domingo, 15 de janeiro de 2023

Eliseu Lacerda (Por dez minutos o Carlito não morreu)


Um relato difícil de se acreditar. Maracanã cheio... festa... decisão de campeonato... um quadro lindo e, ao mesmo tempo, "arrepiante. Era muita gente. Público: mais de 164.000! Cerca de 90% vestidos de vermelho e preto. O Carlito parecia no céu: "pela primeira vez, o pai me traz ao Maracanã...” eu não acredito... acho que era o que se passava na sua cabeça.

Ano de 1992; o campeonato brasileiro chegava ao fim. Depois de uma goleada por 3 a O sobre o Botafogo, o Mais Querido estava "com a mão na taça"; eu já havia programado a compra das passagens na semana anterior; faltava apenas a primeira partida acontecer, e o primo Norbertinho me compraria os ingressos (acho que foi ele mesmo - ele e a Lúcia eram os meus "contatos" pra compra de ingressos, no Rio).

As filhas Mili e Andrea ficaram em Curitiba; assistiriam pela televisão, com um pedido meu pra gravarem o jogo. Foi o que fizeram.

 Não comentarei aqui, o que se passava na minha cabeça; são detalhes que devo dispensar. Carlito, apesar dos seus 15 anos, era pequeno. Eu vivia muito preocupado com isso; e o cuidado com ele, dentro do estádio, era fundamental para a sua segurança.

Assim que vislumbramos aquela maravilhosa galera, cantando "hinos de guerra", o Carlito correu em direção à grade de proteção, na arquibancada. Eu disse a ele que tomasse cuidado, porque os parafusos de sustentação estavam enferrujados. Mas, não me preocupei tanto com isso.

De 1988 a 1998, eu fui proprietário de uma banca de jornais, ao lado de casa. Uma das distribuidoras de revistas que me atendiam era a Ghignone. Quando o Flamengo se classificou para a final, que seria disputada em dois jogos, eu fui ao Fernando Ghignone, proprietário da distribuidora, e pedi que "bancasse" a confecção de uma faixa. Aceitou.

Bolei o seguinte texto para a faixa: "Curitiba te saúda, mengão campeão - Flaghignone". De fundo branco e letras em vermelho e preto, até que ficou bem vistosa... "com direito" a aparecer na televisão (do lado esquerdo da tela), nas seguidas chamadas do Maracanã, pela Globo (tá lá no vídeo), durante a partida preliminar entre veteranos do Mengo e pessoal da imprensa.

Conhecedor profundo do estádio, eu gostava de ficar na parte central, sentado no quinto lance de degraus (naquela época, não havia cadeiras ali); quem ficasse passando rente à grade, não tirava a minha visão do campo; ao mesmo tempo, não era tão longe que prejudicasse o reconhecimento dos jogadores. Além do mais, naquele nível ficavam as saídas da parte da arquibancada,

Estava tudo perfeito: pendurei a faixa na grade e fui "pro meu lugar"; o Carlito, maravilhado com tudo, não se desgrudava da grade (alambrado), bem sobre o lugar onde amarrei a faixa. E gritava sem parar: "... Mengo... Mengo... Mengo... Mengão e ô... Mengão... e ô!".

"Pai! Pai! Pai! Estão tirando a faixa... pai!". Corri, descendo os degraus. "Pô... larga a faixa... ela é minha...", gritei. "O senhor tem que tirar a faixa daqui", gritavam alguns membros da "Raça Rubro-negra". "Eu cheguei primeiro...", argumentei, "Não tem quem chegou primeiro... esse lugar é nosso...", respondiam, enquanto desamarravam a faixa. "Moço, põe a faixa aqui...!", gritou a Chefe da "Charanga", a uns cinco metros à minha direita; "... aqui tem espaço...". E fui pra lá, com a faixa.

Alguns torcedores me ajudaram a amarrar a faixa no novo lugar. O Carlito se deslocou e voltou a ficar com os braços apoiados na grade, sobre o ponto onde, então, coloquei a faixa. Voltei pro quinto lance de degraus, agora em frente ao novo local.

A preliminar estava tão emocionante, a minha alegria era tanta, em ver o meu "gatão", pela primeira vez no Maracanã, que não liguei para este pequeno incidente. Se alguém me dissesse o que iria acontecer, em seguida, eu jamais acreditaria. Passaram-se cerca de dez minutos, desde o deslocamento da faixa... só isso. Tempo curto demais para o que vinha depois!

"Carlito, sai! Carlito, corre pra cá... corre!", gritei desesperado.

Desci feito um louco, pra proteger o meu filho. Pavoroso, o que acontecia: à minha esquerda, exatamente no lugar onde, há dez minutos, estava a faixa, o mundo parecia desabar.

Com    aquele    "empurra-empurra",    torcedores tomando a sua “cervejinha”, farra de torcidas, o alambrado cedeu, rompendo-se num discreto estalo. Calculo "por baixo", que caíram uns 30 torcedores, contando aqueles que, curiosos, vinham ver o que acontecia "lá em baixo" e, também, caiam.

Em segundos, o barulho de sirenes de ambulâncias, corre-corre, gritos de desespero, corpos sobre o chão; em seguida, helicópteros pousavam próximo ao local, para ajudar na remoção dos feridos mais graves.

A preliminar foi interrompida imediatamente.

Pensei nas filhas, em Curitiba... elas estão assistindo, ao vivo, o acidente. Eu não tinha noção do número de mortos. "Preciso telefonar urgente pra lá...", falei com o Carlito. "Não saia daqui, de jeito nenhum... eu volto já", completei, e corri em direção aos "orelhões" mais próximos.

Mais desespero: não conseguia linha, pra falar com Curitiba. Tentei muitas vezes, até que me ocorreu telefonar pra Vila Velha e pedir a algum irmão que telefonasse pra Curitiba, avisando que estávamos bem... nada havia acontecido conosco.

Fiz bem: pela transmissão da televisão, dava pra ver, nitidamente, que a queda se verificou exatamente onde ficara a faixa, anteriormente. Mas, não podiam saber que tinha sido retirada minutos antes da tragédia; e estavam chorando, quando receberam o telefonema de Vila Velha.

O jogo Flamengo e Botafogo começou com uns cinco minutos de atraso. Houve empate por dois gols, e o Mengão foi campeão brasileiro.

Saldo do acidente: muitos feridos, alguns graves; três mortes, no local mais duas mortes no hospital, durante a semana. Antes do jogo, um torcedor rubro-negro foi morto a tiros, no estacionamento do estádio.

Graças a Deus, e "por dez minutos, o Carlito não morreu", no Maracanã.

Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich
Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.

Nenhum comentário: