Obs do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 127)
Enerva-me esta chuva impertinente
Que tomba lá dos céus feitos de breu
E as gotas são o pranto que nasceu
De nuvens que tivessem dor de gente.
O vento ainda faz mais repelente
Cada pingo que o meu rosto ofendeu
Lágrima que do ar se desprendeu
Como um cristal da mágoa que alguém sente.
A chuva tudo alaga, tudo invade
Deixando o fino véu dessa umidade
Caído pelo chão, pênsil dos ramos.
E sobe uma revolta ao meu olhar;
Por que há de a Natureza assim chorar
Do modo como nós também choramos?
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
Não darei um só passo onde me prenda
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 101)
Não darei um só passo onde me prenda
O espectro de um amor que já passou
E o resto de um sorriso que raiou
Que fazem com que agora eu me arrependa.
Mas este coração não tem emenda
E sonha com o que ainda não achou
E de todos os gostos que provou
Elege o teu beijar de que faz lenda.
Procuro outros caminhos onde passe
Sem ver em cada rosto a tua face
Trazendo o que a teu lado eu já vivi.
É falsa a tentativa dos meus passos
Que lembrando o calor dos teus abraços
Simplesmente me levam para ti.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
Olha Daisy: quando eu morrer tu hás-de...
(Fernando Pessoa/Alvaro de Campos "Cem Sonetos Portugueses", p. 82)
Olha, Daisy: quando eu morrer tu pensas
Que fui ali, à esquina, ver tabaco
Que me escapei do lar, sem dar cavaco
Mas que voltarei já, sem mais detenças.
Vendo bem, não são muitas as diferenças
Entre a morte e uma queda num buraco
Da rua em que rasgamos o casaco
E o corpo sofre mais outras ofensas.
Insulta-me: "És canalha e mentiroso!!!
Seu traidor!!! És um traste e cão raivoso!!!
Até que enfim, me vi livre de ti!"
E não indo a saudade à tua porta
Quando a minha lembrança for já morta
Não vale a pena, então, ver que eu morri...
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
O livro onde sepulte o meu sofrer
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos" p. 93)
O livro onde sepulte a minha dor
Não o lavro com lágrimas de tinta
Pois com medo que invente ou que eu lhe minta
Não achará jamais qualquer leitor.
Seria, com certeza, um fraco autor
E a minha mão de inspiração faminta
Daria, em pouco tempo, por extinta
Essa obra sem ter um editor.
Guardo em pasta de capa dura e preta
Essas folhas que fecho na gaveta
Como os mais crus e tristes documentos.
Um dia, quando o livro estiver feito
Com a pena que usei rasgo o meu peito
E essas páginas rudes solto aos ventos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
Vejo-te sempre em horas de saudade
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 145)
Vejo-te sempre em horas de saudade
Quando em meu peito dói a tua ausência
Presente como eterna penitência
Que eu pague por te amar sem castidade.
Envolto sempre em rara claridade
Segreda o teu olhar a confidência
Em que naufraga, nua, esta inocência
No abraço que me traz à realidade.
Talhada em minha mente sempre vens
Livre e solta no tempo e te deténs
Trazendo à minha vida a doce paz.
Com enlevos eu te amo e te venero
E em meus dias o que eu anseio e quero
Sempre és tu quem o diz e quem o faz.
Fonte:
Sonetos enviados pelo poeta.
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Sonetos enviados pelo poeta.
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário