sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLIX


O céu de todos os invernos

 
O céu de todos os invernos
Cobre em meu ser todo o verão...
Vai pras profundas dos infernos
E deixa em paz meu coração!

Por ti meu pensamento é triste,
Meu sentimento anda estrangeiro;
A tua ideia em mim insiste
Como uma falta de dinheiro.

Não posso dominar meu sonho.
Não te posso obrigar a amar.
Que hei de fazer? Fico tristonho.
Mas a tristeza há de acabar.
Bem sei, bem sei...

A dor de corno
Mas não fui eu que lho chamei.
Amar-te causa-me transtorno,
Lá que transtorno é que não sei...

Ridículo? É claro. E todos?
Mas a consciência de o ser,
fi-la bastante clara deitando-a a rodos
Em cinco quadras de oito sílabas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O Contra-Símbolo
 
Uma só luz sombreia o cais.
Há um som de barco que vai indo.
Horror! Não nos vemos mais!
A maresia vem subindo.

E o cheiro prateado a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tomar-se este como porto
E este cais a bruxulear.

Um apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinheiral? -
O expresso inútil atrasado.

E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto do barco ido.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ó curva do horizonte, quem te passa,
 
Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista,
não de ser ou 'star.
Não chameis à alma, que da vida esvoaça,
Morta. Dizei: Sumiu-se além no mar.
Ó mar, sê simbolo da vida toda -
Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!
Finda a viagem da morte e a terra à roda,
Voltou a alma e a nau a aparecer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ó ervas frescas que cobris
 
Ó ervas frescas que cobris
As sepulturas,
Vosso verde tem cores vis
A meus olhos, já servis
De conjeturas.

Sabemos bem de quem viveis
Ervas do chão,
Que sossego é esse que fazeis
Verde na forma que trazeis
Sem compaixão.

Ó verdes ervas, como o azul medo
Do céu sem Ser,
Cunhado como entre segredo
Da vida viva, e outro degredo
Do infinito haver.

Tenho um terror como todo eu
Do verde chão...
Ó sol, não baixes já no céu,
Quero um momento ainda meu
Como um perdão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O grande sol na eira
 
O grande sol na eira
Talvez seja o remédio...
Não quero quem me queria,
Amarem-me faz tédio.

Baste-me o beijo intacto
Que a luz dá a luzir
E o amor alheio e abstrato
De campos a florir.

O resto é gente e alma:
Complica, fala, vê.
Tira-me o sonho e a calma
E nunca é o que é.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ouço passar o vento na noite
 
Ouço passar o vento na noite.
Sente-se no ar, alto, o açoite
De não sei quem em não sei quê.
Tudo se ouve, nada se vê.

Ah, tudo é igualdade e analogia.
O vento que passa, esta noite fria.
São outra coisa que a noite e o vento -
Sonhos de Ser e de Pensamento.

Tudo no narra o que nos não diz.
Não sei que drama a pensar desfiz
Que a noite e o vento passados são.
Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.

Tudo é uníssono e semelhante.
O vento cessa e, noite adiante,
Começa o dia e ignorado existo.
Mas o que foi não é nada isto.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
http://www.jornaldepoesia.jor.br/pessoa.html

Nenhum comentário: