velho”.

Apesar de ser uma pessoa pacata, infelizmente o seu nome provocava alguns desentendimentos para quem não tinha conhecimento do riscado. No consultório médico:

– Dona Rosinha, cadê seu Epitáfio?

E dona Rosinha, uma senhora de idade razoavelmente avançada, apavorada:

– Doutor? Eu estou tão ruim assim? Meu Deus!!!!

– Calma, dona Rosinha. Por que esse apavoramento todo?

– O se…se…senhor está já pedindo meu epitáfio!

– Calma, dona Rosinha. Não é o seu epitáfio, é este senhor que está aí no consultório, ele se chama Epitáfio Epaminondas. Por favor, quando se recobrar, peça para ele entrar.

E, por aí se vai... imagine, meu caro leitor, no escritório de advocacia, nos velórios e enterros, sempre que confusão era formada! Epitáfio… Epitáfio… quem seria o infeliz que foi dar um nome desses a alguém? No mínimo, devia trabalhar como coveiro em algum cemitério!

Mas estou me desviando do verdadeiro objetivo destas “mal-traçadas linhas”. Epitáfio ficava parte do tempo, quando estava em casa, olhando pela janela. E quando alguém chegava para visitá-lo, geralmente com os bofes de fora, quase fazendo mesmo seu epitáfio, após subir oito lances de escada de uns quinze degraus cada (o elevador já havia ido pro beleléu fazia tempo e, do jeito que os preços iam pela morte, não tinham como pagar o conserto) pois bem, sempre que lá chegavam os amigos,  encontravam-no à janela e murmurando: “Aquele é meu carrinho. Aquele é meu carrinho.” E soltava um longo suspiro.

No outro lado da rua, meio encoberto por algumas árvores, viam um carro vermelho, uma Ferrari. E Epitáfio apontava para ela.

Era assim, toda vez que alguém aparecia para vê-lo. Epitáfio era viúvo, sem filhos. E a paixão dele era aquele carrinho. Para os que o conheciam, era difícil concatenar: como um “office-velho”, que ganhava um salário mínimo - se muito - e mais um salário da aposentadoria, morando num apartamento “de cobertura” podia ter uma Ferrari, que custava quase 1 milhão de dólares? Então, claro, tudo isso levava a aventarem as mais loucas elocubrações sobre seu poder aquisitivo: desde heranças, assalto já prescrito em que ele ficara com o dinheiro, até recolher os valores dos mortos no cemitério.

Enfim, era algo que deixava o povo com a “pulga atrás da orelha”. Devia ter dinheiro embaixo do colchão, ou conta nas Ilhas Cayman.

Passavam-se os dias, meses e seu Epitáfio dizia: “Aquele é meu carrinho. Aquele é meu carrinho”.

Um dia, uma fatalidade ocorreu: uma tempestade violenta se deu naquele vilarejo, as árvores velhas vergavam diante da força dos ventos que assolavam implacavelmente a terra. Uma árvore inteira se partiu e caiu sobre a Ferrari, destroçando-a.

A paixão de Epitáfio estava destruída. Simplesmente ele deveria estar arrasado. Os amigos resolveram se reunir para visitá-lo, para tentar animá-lo. E lá se foi um bando de gente, parecia até um arrastão, subindo a escadaria. Alguns pararam no meio do caminho para recuperar o fôlego e sentir novamente as pernas, que já estavam falhando; outros chegaram ao apartamento de Epitáfio mais mortos que vivos. Mas todos finalmente conseguiram adentrar o apartamento.

Epitáfio brincava com seus cachorros, jogando uma bolinha: – “Bolinha! Bolinha!”- e jogava para os cachorros que, preguiçosos, só olhavam a bolinha rolar pela sala.

Ao ver aquele “mundaréu” de gente entrando em sua casa, preparou-se para alguma notícia ruim. Alguém do seu rol de amizades deveria ter morrido. Afinal, muitos estavam apenas esperando a laçada, pois conforme ele, Jesus já os estava chamando, mas já estavam surdos, por isso não iam. Só laçando, mesmo.

Epitáfio logo interpelou:

– Que aconteceu? Quem morreu?

Um dos amigos se prontificou em lhe dar os detalhes:

– Meu amigo, sinto muito pelo ocorrido.

– Pelo o quê? Não estou sabendo de nada. Desembucha logo, homem de Deus!

– Seja forte. É melhor se sentar. Estamos aqui para lhe dar a maior força.

– Já está me assustando. O que foi??????

– Sentimos muito pela sua paixão.

– A Valéria? Meu Deus! A Valéria não! Que aconteceu?

– Quem é Valéria?

Nesta altura do campeonato, antes que levasse um cartão vermelho, Epitáfio se tocou que eles não sabiam de sua paixão secreta pela antiga colega de escola. E, rapidinho, tentou desconversar:

– Valéria é uma conhecida da internet.

– Pois é, caiu uma árvore sobre ela…

– A Valéria? – se assustou Epitáfio.

– Afinal, quem é Valéria?

A coisa estava ficando cada vez mais enrolada e não se chegava à parte alguma. Daí Epitáfio tomou fôlego e perguntou, apreensivo:

– A árvore caiu em quem?

– Ora, homem! Sobre seu carro.

– Que carro? Não tenho carro!

– Aquela Ferrari vermelha que ficava estacionada aí embaixo.

– Não é minha!

Daí que a multidão de amigos começou a “pirar no parafuso”. A conversa já estava “degringolando” e precisava ter um epílogo.

– Como... não é sua!? Você vivia suspirando sobre ela, toda vez que vínhamos te visitar! “Aquele é meu carrinho! Aquele é meu carrinho!”

– Vocês alguma vez me viram dirigindo a Ferrari? Ou mesmo dentro dela?

Os amigos olharam uns para os outros.

– Na verdade, não!

– Pois é! Tem uma importadora de carros do outro lado da rua.

E, para dar um ponto final, Epitáfio fez o epitáfio:

– Afinal, sonhar não é crime! Ou é?
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Fonte:
O autor. Revisão de Sinclair Pozza Casemiro.

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