terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Humberto de Campos (Entre os Papuas)

Um dos maiores sonhos da minha infância era atravessar a vida viajando. As aventuras do "Gulliver" de Swift; o "Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário, exerceram tamanha influência sobre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas. Homem feito, abracei a carreira que mais se coadunava com as minhas aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo hoje, mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos mais viajados do que eu.

Uma destas noites, após o jantar elegantíssimo com que o desembargador Corrêa da Cunha festejou o regresso do comendador Adeodato de Barros, que voltava da sua última excursão às índias e à Oceania, tive eu um dos momentos mais felizes da minha vida, ouvindo a história desse passeio de milionário, o qual durou, como é sabido, cerca de três anos e meio. Com a sua palavra viva, segura, concisa, narrava o soberbo capitalista os episódios mais interessantes, quando, em certo momento, se voltou para as senhoras, explicando:

- O costume mais curioso que eu encontrei foi, porém, o dos indígenas das Molucas, entre os quais me demorei algum tempo.

As senhoras voltaram-se, interessadas, e o comendador começou, mexendo, pausadamente, com uma colherinha de prata, a sua taça de vinho com água e açúcar:

- Entre os papúas, o casamento é inteiramente livre. Adeptos da poligamia, como o são, em geral, os povos brutalizados, esses indígenas permitem que o homem tome, e sustente, as mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no entanto, feita a quantos se queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento que o indivíduo contrai é selado com uma cerimônia bárbara, que consiste em arrancar um dente aos esposos. Ao contrário do que sucedia a certos povos antigos, entre os quais o contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço, para que o sangue dos noivos se misturasse, os papúas exigem esse sacrifício dos dentes, de modo que o beijo de núpcias é um beijo sangrento em que se confunde, num pacto horrendo, que é um símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.

- Que horror! - observou Mme. Schwartz, fazendo uma careta.

- Que bárbaros! - reforçou Mlle. Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto de nojo.

As outras senhoras comentavam esse costume dos indígenas com a mesma indignação incontida, quando Mme. Corrêa Gomes indagou, curiosa:

- Quanto tempo o comendador passou entre essas feras?

- Um ano, minha senhora.

- Sem se afastar deles?

- Não, senhora. Saí duas vezes, para ir a Amboine, capital do arquipélago.

Passado um instante, explicou, distraído:

- Mas demorei-me pouco longe deles. Fui apenas consertar a dentadura...

E continuou a mastigar, forte, com todos os dentes.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

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