A não ser uma chuva que convidava para prolongar o sono, nenhuma novidade marcava presença na fria manha em Belmonte, simpática cidade incrustada quase no dorso da Serra de Santana. Só campônios madrugadores, ombreando suas ferramentas já carcomidas, faziam viva à rua central, por onde passavam enfileirados e cabisbaixos a caminho do roçado.
Lá pelas sete horas, o mercado apinhava-se de consumidores. Moradores de povoados vizinhos disputavam no pé do balcão a vez do atendimento. O cheiro forte do caldo de mocotó ganhava a rua a atrair mais fregueses. A Praça do Mercado era um burburinho só.
O dia seguia igual aos outros na tranquila Belmonte, não fora a ausência do sol, notada mais pelos violeiros que se agrupavam nos fins de tarde para cantar seu mergulho por detrás do penedo, A hora do Angelus, nesse dia, algo inusitado chamava a atenção da cidade; a mudez do sino que parecia haver dormido no alto do campanário.
A súbitas, a Praça da Matriz é palco para quase a metade da população que, curiosa, indagava o porquê do nefasto acontecimento. Explicações das mais diversas confundiam-se por entre os belmontenses, que não davam descanso ao pescoço, mirando absortos para a torre da Matriz.
A ansiedade do povo se abranda quando o Zé das Flores, eterno sacristão da freguesia, improvisa um púlpito num dos bancos centrais da Praça, e sob forte emoção, dá conhecimento aos fiéis da transferência do Padre André para outra paróquia, fato este consumado por volta do meio-dia daquela data.
No bar do Sinfrônio, entre tragos e cusparadas em bate-papo ao pé do balcão, os fofoqueiros de plantão tinham tira-gosto garantido: a transferência do Padre André, sacerdote moço na idade e no ofício, que tomou chá de sumiço sem deixar rastro.
- Aquele padreco nunca me enganou! Eu mesmo nunca tomei a bênção a ele! – asseverava o Lira, barbeiro da cidade que tinha a língua mais afiada que sua navalha de cabo de madrepérola, pondo em dúvida a virginalidade do padre em questão.
- E por que tão de repente e às escondidas? Eu, hein! – exclamava o Zé de Elvira, ateu convicto que nem de padre gostava.
A transferência do padre tornou-se o prato do dia para toda a Belmonte. Os bancos da Praça da Matriz eram disputados por gente de todas as classes, ávida por novidades e com um interesse comum, em saber para onde se mudara o Padre André. Zé das Flores evitava conversar com os paroquianos, mantendo em segredo de confessionário o destino do pároco.
Do lado leste da Praça do Mercado, um velho fícus (*) assombreia um grupo de aposentados que faz frente aos ponteiros do relógio com seu jogo de damas. Ali, talvez pela necessidade de manter viva a estertorosa libido, a conversa toma um rumo diferente daquela que ainda rebuliça a cidade,
- Zé Lucas, são quatro e meia... não estás sentindo falta de nadinha?
- Transmissão de pensamento. Rochinha! É hora do pecado passar e faz bem cinco dias que ela não aparece.
Belinha, morena calipígia (**) exalando sexo pelos poros, todas as tardes, quando o sol esfriava, passava ao lado do grupo de vovôs arrastando as sandálias para chamar-lhes a atenção. A ida à padaria do Seu Roque fazia parte do cotidiano da sedutora caipira. Por respeito e por temerem um ataque cardíaco fulminante, eles discretamente interrompiam o jogo e acompanhavam com os olhos já um tanto embaçados, o saracoteio provocante de Belinha.
A ausência por aqueles dias da menina-colírio chamou a atenção principalmente de Zé I.ucas, que demonstrava sem reservas ser apaixonado por aquele pedaço de mau caminho, fantasia que lhe fazia companhia nas noites solitárias da sua viuvez. Ela, uma cabrocha... Ele, um cabra brocha!
O tempo, como sempre, ele, é o mais eficiente dos remédios para suprimir a dor da saudade. Um ano passa sem que se dê conta. Zé Lucas, que antes já houvera se perdido, areado, num dos passeios de trem que fazia sem gasto, pois portador do passe de idoso, mais uma vez salta meio sem rumo numa estação que, por um momento, não lhe parecia familiar.
Dirigindo-se a um pedinte que fazia ponto junto ao portão de saída da área de desembarque, nosso esquecidiço viajor enche de indagações o velho mendigo que empunhava o tosco chapéu de palha na sua direção.
Nenhuma moeda foi jogada no chapéu balançante. Nenhuma informação precisa saiu da boca do pedidor. Um tanto constrangido, Zé Lucas põe-se a vaguear, tentando forçar a mente surrada para melhor situar-se. Era feriado na cidade. O povo, recolhido dentro das suas casas, se preparava para a Missa que celebraria o dia de São Longuinho, tão admirado por toda aquela gente.
Zé Lucas, sentindo faltar-lhe forças nas pernas, aquieta-se num banco de praça. Absorvido em pensamentos que fluíam mais definidos de sua mente, nosso aventureiro, como que desperta, de salto, reconhecendo enfim o lugar onde se encontrava. Desanuviado, chega a rir de si próprio por ter perdido o rumo numa cidade que conhecia tão bem, já que distanciada somente três léguas da sua Belmonte. Dirige-se a uma lanchonete que já conhecia e se farta com caldo de cana e pastel de carne. Apimenta o pastel para ficar mais esperto. Confere o horário da missa com uma devota que já se dirigia para a igreja e atravessa a praça em busca de abrigo. Avista um vetusto fícus-benjamim e pede-lhe sombra. Acomoda-se num banco tosco e o pensamento se volta para seus parceiros de jogo de dama das tardes lúdicas de Belmonte.
O cenário se torna mais ainda familiar para ele, ao ver passar uma jovem senhora com um bebê entre os braços, caminhando em passos cadenciados e cautelosos, portando um xale que lhe cobria os ombros e agasalhava o filho nascido há pouco tempo. Acompanhou os passos da jovem mãe e, depois de assuntar por algum tempo, certificou tratar-se de Belinha, o colírio para os seus olhos, hoje com data vencida, pelas óbvias circunstâncias. Freado em suas intenções de expressar seu contentamento diretamente a Belinha pelo feliz reencontro, Zé Lucas fez uma oração a São Longuinho por aquele achado.
O sino da Igreja Matriz convocava o povo em geral, e os devotos do Santo, em especial, para o tão esperado Ofício Divino.
Zé Lucas adentra o Templo, procura assento e de soslaio observa Belinha afagando seu rebento, posicionada na primeira fila de bancos. Depois que toda a assembleia dos fiéis respeitosamente põe-se de pé, os acólitos dão início ao cortejo litúrgico seguidos pelo oficiante, Padre André. Perplexo, nosso viandante fita o celebrante e desvia o olhar de modo maquinal para a primeira fila de bancos. Somando as parcelas, o resultado se achava nos braços de Belinha...
De volta a Belmonte no trem que saiu às dezessete horas, Zé Lucas a observar a paisagem passar ligeiro, volta o pensamento a Pitombeiras com a certeza de que São Longuinho ganhara mais um devoto, pois ele achara a si mesmo quando se areou na cidade, além de Belinha e Padre André.
Coincidências à parte, Zé Lucas alimentou mais ainda as fantasias que lhe fazem companhia nas suas noites solitárias de viuvez.
- Sua bênção, São Longuinho!
E adormeceu na viagem de volta.
Lá pelas sete horas, o mercado apinhava-se de consumidores. Moradores de povoados vizinhos disputavam no pé do balcão a vez do atendimento. O cheiro forte do caldo de mocotó ganhava a rua a atrair mais fregueses. A Praça do Mercado era um burburinho só.
O dia seguia igual aos outros na tranquila Belmonte, não fora a ausência do sol, notada mais pelos violeiros que se agrupavam nos fins de tarde para cantar seu mergulho por detrás do penedo, A hora do Angelus, nesse dia, algo inusitado chamava a atenção da cidade; a mudez do sino que parecia haver dormido no alto do campanário.
A súbitas, a Praça da Matriz é palco para quase a metade da população que, curiosa, indagava o porquê do nefasto acontecimento. Explicações das mais diversas confundiam-se por entre os belmontenses, que não davam descanso ao pescoço, mirando absortos para a torre da Matriz.
A ansiedade do povo se abranda quando o Zé das Flores, eterno sacristão da freguesia, improvisa um púlpito num dos bancos centrais da Praça, e sob forte emoção, dá conhecimento aos fiéis da transferência do Padre André para outra paróquia, fato este consumado por volta do meio-dia daquela data.
No bar do Sinfrônio, entre tragos e cusparadas em bate-papo ao pé do balcão, os fofoqueiros de plantão tinham tira-gosto garantido: a transferência do Padre André, sacerdote moço na idade e no ofício, que tomou chá de sumiço sem deixar rastro.
- Aquele padreco nunca me enganou! Eu mesmo nunca tomei a bênção a ele! – asseverava o Lira, barbeiro da cidade que tinha a língua mais afiada que sua navalha de cabo de madrepérola, pondo em dúvida a virginalidade do padre em questão.
- E por que tão de repente e às escondidas? Eu, hein! – exclamava o Zé de Elvira, ateu convicto que nem de padre gostava.
A transferência do padre tornou-se o prato do dia para toda a Belmonte. Os bancos da Praça da Matriz eram disputados por gente de todas as classes, ávida por novidades e com um interesse comum, em saber para onde se mudara o Padre André. Zé das Flores evitava conversar com os paroquianos, mantendo em segredo de confessionário o destino do pároco.
Do lado leste da Praça do Mercado, um velho fícus (*) assombreia um grupo de aposentados que faz frente aos ponteiros do relógio com seu jogo de damas. Ali, talvez pela necessidade de manter viva a estertorosa libido, a conversa toma um rumo diferente daquela que ainda rebuliça a cidade,
- Zé Lucas, são quatro e meia... não estás sentindo falta de nadinha?
- Transmissão de pensamento. Rochinha! É hora do pecado passar e faz bem cinco dias que ela não aparece.
Belinha, morena calipígia (**) exalando sexo pelos poros, todas as tardes, quando o sol esfriava, passava ao lado do grupo de vovôs arrastando as sandálias para chamar-lhes a atenção. A ida à padaria do Seu Roque fazia parte do cotidiano da sedutora caipira. Por respeito e por temerem um ataque cardíaco fulminante, eles discretamente interrompiam o jogo e acompanhavam com os olhos já um tanto embaçados, o saracoteio provocante de Belinha.
A ausência por aqueles dias da menina-colírio chamou a atenção principalmente de Zé I.ucas, que demonstrava sem reservas ser apaixonado por aquele pedaço de mau caminho, fantasia que lhe fazia companhia nas noites solitárias da sua viuvez. Ela, uma cabrocha... Ele, um cabra brocha!
O tempo, como sempre, ele, é o mais eficiente dos remédios para suprimir a dor da saudade. Um ano passa sem que se dê conta. Zé Lucas, que antes já houvera se perdido, areado, num dos passeios de trem que fazia sem gasto, pois portador do passe de idoso, mais uma vez salta meio sem rumo numa estação que, por um momento, não lhe parecia familiar.
Dirigindo-se a um pedinte que fazia ponto junto ao portão de saída da área de desembarque, nosso esquecidiço viajor enche de indagações o velho mendigo que empunhava o tosco chapéu de palha na sua direção.
Nenhuma moeda foi jogada no chapéu balançante. Nenhuma informação precisa saiu da boca do pedidor. Um tanto constrangido, Zé Lucas põe-se a vaguear, tentando forçar a mente surrada para melhor situar-se. Era feriado na cidade. O povo, recolhido dentro das suas casas, se preparava para a Missa que celebraria o dia de São Longuinho, tão admirado por toda aquela gente.
Zé Lucas, sentindo faltar-lhe forças nas pernas, aquieta-se num banco de praça. Absorvido em pensamentos que fluíam mais definidos de sua mente, nosso aventureiro, como que desperta, de salto, reconhecendo enfim o lugar onde se encontrava. Desanuviado, chega a rir de si próprio por ter perdido o rumo numa cidade que conhecia tão bem, já que distanciada somente três léguas da sua Belmonte. Dirige-se a uma lanchonete que já conhecia e se farta com caldo de cana e pastel de carne. Apimenta o pastel para ficar mais esperto. Confere o horário da missa com uma devota que já se dirigia para a igreja e atravessa a praça em busca de abrigo. Avista um vetusto fícus-benjamim e pede-lhe sombra. Acomoda-se num banco tosco e o pensamento se volta para seus parceiros de jogo de dama das tardes lúdicas de Belmonte.
O cenário se torna mais ainda familiar para ele, ao ver passar uma jovem senhora com um bebê entre os braços, caminhando em passos cadenciados e cautelosos, portando um xale que lhe cobria os ombros e agasalhava o filho nascido há pouco tempo. Acompanhou os passos da jovem mãe e, depois de assuntar por algum tempo, certificou tratar-se de Belinha, o colírio para os seus olhos, hoje com data vencida, pelas óbvias circunstâncias. Freado em suas intenções de expressar seu contentamento diretamente a Belinha pelo feliz reencontro, Zé Lucas fez uma oração a São Longuinho por aquele achado.
O sino da Igreja Matriz convocava o povo em geral, e os devotos do Santo, em especial, para o tão esperado Ofício Divino.
Zé Lucas adentra o Templo, procura assento e de soslaio observa Belinha afagando seu rebento, posicionada na primeira fila de bancos. Depois que toda a assembleia dos fiéis respeitosamente põe-se de pé, os acólitos dão início ao cortejo litúrgico seguidos pelo oficiante, Padre André. Perplexo, nosso viandante fita o celebrante e desvia o olhar de modo maquinal para a primeira fila de bancos. Somando as parcelas, o resultado se achava nos braços de Belinha...
De volta a Belmonte no trem que saiu às dezessete horas, Zé Lucas a observar a paisagem passar ligeiro, volta o pensamento a Pitombeiras com a certeza de que São Longuinho ganhara mais um devoto, pois ele achara a si mesmo quando se areou na cidade, além de Belinha e Padre André.
Coincidências à parte, Zé Lucas alimentou mais ainda as fantasias que lhe fazem companhia nas suas noites solitárias de viuvez.
- Sua bênção, São Longuinho!
E adormeceu na viagem de volta.
=============================
** Calipigia = que tem belas nádegas.
* Fícus = figueira
Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário