segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Renato Frata (Nanocontos) 4

Abstêmia

Trêmulo, encheu o copo e esperou a vontade passar. Ao se ir, sorriu vingado. Entornou na pia.
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Alvitre

Passei 90 dias lembrando da senhora mãe do meu dentista. Aí acabou o tratamento.
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Amélia

Apaixonada, a    borracha se acabou desfazendo os erros do amado lápis.
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Azar

Seus gemidos nunca foram ouvidos; é que morava num beco sem saída.
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Banho a dois

Nos fiapos da toalha, seu perfume ainda se contorce... e banha seu frescor no meu nariz.
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Birra

Sombra teimosa: esticou, engordou, cresceu e quase sumiu de encolhida, mas não largou do meu pé.
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Culpa

Nos grotões da vida, pia sempre em tardia hora a coruja preguiçosa da consciência,
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Despeito

Atrasado, vestiu-se e saiu apressado. Tropeçou no sol sentindo a vida lhe correr pela cara.
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Espaventado

Seus caminhos sempre foram tortuosos e ele nunca se encontrou: eixo fora de centro.
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Estoque

Sob a minha cama, gemem camadas de sono pouco usadas.
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Ao se levantar, orou e agradeceu pela noite. Nada sentiu, mas sua alma se vestiu com armadura.
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Frigoríficos

Tão forte a velhacagem que a "Carne Fraca" fortaleceu o açougueiro da esquina.
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Gratidão

O tapete de sibipiruna, tão lindo, inspirou poema; então, embevecido, dediquei-o a você,
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Herança

Hoje nossas marcas são enxutas. As de ontem se banharam no suor do trabalho.
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História

Num pé-de-vento a saia foi à cabeça e corpo se empoeirou. Era o diabo assanhado nele.
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Lábios

Grossos, finos, largos, grandes, pequenos deslizam beijos e palavras. O doce fica por sua conta.
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Natureza

A alma da árvore esfarelou-se nos dentes da serra e o vento espalhou cinzas da incinerada.
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Paciência

O dia de ontem foi tão bom que deveriam inverter o calendário, porque hoje, ó, tá um saco!
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Poesia negra

Verso perverso é aquele que sai da boca com raiva em praguejo: procura por Augusto dos Anjos.
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Precaução

Diante da juventude de Chapeuzinho, o lobo, velhusco, saiu de fininho: melhor preservar a fama.
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Resfriado

Chuva fininha, arrepio na espinha, frio na alma e lágrima escorrida do nariz.
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Responda Rápido

Se a Terra do Ninguém é de ninguém, e se ninguém é ninguém, quem será o dono?
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Sem-teto

Não tendo para onde ir, todos os ais se esconderam na ponta da agulha.
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Só observam

Na briga entre o Bem e o Mal, o Bom e o Mau ficaram de fora. Questão de semântica.
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Visão

No balanço das horas, as cordas do relógio despertam o despertador Olho-a que dorme feliz.
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Visita

Um louco invadiu com faca na mão o hospital onde se tratava. Na outra levava uma laranja.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.

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