sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Guy de Maupassant (O Guarda)

 


Contavam-se aventuras e desastres de caça, no fim de jantar. Um velho amigo de todos nós, o sr. Boniface, grande matador de bichos e grande bebedor de vinho, homem robusto e alegre, cheio de espírito, bom senso e filosofia, de uma filosofia irônica e resignada, manifestando-se por patuscadas provocantes e nunca por tristezas, — disse de repente:

— Sei eu uma história de caça, ou antes um drama de caça, bem singular. Não se parece nada com o que nesse gênero se conhece; e nunca portanto o contei, pensando que a ninguém divertiria. Não é simpático, percebem? Quero eu dizer que não tem essa espécie de interesse que apaixona, que seduz, ou que comove agradavelmente. Mas enfim, lá vai.

Tinha eu então os meus trinta e cinco, e caçava como um danado. Possuía nesse tempo uma propriedade muito isolada nos arredores de Jumièges, cercada de matas, esplêndida para lebres e coelhos. Só lá ia passar quatro ou cinco dias por ano, porque a instalação me não dava para levar um amigo. Tinha eu lá metido por guarda um gendarme reformado, bom homem, violento, ríspido em cumprir as ordens, terrível para os caçadores furtivos, homem que não devia nem temia. Morava sozinho, longe da aldeia, numa casinha, ou antes casebre, composto de cozinha e despensa em baixo, e de dois quartos no primeiro andar. Um deles, espécie de edícula em que cabiam ao certo uma cama, um armário e uma cadeira, era-me reservado. O tio Cavalier ocupava o outro.

Dizendo que morava sozinho na casa, exprimi-me mal. Tinha consigo um sobrinho, um malandrinho de catorze anos que ia às compras à vila, distante três quilômetros, e ajudava o velho nos seus trabalhos cotidianos. Esse garoto, comprido e magro, um pouco adunco, tinha o cabelo loiro como uma penugem de franga depenada, tão raro que parecia calvo. Pés enormes e mãos gigantes, mãos de colosso. Entortava um pouco a vista, e nunca encarava ninguém. Na raça humana, fazia-me o efeito dos bombardeiros entre os irracionais. Ou era doninha ou raposa, o maroto.

Dormia num desvão ao cimo da escada; mas durante as minhas estadas no Pavilhão, — nome que eu dava ao casebre — o Mário cedia o seu nicho a uma velhota de Ecorcheville, chamada Celeste, que me vinha fazer a comida, porque os pitéus do tio Cavalier eram uma desgraça. Conhecem, pois, os personagens e o local. Agora, aí vai a ventura:

Foi em 1854, 15 de outubro, — lembro-me bem, e nunca me esquecerei. Parti de Ruão a cavalo, seguido do meu cão Bock, perdigueiro magnífico do Poitou, largo de encontros e ladrador, que flanava pelos silvados como um gozo de Pont-Audemer. Levava eu na garupa o saco de viagem, e a tiracolo a espingarda. Dia frio, de ventania triste, com nuvens sombrias a correrem pelo céu fora. Subindo a ladeira de Cinteleu, olhava o largo vale do Sena, que o rio atravessava até ao horizonte, com sinuosidades de serpente. À esquerda, Ruão perfilava no céu todos os seus campanários, e à direita, estacava o olhar nas encostas longínquas, cobertas de mato. Atravessei depois a mata de Roumare, ora a passo ora a trote, e por volta das cinco cheguei ao Pavilhão, onde o tio Cavalier e a tia Celeste me esperavam.

Havia dez anos que eu me apresentava da mesma forma na mesma época, e que as mesmas bocas me saudavam com as mesmas palavras.

— Viva, meu senhor. O meu senhor tem passado bem?

O Cavalier estava o mesmo. Resistia ao tempo como uma velha árvore; mas a Celeste, especialmente de quatro anos àquela parte, nem parecia a mesma. Tinha-se quebrado ao meio, e, bem que sempre videira, andava, com o corpo tão dobrado que fazia quase um ângulo reto com as pernas. Muito dedicada, a velha parecia sempre alvoroçadíssima quando me via, e dizia-me sempre à despedida:

— Lembrar-me eu que talvez o não torne a ver meu rico senhor!

E essa despedida consternada, tímida, da pobre criada, essa resignação sem esperança perante a morte inevitável e decerto próxima para ela, bulia sempre comigo, de um modo esquisito. Apeei-me pois, e enquanto o Cavalier, a quem eu tinha apertado a mão, levava a cavalgadura para o telheiro (abrigo de animais) que lhe servia de estrebaria, entrei, seguido da Celeste, na cozinha, que também servia de sala de jantar.

O guarda lá foi depois ter conosco. Vi num relance que não vinha bem. Parecia preocupado, constrangido, inquieto. Disse-lhe:

— Então, Cavalier? Corre tudo a seu gosto?

Ele murmurou:

— Assim... assim... Há só uma coisa que me não agrada.

Perguntei:

— O que é? Conte lá isso.

Mas ele abanava a cabeça:

— Nada, por ora não, meu senhor. Não o quero incomodar logo à chegada, com as minhas rabugices.

Eu insisti, mas ele recusou absolutamente contar-me antes de jantar o que havia. Pela cara dele, contudo, eu bem via que a coisa era séria. Sem saber que dizer-lhe, pronunciei:

— É a respeito de caça? Temo-la por cá?

— Ora! É o que falta... Tem caça para dar e vender. Graças a Deus, eu cá andei de olho à
mira.

Dizia isto com tanta gravidade, com uma gravidade tão aflita, que chegava a ser cômica. Parecia mesmo que lhe caíam do beiço os grandes bigodes grisalhos. De repente, fiz reparo em que ainda não tinha visto o sobrinho:

— E o Mário? Que é feito dele? Porque se não mostra?

O guarda teve uma espécie de sobressalto, e encarando-me:

— Pois aí está, meu senhor, mais vale contar-lhe já o caso. Antes isso, é por causa dele que eu ando apoquentado.

— Olá! Então onde está ele?

— Está na cavalariça, meu senhor, eu esperava ocasião de o fazer aparecer.

— Então que fez ele?

— Lá vai, meu senhor.

O guarda hesitava contudo, com a voz mudada e trêmula, as feições repentinamente cavadas de rugas profundas, rugas de velho. E continuou:

— Ora pois, este inverno, eu bem vi que andavam ao laço nas matas das Roseraies, mas não conseguia pilhar o homem. Passei noites e noites à caça. Nem nada! E durante esse tempo, quem quer que era pôs-se a armar ao laço para as bandas de Ecorcheville. Eu até andava na espinha, de raiva; mas quanto a apanhar o malandrinho, era uma vez! Parecia que sonhava os meus passos e os meus projetos. Nisto, um dia, ao escovar as calças do Mário as calças domingueiras encontro-lhe quarenta sous no bolso. Onde os teria ele ido buscar? Andei a matutar no caso oito dias, e notei que ele saía justamente quando eu me recolhia para descansar. Espreitei-o então; mas nem por sombras suspeitava da coisa. Um dia de madrugada, tendo acabado de me deitar à vista dele, ergui-me num pronto, e segui-o. Não há outro como eu para ir na cola a alguém. E vai então, pilho o Mário a armar laços nas suas terras, meu senhor; ele, meu sobrinho, sobrinho do seu guarda! Subiu por mim a cima uma coisa, e não sei como não dei cabo dele, de tanto que lhe bati. Isso é que foi bater! E ainda por cima, prometi-lhe outra sova para quando o senhor chegasse! Só para lhe ficar de castigo. Ora aí está; pus-me definhado de desgosto. O senhor bem sabe o que são estas arrelias. Mas o que faria o senhor no meu caso? O rapazinho já não tem pai nem mãe, eu sou o seu único parente, deixei-o ficar, que o não havia de pôr fora, pois não é assim? Mas jurei-lhe que se tornasse, punha-o com dono. Fiz bem, meu senhor?

Eu respondi, estendendo-lhe a mão:

— Fez bem, Cavalier. Você é um homem honrado.

Ele ergueu-se:

— Muito obrigado, meu senhor. Agora vou buscá-lo, para lhe dar a outra sova.

De mais sabia eu que era escusado tentar dissuadir o velhote. Deixei-o pois. Foi buscar o garoto e trouxe-o por uma orelha. Eu tinha-me sentado numa cadeira de palhinha, com cara solene de um juiz.

Pareceu-me crescido o Mário, ainda mais feio que o ano anterior, com o seu ar velhaco e mau. E as suas mãos pareciam monstruosas. O tio empurrou-o para diante de mim, e no seu tom militar:

— Pede perdão ao patrão!

O rapaz ficou-se.

Então, metendo-o debaixo do braço, o antigo gendarme levantou-o em peso, e desandou-lhe uma data de açoites com tamanha violência, que me levantei para lhe ter mão.

O rapaz berrava agora:

— Perdão! Perdão! Perdão! Eu prometo...

Cavalier pousou-o no chão, e forçando-o a pôr-se de joelhos:

— Pede perdão! — disse ele.

O garoto murmurava, de olhos baixos:

— Peço perdão...

O tio levantou-o então, e pô-lo fora com um derradeiro tabefe que não sei como o não fez ir de cangalhos. Ele pirou-se, e não o tornei mais a ver. Mas o Cavalier parecia aterrado:

— É má rês. — dizia ele.

E durante todo o jantar, não cessava de dizer:

— Nem o senhor calcula a pena que isto me faz.

Tentei consolá-lo, mas em vão. E deitei-me cedo, para ir à caça logo de madrugada. Já o meu cão estava a dormir no assoalho aos pés da cama, quando apaguei a luz. Pelo meio da noite acordou-me o Bock, ladrando furiosamente. Notei logo que tinha o quarto cheio de fumo. Saltei da cama abaixo, acendi a vela, corri à porta e abri-a. Entrou uma onda de labaredas. Estava casa a arder. Fechei logo a grossa porta de carvalho, e enfiando as calças, desci primeiro o meu cão pela janela com uma corda feita de lençóis enrolados, e depois atirado fora o fato, a espingarda e a bolsa de caça, safei-me pelo mesmo caminho. E pus-me a gritar com quanta força tinha:

— Cavalier!... Ó Cavalier!... Ó Cavalier!

Mas o guarda não acordava. Tinha um sono de chumbo. Entretanto, pelas janelas de baixo, via que todo o rés do chão era uma fornalha; e notei que o tinham enchido de palha para favorecer o incêndio.

Era portanto fogo posto!

E continuei a gritar com furor:

— Cavalier! Ó Cavalier!

Lembrou-me então que o asfixiava o fumo. Numa inspiração, e carregando os dois canos da minha espingarda, disparei um tiro contra a janela dele. Os seis vidros desfizeram-se em cacos; mas daquela feita o velho tinha ouvido, e apareceu desvairado, em fralda de camisa, atarantado sobretudo por aquele clarão que alumiava violentamente toda a frente da casa.

Gritei-lhe:

— Tem a casa a arder. Salte pela janela, depressa, depressa!

As labaredas, saindo bruscamente pelas aberturas de baixo, lambiam a parede, chegavam até ao guarda, não tardariam a tomar-lhe o caminho. Ele saltou e caiu de pé, como um gato. Não era sem tempo. O teto de colmo abriu ao meio, por cima da escada que servia de chaminé ao fogo de baixo, e subiu aos ares um imenso fogaréu vermelho, elevando-se como um repuxo de água e espalhando uma chuva de fagulhas em torno da habitação. Em poucos instantes a casa ficou reduzida a um braseiro.

Cavalier, aterrado, perguntou:

— Como seria isto?

Respondi:

— Foi fogo posto na cozinha.

Ele murmurou:

— Quem era que ia pôr fogo?

E eu, adivinhando num ai, pronunciei:

— O Mário.

O velho compreendeu, e balbuciou:

— Jesus Maria! Foi então por isso que ele não se recolheu!

Mas um pensamento horrível me atravessou o espírito, e clamei:

— E a Celeste? E a Celeste?

Ele não respondeu, a casa desabou diante de nós, formando apenas um espesso braseiro faiscante, sanguinolento, de fazer doer a vista, uma fogueira formidável, em que a pobre mulher devia estar reduzida a uma brasa de carne humana.

Nem um só grito nós tínhamos ouvido.

Mas como o fogo fosse a alcançar o telhado contíguo, lembrou-me de repente o meu cavalo, e o tio Cavalier correu a soltá-lo. Mal abriu a porta da cavalariça, um corpo ágil e rápido, passando-lhe entre as pernas, atirou com ele de ventas ao chão. Era o Mário, fugindo à desfilada.

O homem levantou-se num momento, quis correr mas compreendendo que o não alcançaria, e com a cabeça perdida por um furor irresistível, cedendo a um desses ímpetos irrefletidos, instantâneos, que não é possível prever nem reprimir, apanhou do chão a minha espingarda, pôs a arma à cara e antes que eu pudesse fazer um movimento, desfechou, mesmo sem saber se a arma estava carregada.

Um dos cartuchos que eu metera nos canos para anunciar o fogo, não tinha chegado a servir; e a carga, apanhando o fugitivo pelas costas, fê-lo cair de borco, alagado em sangue. O rapaz pôs-se ainda a engatinhar na terra com as mãos e os joelhos, como se quisesse correr, à maneira das lebres mortalmente feridas, vendo o caçador aproximar-se.

Corri. Já o pequeno agonizava. Expirou antes de apagado o fogo, sem ter proferido uma palavra. Cavalier, sempre em fralda de camisa, com as pernas à vela, ficava-se ao pé de nós imóvel, atoleimado.

Quando os habitantes da aldeia acudiram, levaram o meu guarda como doido. Fui ao julgamento como testemunha, e contei os fatos pelo miúdo, sem nada mudar. O Cavalier foi absolvido. Mas sumiu-se nesse mesmo dia, abandonando a terra. Nunca mais o tornei a ver.

E aí têm, meus senhores, a minha história de caça.

Fonte:
Guy de Maupassant. A sereia. (Beldemónio, tradutor). Publicado originalmente em 1884 .

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