domingo, 22 de janeiro de 2023

O. Henry (Sacrifício de amor)


"Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado".


É esta a nossa premissa. A presente história alcançará uma conclusão dela, demonstrando simultaneamente a falsidade da citada premissa. Constituirá uma nova experiência em lógica e na ciência da narrativa; algo um pouco mais antigo que a Muralha da China.

Joe Larrabee surgiu das pradarias do Middle West com uma pulsação de gênio da pintura. Aos seis anos, desenhou a bomba extintora de incêndios da povoação, juntamente com uma individualidade proeminente que a manejava com presteza. O seu "esforço" foi emoldurado e exibido na casa da botica local, ao lado de uma espiga invulgarmente desenvolvida. Aos vinte anos, partiu para Nova Iorque, com uma gravata em forma de laço flutuante e um capital limitado.

Délia Carruthers executava, na sua aldeia do Sul rodeada de pinheiros, coisas tão fantásticas com as oitavas, que a família decidiu reunir o dinheiro necessário para que a moça se deslocasse ao Norte, a fim de completar o curso. Não o conseguiu e... mas isto faz parte da nossa história.

Joe e Délia conheceram-se num estúdio onde costumavam juntar-se estudantes de música e arte, para trocar impressões sobre o claro-escuro, Wagner, composições famosas, obras de Rembrandt, quadros célebres, Waldteufel, Chopin e Oolong.

Joe e Délia apaixonaram-se um pelo outro - ou um e o outro, consoante as preferências do leitor - imediatamente e não tardaram em contrair matrimônio, porque (leia-se acima) "quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado".

O Senhor e Senhora Larrabee instalaram o seu lar num apartamento solitário, tão solitário na verdade como a extremidade no setor esquerdo de um teclado. Não obstante, eram felizes, porque tinham a sua Arte e um ao outro. (Aproveito a oportunidade para dar um conselho aos rapazes endinheirados: vendam o que possuem e deem aos pobres o que recolheram. Busquem o privilégio de viver num apartamento com a vossa Arte e a vossa Délia).

Todos os que morarem num apartamento concordarão comigo em que são particularmente ditosos. Se existe a felicidade num lar, este nunca parece demasiado pequeno. Não importa que os móveis deixem transparecer avançado estado de decomposição ou que exista acumulação de funções em determinadas dependências. O essencial é que, de entre o caos, se ergam as duas únicas figuras que interessam: ele e ela.

Joe pintava às ordens do poderoso Magister, cuja fama se torna desnecessário frisar. Cobrava tarifas elevadas por cada aula, que evidenciava a circunstância de ser extremamente breve, pormenor que contribuiu decisivamente para o celebrizar. Délia estudava com Rosenstock, possuidor de boa reputação como renovador da classe dos pianistas que assolava o país de leste a oeste.

Foram imensamente felizes, enquanto o dinheiro durou. Mas... não pretendo de modo algum ser cínico. Ambos tinham perfeitamente definida a sua ambição. Em pouco tempo, Joe produziria quadros tão admiráveis que os anciãos de bolsas nutridas formariam uma fila interminável à porta do seu estúdio para conseguir a ventura de os adquirir. Délia, por seu turno, achar-se-ia tão familiarizada com a música, que até se poderia sentir superior a ponto de, num futuro próximo, se não fossem vendidas todas as entradas para um seu recital, negar-se a atuar alegando laringite súbita e aguda e permanecendo numa sala de jantar privada, entregue aos prazeres de uma excelente lagosta preparada por um chefe expressamente chamado da França.

O melhor de tudo consistia, sem dúvida, na vida familiar no pequeno apartamento: as prolongadas e calorosas conversas após o trabalho cotidiano; as refeições íntimas, o café da manhã frugal e vaporoso; o intercâmbio de ambições - entrelaçando sempre as de um com as do outro, por resultar inadmissível outra coisa - a ajuda e inspiração mútuas e, perdoe-me o pormenor, as azeitonas recheadas e sanduíches de queijo, às onze da noite.

E, apesar disso, a Arte terminou por fraquejar o que se verifica com frequência, conquanto ninguém se possa considerar responsável do fato, sobretudo quando o termo "saída" se emprega com larga vantagem sobre "entrada" no movimento de fundos domésticos. O dinheiro extinguiu-se totalmente por fim, tornando-se impossível satisfazer os honorários do senhor Magister e de Herr Rosenstock. Mas evidentemente que "quando uma pessoa ama a Arte, sacrifício algum lhe parece exagerado". Por conseguinte, para que o essencial não faltasse, Délia resolveu dar lições de música.

Durante dois ou três dias não fez outra coisa senão procurar alunos. Certa noite, regressou a casa animadíssima.

- Consegui uma aluna, querido Joe! - exclamou alegremente. - Pertence a uma família estupenda. O general... digo, é filha do general A. B. Pinckney, que mora na Rua Setenta e um, numa casa positivamente maravilhosa. Só queria que visse a entrada suntuosa, em estilo bizantino, se não me engano. A pequena chama-se Clementina, e confesso que já lhe criei afeto. Veste sempre de branco e parece muito simples. Tem apenas 18 anos. Vou dar-lhe três aulas por semana e... prepara-te para o melhor... pagam-me à razão de cinco dólares! Não me importo de o fazer porque, assim que arranjar mais um ou dois alunos, poderei estudar de novo com Rosenstock. E agora, deixa de franzir o sobrolho e saboreemos um jantar agradável.

- Tudo isso está muito bem para ti, Délia - replicou Joe, atacando uma lata de conservas com uma faca velha e um martelo. - Mas, e eu? Pensas que permitirei que trabalhes e ganhes dinheiro, enquanto vegeto nas regiões da Arte? Pelas ossadas de Benvenutto Cellini! Garanto-te que não concordo. Resta-me sempre ir vender jornais ou trabalhar como pedreiro para ganhar uns cobres.

A moça aproximou-se dele e abraçou-o, murmurando:

- És um pateta. Na realidade, não abandonei a minha carreira para me dedicar a outra ocupação. Continuarei ligada a ela, porque ensinando também aprendo. E, com quinze dólares semanais, viveremos como milionários sem que tenhas de abandonar as aulas do senhor Magister.

- Está bem - transigiu Joe, enquanto ia buscar a travessa azul para a salada. - Em todo o caso, quero lavrar o meu protesto por te moveres por aí a dares aulas. Isso não é Arte. No entanto... considero-te maravilhosa e adoro-te pelo que acabas de fazer.

- Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado - frisou ela.

- Magister enalteceu o realismo das cores que empreguei naquele quadro que representa o parque - volveu Joe - e Tinkle autorizou-me a expor duas telas na sua vitrine. Agora, só é preciso que um milionário excêntrico repare nelas.

- Tenho a certeza absoluta de que as venderás. E agora, agradeçamos à Providência o fato de ainda existirem pessoas como o general Pinckney... e esta vitela assada.

Durante a semana imediata, os Larrabee tomaram o café da manhã muito cedo. Joe parecia entusiasmado com o esboço de "efeitos matinais" em que trabalhava no Parque Central. Délia animava-o, beijava-o e despedia-se dele às sete, porque a Arte é uma amante exigente. Muitas vezes, ele só regressava às sete da tarde. No final da semana, Délia, docemente orgulhosa, conquanto fatigada, depositou sobre a mesa, com um gesto triunfante, três notas de cinco dólares.

- Há ocasiões em que Clementina chega a impacientar-me - confessou de modo algo precipitado. - Desconfio que estuda pouco, e vejo-me obrigada a repetir-lhe as mesmas coisas com insistência. Além disso, como veste sempre de branco, o cenário resulta deveras monótono. O general Pinckney é, pelo contrário, um ancião encantador. Gostava que o conhecesses, Joe.

Por vezes, quando Clementina e eu estamos sentadas ao piano, entra e permanece de pé junto de nós, acariciando as barbas brancas. "Como vão essas semicolcheias e semifusas?", costuma perguntar. A propósito: cheguei a dizer-te que é viúvo? Tenho pena que não possas admirar os belos objetos existentes no salão. E os cortinados? Simplesmente deslumbrantes. Mas, voltando à Clementina, acho-a curiosamente pálida e a sua tosse não me agrada. Oxalá a saúde não seja tão débil como parece. Creio que começo a estimá-la demasiado. Mostra-se tão amável e distinta! Sabias que o irmão do general foi embaixador na Bolívia?

Nesse momento, e com ares de um novo Conde Monte Cristo, Joe extraiu várias notas de banco do bolso, de dez, cinco, dois e um dólar, e colocou-as ao lado dos proventos de Délia.

- Vendi a aquarela do obelisco a um tipo de Peoria. - anunciou com ares importantes.

- Não me digas! E nada menos que de Peoria.

- Exatamente. É um fulano rechonchudo, que usa cachecol de lã e tem um palito entre os dentes permanentemente. Viu o quadro na vitrina de Tinkle, e a princípio pensou que se tratava de um moinho de vento, mas disfarçou bem quando o elucidei. Acabou por adquiri-lo e encomendou-me outro. - Joe fez uma pausa. - Lições de música! Enfim, espero que não se possam considerar totalmente divorciadas da Arte.

- Não imaginas como me alegro, querido! - bradou ela, com genuína satisfação. - Tenho a certeza absoluta de que triunfarás. Trinta e três dólares!... Nunca dispusemos de tanto dinheiro para gastar. Esta noite, haverá ostras para o jantar.

- E filet mignon com champignons - acrescentou Joe. - Onde esta a lata das azeitonas recheadas?

Na noite de sábado seguinte, ele chegou a casa antes de Délia. Colocou em cima da mesa dezoito dólares e foi lavar as mãos, que tinha cobertas de uma substância escura semelhante a pintura. Meia hora mais tarde, ela entrou com a mão direita envolta em ataduras.

- Que aconteceu? - quis saber Joe, após as manifestações extremosas de praxe.

Délia pôs-se a rir, porém a hilaridade soava falso.

- Clementina insistiu em que comesse um sanduíche de queijo quente, depois da lição. Imagina: sanduíches de queijo quente às cinco da tarde! Se alguma vez se viu... O general também estava presente. Gostava que o observasses preparando o fogão elétrico, como se não houvesse um regimento de criados em casa. Agora, já não duvido da saúde frágil da moça. Mostra-se sempre nervosa e a tosse não a larga. Quando servia os sanduíches, deixou cair um pouco de queijo derretido na minha mão. Senti uma dor agudíssima e fiquei queimada. O general achava-se positivamente alarmado. Pôs-se fora de si, correu pela escada abaixo e mandou alguém à farmácia para comprar pomada para as queimaduras e um rolo de ataduras. Agora já não dói tanto.

- E isso o que é? - quis saber ele com ternura. Pegando na mão dela e indicando uma compressa branca que emergia da atadura.

- Um pedaço de algodão embebido em óleo próprio para as queimaduras. - Délia desviou os olhos para a mesa. - Vendeste outro quadro?

- Ao mesmo tipo de Peoria. E parece decidido a adquirir aquele que tenho quase concluído. Que horas eram quando te queimaste?

- Por volta das cinco. O ferro... digo, o queijo saia do fogo precisamente nesse momento e eu... Cada vez que me lembro da contrariedade do coronel...

- Senta-te, querida. - Joe arrastou-a para o sofá, instalou-se a seu lado e perguntou, abraçando-a: - Que fizeste na realidade durante as duas últimas semanas?

Ela sustentou o olhar do marido por uns segundos, murmurou umas frases vagas relativas ao general Pinckney e acabou por inclinar a cabeça e soluçar, enquanto confessava a verdade.

- Não encontrava alunos e não podia suportar a ideia de que abandonasses as aulas. Coloquei-me como engomadeira de camisas naquela importante lavanderia da Rua Vinte e Quatro. No entanto, deves reconhecer que a invenção do general Pinckney e Clementina foi genial. Esta tarde, quando uma companheira de trabalho deixou cair o ferro quente em cima da minha mão, tive de desenvolver esforços enormes para arquitetar o episódio do sanduíche de queijo. Fui alinhavando os pormenores a caminho de casa. Ficaste zangado comigo, Joe? Se não me empregasse, não vendias os quadros ao homem de Peoria.

- Na verdade, não é de Peoria - declarou ele, pausadamente.

- Que importa isso? O essencial é que possuis talento, querido. Beija-me e explica-me como suspeitaste de que não dava lições de piano?

- Só desconfiei quando há pouco te vi entrar. E não adivinharia a verdade... se não fosse eu mesmo que embebi essa compressa em óleo, na sala das máquinas, perto das caldeiras, e a enviei ao andar de cima para uma empregada que acabava de queimar a mão com um ferro de engomar. Devo confessar que sou, há duas semanas, o responsável pelo funcionamento das caldeiras da tua lavanderia.

- Nesse caso, não?...

- O cliente de Peoria e o general Pinckney são produtos da mesma arte -afirmou Joe. - Uma arte que não engloba positivamente a pintura nem a música.

Após uma pausa, puseram-se a rir, divertidos.

- Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum... - começou ele.

Todavia, Délia interrompeu-o, cobrindo-lhe os lábios com a mão.

- Nada disso. Diz apenas: quando se ama...

Fonte:
O. Henry. Publicado originalmente no livro “The Four Million”, em 1906. Disponível no Projeto Gutenberg https://www.gutenberg.org/ebooks/author/634

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