quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 170


Rachel de Queiroz (Ai, Amazonas)


Um nordestino que subia conosco o Amazonas olhava a imensidão do rio alagando a terra plana a caminho de se perder no mar, e deu um suspiro sentido:

— Ah, se a gente pudesse tirar uma levada desta água e ir com ela até ao Rio Grande do Norte!

Não sei se pelo resto do Brasil levada tem o mesmo sentido. Para nós, quer dizer o rego d'água da irrigação. Realmente, se a gente pudesse encaminhar uma levada com um pouco do excesso daquelas águas até às nossas terras secas!

Mas só um pouco. Porque, pelo menos a nós, o efeito que nos causa a visão daquele sem-fim de águas é principalmente o medo. Espanto igualmente. porém o medo é maior que o espanto. Ali, sente-se que toda a vida é a água, mas também a água é toda a morte. Tudo vem da água do rio — o alimento, o transporte, a fartura vegetal das margens, a bebida, a fácil limpeza do corpo; e do rio vêm as doenças, a tremura e a febre, a umidade, a lama: do rio parte a rede dos furos recortando a mata, as águas paradas e malsãs dos igapós. No rio, ou à margem do rio, vivem as feras perigosas. Os homens conseguem sobreviver ali, mas sempre de sobreaviso, permanentemente sitiados por milhares de inimigos. As casas de madeira e palha, leves como gaiolas, são erguidas em jiraus de dois metros de altura, por temor das águas que sobem.

Ali não se anda a pé como é o natural do homem, senão praticamente no quintal de casa. Qualquer percurso maior é uma travessia e se faz na pequena embarcação que é um traste mais indispensável à família do que o fogão. Nos tempos de dantes, os paroaras chamavam de montarias a essas canoas domésticas, hoje não sei se ainda se chamam assim.

O povo é cristão, de longe em longe se levanta uma capela, mas se dirá que o Deus dali é o rio, o pai de tudo. Ou pelo menos será o rio o Olimpo amazônico, porque lá nas águas é que moram todas as entidades fabulosas, a cobra-grande, os botos encantados, as iaras, os caboclos d'água que pastoram as piracemas de peixe.

Mas são divindades familiares, quase todas benéficas, algumas graciosas; as divindades do terror são as da floresta, curupiras e onças que riem, e caiporas, ah, ninguém sabe quantas, sendo que o inimigo pior de todos é a floresta propriamente.

O fato é que o homem amazônico é, a bem dizer, um animal aquático. Nasce por cima d'água na sua casa de palafitas, cria-se sobre a água, come da água, vive literalmente da água, e nem sempre quando morre escapa da água, mesmo que não morra afogado. Tive um exemplo disso num daqueles estreitos em que o grande navio passa tão perto da mata que, no convés, quase se toca na folhagem com as mãos. A certa altura avistou-se um pequeno cemitério, a cavaleiro da barranca. Fora defendido por uma cerca forte e, naturalmente, cada morto ganhara a sua cruz de madeira. Mas isso, antes da enchente. Porque a enchente veio, derrubou a cerca, arrancou as cruzes, e carregou consigo os defuntos plantados mais rasos. Nem morto escapa do rio. Hoje, dizem, o lugar é mal-assombrado.

Ah, o mistério amazônico. A gente anda por lá, dias e dias, pensando que o enfrenta e na verdade mal o roça. Aprende uns nomes, navega sobre as águas largas, vê e conversa com os caboclos de fala doce e face de índio. Da floresta só se enxergam os troncos na barranca e as altas copas, além; e os partidos de palmeiras, as castanheiras de folha escura, aquela espécie de mangue que parece plantado de propósito e não sei como se chama. E os troncos navegando o rio como jangadas vivas.

E na cidade um peixe-boi cativo, uns pequenos jacarés; no mercado o estendal de peixes, alguns maiores que um homem, outros pequenos e lindos como uma mão de prata. E o céu perto e forte, vidrento, duro, que o sol do meio-dia transforma em massa de luz violenta, mas que de repente se dissolve em chuva, que cai aos jorros.

Por toda a parte, água; barrenta no rio-mar, dum sépia transparente no Tapajós, dum preto de vidro esfumado no Rio Negro. E os horizontes. Fora do mar, nunca vi tanto horizonte. Decerto para compensar da floresta, onde horizonte nenhum existe, só a abóbada vegetal sufocando os viventes.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Manuel Du Bocage (Sonetos) IV


Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores!
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira!

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece!

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.
* * * * * * * * * * * * * *

Meu frágil coração, para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura;
E inda a louca esp'rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras!

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano:

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade?
* * * * * * * * * * * * * *

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura?
* * * * * * * * * * * * * *

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas sutis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
* * * * * * * * * * * * * *

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórridos negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’s Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh Nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.
* * * * * * * * * * * * * *

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da obscuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
* * * * * * * * * * * * * *

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores:

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favônio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos e outros poemas.

Carlos Drummond de Andrade (Jacaré de Papo Azul)


— Jacaré de papo azul, por acaso o senhor já viu um na sua vida? Azul, azulinho ele todo, o papo, não o jacaré. Eu vi. Vi e conferi, que ele ficou meu amigo, pode acreditar. E, eu sei, nesta beira de rio, vez por outra costuma aparecer jacaré-de-papo-amarelo, não faz novidade nisso. A gente está acostumada com ele, sabe lidar com o bichinho, e cai de pau no lombo dele antes que ele ferre a gente com uma dentada ou derrube a canoa com uma rabanada forte. Já experimentou serrilha de rabo de jacaré no corpo, terá coisa pior do que isso neste mundo de coisas piores? Olhe aqui o meu peito, eu falo de jacaré porque jacaré entrou na minha vida desde menino, o primeiro que vi levou a perna de meu pai, outro fez no meu corpo este desenho que o senhor está admirando, pois não é tal qual uma mulher nua costurada na pele, a marca que ele deixou? Se não morri foi porque estava decretado que jacaré nenhum tem poder sobre este afilhado das treze almas sabidas e entendidas, que cortam as forças de meus inimigos. Meu pai, a perna dele não foi propriamente comida por jacaré, ele tirou só um naco, mas o resto apodreceu e no hospital da Januária tiveram que serrar na altura da coxa. E ainda falam que jacaré em terra é uma pasmaceira, não sabe correr nem brigar.

Pois sim. O que aleijou meu pai estava dormindo na quentura da praia, muito do seu natural, como se ali fosse a casa dele. Pai cutucou ele assim com a ponta do pé, fazendo cócega na parte da barriga que estava meio exposta, porque o desgraçado dormia meio de banda, entende. Jacaré fez que não viu nem percebeu, continuou no seu paradeiro, pai cutucou mais, achando graça no sono pesado daquele bicho entregue à vontade da gente, sem defesa, porque jacaré fora d’água… e tal e coisa. Depois de muito cutucar, o velho lascou um pontapé no traseiro do bicho, o bicho achou que aquilo era demais, nhoc! cravou a dentadura afiada na coxa dele. Eu estava perto e disparei porque não sou bobo, pai veio atrás, sangrando e xingando o jacaré, que continuou no mesmo lugar, sem dar confiança. Quando a gente voltou para caçar ele, tinha sumido. Bem, se conto essas coisas ao senhor é pra mostrar como a vida é feita de tira e dá: aqui estou eu ganhando a minha caçando jacaré pra vender o couro. A carne, eu aproveito em casa, o senhor já provou uma boa jacarezada, feita com capricho, muita pimenta e uma branquinha de qualidade pra santificar o total? Lhe ofereço uma se o senhor arranchar aqui mais de uma semana, tempo de aparecer jacaré que anda meio desanimado de descer o rio, sei lá onde se meteu. Não quer? Já sei, o senhor embrulha o estômago só de imaginar bife de jacaré, basta pensar no cheiro, aquele pitiú, e mais o gosto da carne dele. Pois muito se engana, é questão de lavar, salgar, temperar direito. Bem, não se fala mais nisso, não vou lhe oferecer um prato que o senhor não dá o devido valor.

Onde é que a gente estava na direção da conversa? Ah, já sei, na minha vida de caçador de jacaré, que parece feita de aventura e que talvez seja pros outros, pra mim é escrita bem decifrada, não tem mistério, e se ficou esse desenho gozado no meu peito foi porque eu ainda não tinha muita experiência de jacaré, facilitei, pronto: gurugutu, mas aprendi pro resto da vida, é baixo que um me pegue outra vez, minhas treze almas me acompanham no serviço, me adestram na caça, sou capaz até de pegar jacaré a laço de vaqueiro, como diz-que se faz lá no Marajó, me contaram. Ou que nem índio, que pula do galho da árvore em cima do jacaré, monta nele; quando jacaré mergulha, índio mergulha também, com a mão esquerda agarrada na barriga do bicho, com a direita aperta bem os olhos dele e com a terceira mão, que ninguém tem mas nessa hora aparece, amarra o focinho dele com embira que levou presa na boca… O senhor duvida? Quer dizer, isso ainda não fiz, faltou ocasião, mas chegando a hora eu faço. Só que não gosto de judiar dos bichos, mato eles porque o cristão tem de viver à custa de tirar a vida do jacaré, mas no dia que eu achar um diamante, digo até nunca pro meu ofício, por enquanto vou comendo carne, vou vendendo couro. Pagam uma porcaria, sabe? No entanto, qualquer coisa feita de couro de jacaré custa uma nota alta, a vida é assim, também brinca de dá e tira. Estou destaramelando faz tempo e ainda não cheguei ao caso do jacaré de papo azul. Pois eu conto, o senhor fique a cômodo neste tamborete e preste atenção no meu relato.
* * *

Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio pra ver se tem jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele. De começo fui pescador de peixe, como todo mundo, mas eu queria outra coisa, queria tirar do rio o mais difícil. Minhocão, diz o senhor? Minhocão sabe pra quem aparece. Meu negócio era com o jacaré, o rio entendeu e me dá o jacaré que eu preciso e não abuso. Tanto que de jeito nenhum eu caço filhote. Brigo com jacaré grande, no poder da valentia dele, e se eu venço, fico agradado de mim; se perco e ele foge, a vez era dele, está certo.

Naquele dia foi diferente. Jacaré botava a cabeça pra fora, eu ia pra cima dele, e nada. Aparecia mais adiante, voltava a afundar, tornava a aparecer, a afundar. Brincando. Isso que eu percebi depois de uma meia hora de perseguição. Estava se divertindo comigo, não fugia, também não se entregava. E era engraçado ver o jacaré tão despachado, tão corredor, na correnteza tão devagar, porque o senhor sabe que este rio aqui não tem pressa de chegar, só mais embaixo ele pega numa disparada que o governo aproveita para fazer uma usina gigante.

Aqui o rio é lerdo, a gente sente melhor o rio, dá pra fazer amizade. Então eu percebi que era isso que o jacaré estava querendo, fazer amizade comigo. O senhor já reparou em boca de jacaré? Parece que ele vive rindo de tudo, até sem motivo. Esse que eu falei ria com o corpo inteiro, às vezes chegava à flor d’água o tempo de eu apreciar ele todo, e rabeava com um jeito moleque, tão gozado que só o senhor vendo. Eu doido de aproveitar e cair em cima dele, mas quem disse? Depois de muito dançar e mergulhar, ele deu um salto e virou de barriga pra cima, a uma distância que não dava pra pegar. Ficou assim, boiando satisfeito da vida, que nem flor. Que nem essa flor, o senhor sabe, grandona e redonda, boiando feito bandeja, lá no fim do Norte, que eu nunca vi de perto, só de figura. Aí eu fui chegando perto, chegando perto, bem de mansinho. Se ele vira de repente e me dá uma rabanada, pensei, adeus canoa e eu sou o finado Marcindírio. Ele não virou, cheguei bem perto e vi. Tinha o papo azul, azul deste céu que o senhor está vendo, azul-claro, limpinho, bom de passar a mão…

Passei. O senhor não credita que passei? Pois o danado gostou, deixando eu fazer esse agrado que a gente faz no pescoço do gato, só que mais forte, o couro é o contrário da macieza do gato. Não tive coragem de fazer mais nada. Ele estava tão feliz de ser tratado assim, tão prosa de mostrar seu papo diferente, lindeza de papo. Aí eu falei assim: “Vou m’embora, jacaré; você é livre de morar no rio, que eu não te causo dano”. Voltei sem ofender aquele bicho-irmão, pois pra mim ele ficou sendo um negócio parecido com irmão, não digo filho porque era tão forte quanto eu, se não mais, e filho da gente, por mais que cresça e apareça, é sempre uma plantinha mimosa, sabe como é. Em casa, minha patroa zombou de mim, achou que eu não estava regulando. Não dormi de noite, pensando no jacaré. Dia seguinte, olha ele outra vez me chamando pra brincar, eu disse:

“Calma, jacaré, não posso passar a vida me distraindo com você, não sou mais menino e você também não é filhote. Todos dois têm que cuidar da vida, que a morte é certa”. Até parece que ele entendeu, ficou com ar meio amuado, afundou. Só apareceu muito tempo depois, de longe, experimentando a mesma sorte de molecagem. Fiquei com pena dele: “Tá bom, eu brinco”. Mas tem propósito um barraqueiro como eu alisando papo de jacaré, só porque ele é azul, me diga, tem propósito? Se a gaiola passasse e os passageiros me vissem, que é que haviam de achar? Eu sei, talvez algum quisesse me convencer que eu devia levar o jacaré pra terra e vender ele pra fazer figura no circo, mas o mais certo era que todo mundo caísse de gozação em cima de mim, podiam mesmo me levar amarrado feito doido pra dormir na cadeia, e depois… Isso tudo passou na minha cabeça enquanto eu acarinhava o jacaré, fiquei com vergonha que pudessem me ver naquela hora, depois fiquei com vergonha de ter sentido vergonha, afinal que que tem o senhor se entender com um bicho com fama de malvado e vai ver não é malvado coisa nenhuma e pede à gente pra gostar dele?

O senhor começou a entender, quer mais um gole de café enquanto eu conto o resto? A fome começou a apertar aqui em casa, por causa de que não vinha mais jacaré na descida das águas, só ficava banzando por lá o de papo azul, que eu não tinha coração de pegar. Até parece que ele afugentava os outros, queria reinar sozinho, virar dono e senhor do rio. Mas tão manso e engraçado que não tinha cara de mandão. Traiçoeiro não podia ser, se bem que a Luisona me prevenisse:

“Toma tento com esse bicho que vai te enfeitiçando, alguma ele te prepara, não vejo nada de bom nessa claridade do rio que deu pra acontecer ultimamente”.

Luisona é a minha patroa, ela tem esse nome porque é uma tora de mulher. Acontece que o rio vinha mesmo se lavando de sua cor de barro carregado, e quando o sol batia na neblina do amanhecer e a gente via a água, era uma água quase azulada, não que chegasse a azul, parava no quase, coisa que eu nunca tinha visto antes e era maravilha. “Mau sinal!”, repetia a Luisona, e as boquinhas dos meninos pedindo comida não davam gosto da gente olhar. Diabo de jacaré, pensei, se eu aproveitar uma ocasião da folia dele e chegar de mansinho e dar nele uma machadada bem certeira, será que morre na horinha e eu não sinto remorso porque não teve tempo de sofrer? Mas se eu errar no golpe? Se o golpe não acertar direto no coração dele, e eu tenho de dar outros golpes e ele me reconhece e crava em mim aqueles olhos redondos e espantados de amigo traído, de irmão assaltado pelo irmão? Não, eu não tinha coragem. E tinha precisão de ter coragem. O rio cada vez azulava mais, ou eu é que enxergava nele a miragem do papo do jacaré tornando tudo em redor uma pintura de quadro de Nossa Senhora? Botei o machado na canoa, rezei treze vezes a oração das minhas treze almas sabidas e entendidas e fui vigiar o rio.

O jacaré apareceu longe, veio chegando aos poucos, não tinha pressa. Boiava e sumia, tornava a boiar e sumir, era a festa de sempre. Cada vez mais perto da minha intenção, do meu machado. Quando chegou bem rente, estendi o braço devagar pra lhe fazer o carinho do costume. Deu uma virada brusca e afundou. Tinha percebido? Apareceu mais adiante. Cheguei lá, repeti o movimento. Ele também. Mas não tinha ar de brincadeira nova, inventada por ele. Era desconfiança, era defesa, era também (devia ser) resolução de evitar que eu acabasse me tornando um assassino igual aos outros, pior que os outros. Pois aquele animal de Deus gostava de mim e eu dele. Eu percebia isso, mas cada vez ia ficando mais enquizilado com aquele jogo em que o jacaré era mais forte porque era melhor do que eu. Não queria propriamente escapar de morrer, queria impedir que eu matasse. Mas eu queria matar. Eu precisava matar. Pra sustentar meu povo e agora também por outro fundamento, provar ao bicho das águas que lição eu não recebia dele, minha lei é fruto de minha cabeça, eu sei o que é necessidade e justiça. A raiva contra o jacaré ia crescendo, agora eu queria é ver o sangue dele tingindo o rio, desmaiando aquela azularia que encantava a cara suja e sincera das águas. Não resisti, pulei da canoa com o machado na mão direita e fui perseguindo o desgraçado, que fugia sempre como quem brinca de esconder e não dá confiança a quem quer pegar. No que ele nadava e eu também, fui sentindo uma tristeza de minha vida depender de matar, e a raiva ficava menor, eu tinha é pena de mim, tão precisado de fazer mal aos outros viventes, pena dos jacarés de papo de qualquer cor, pena de tudo, e o jacaré deu um mergulho, soverti com ele, a perseguição continuava, mas era tão triste, me via tão humilhado diante do poder daquele bruto de tamanha simpatia e delicadeza, eu menor do que ele, muito pior do que ele. O machado caiu da mão, me embolei com o jacaré, resolvido a acabar com aquilo de qualquer jeito, me expondo, desafiando ele a me cortar em postas, mas o riso dele me doía mais do que se fossem os dentes retalhando minha carne, que luta! seu compadre. Eu embrabecido, disposto a tudo, ele maneiro, dentro das regras, escorregando feito sabonete, mostrando que não queria, não precisava morder, queria é me cansar… cansei. Tudo ficou completamente azul dentro d’água, o próprio jacaré ficou todo azul-celeste, eu perdia as forças, me sentia azular por dentro, uma bambeira de sono diferente me encheu por inteiro. Então o jacaré, esticado, veio por baixo, me pegou pelas costas e foi me empurrando pra riba, me livrando do afogamento, me deixou estendido e mole à flor d’água, de barriga pro ar, uma coisa frouxa, tábua. E sumiu. Sumiu de sumiço eterno até a presente data. Não sei quanto tempo fiquei assim naquele paradeiro. Sei que a Luisona veio nadando feito gigante e foi me puxando no rumo da praia, dizendo: “Esperta homem!”.

Espertei. Dia claro, o rio outra vez barrento, reuni as forças, fui cair na rede aqui em casa. Dormi dois dias e duas noites. Quando acordei, fui cuidar da vida, arranjar outro machado, outra canoa, pois pra isso me botaram no mundo: pra caçar jacaré.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 169


A. A. de Assis (O Avião, o Jipe e a Mulher)


Eram meados dos anos 1960. Numa conversa com o agrônomo Aníbal Bianchini da Rocha, ele me disse algo de que nunca mais me esqueci: que três contribuições foram fundamentais na colonização do norte e noroeste do Paraná – a do avião, a do jipe e a da mulher.

No começo, aqui não havia estradas. O avião, cavalo voante do desbravador moderno, pousava em qualquer clareira da mata, despejando gente arrojada em cima da terra que ansiava por parir fartura. Contavam-se proezas incríveis daqueles ginetes do ar, que perturbavam o sono das onças com o ronco festeiro dos seus teco-tecos.

Abertos os primeiros caminhos, o jipe acompanhou o avião no mergulho do homem floresta a dentro. Trotando nos picadões, rosnava qual fera de aço, pulando buracos, amassando espinhos, esmagando cobras, empurrando tocos, desafiando o que surgisse à frente.

Os caminhos viraram arremedos de estradas. E o jipe ainda nelas seguia atravessando túneis de poeira vermelha em épocas de sol, engatando reduzida e calçando correntes em dias de chuva, subindo e descendo aqueles morros escorreguentos que nem quiabo. O avião no céu, o jipe no chão, transportando o agito para o sertão selvagem. O homem invadindo a mata, guloso de plantar para enricar ligeiro.

Mas o homem não teria vencido como venceu, mesmo com os seus aviões malucos e os seus jipes desassombrados, se a seu lado não estivesse a mulher. Só Deus sabe o que enfrentaram aqui aquelas heroicas senhoras, naqueles tempos de total desassistência e desconforto.

Sair de sei lá onde, com as crianças e as panelas nas costas, para viver num lugar sem nenhum recurso, convenhamos que foi coragem das grandes. Os maridos plantando roças e elas em casa criando filhos, cozinhando inhame, lavando roupas que o pó e o barro transformavam numa espécie de encerado. E mais: rezando pra Deus ajudar, que só Deus podia ajudar na completa desproteção daquele fim de mundo.

Olhem que se eu fosse prefeito mandaria erguer um monumento para elas. Outro para o teco-teco. Outro para o jipe. Mandaria mesmo.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Horácio Portella (Versos Diversos)


A CIGARRA E O POETA

(Homenagem ao saudoso mestre e padrinho Olegário Mariano)

Quando a cigarra canta o espírito delira;
e desse canto alegre as notas musicais
criam na mente a forma excelsa de uma lira
em que o poeta canta os sonhos eternais.

O Vate empunha a lira e canta os ideais
que vêm do coração e os leva à etérea pira
eternizando ali, em versos magistrais,
o sonho bom pra ver se a mágoa se retira.

O singular refúgio, onde o poeta canta,
é o paço sideral, perene, é o universo..,
E o canto, mansamente, explode na garganta,

Seu canto é oração - simbólico rosário...
E cada conta dele é delicado verso,
onde reza a cigarra amiga de Olegário.
* * * * * * * * * * * * * *

 A MARCHA DO TEMPO

Sem pressa as horas passam uma a uma,
escorrem para o túnel do passado,
- não se consegue segurar nenhuma -
pois cada qual já deu o seu recado.

Para a memória humana resta a bruma
que pode dar prazer ou desagrado.
Querendo nós ou não assim se esfuma
a vibração do tempo - este é seu fado.

Essa rotina segue sem descanso,
no transcorrer sutil da eternidade,
num caminhar tranquilamente manso.

Assim também os versos do soneto
vão no papel deixando a novidade
envelhecer no último terceto.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE DO SOL

Rondando o velho Sol pela amplidão do céu,
já moribundo cai, cansado, no horizonte,
enquanto a Noite vem trazendo o negro véu
que à Terra toda envolve, à espera que desponte

a Lua a comandar o imenso povaréu
de Estrelas, para o adeus ao Astro-Rei, insonte,
em silente cortejo até seu mausoléu,
localizado além dos píncaros do monte.

São lágrimas da Noite o orvalho, o desencanto,
enquanto a Lua espelha a sideral tristeza
na intensa palidez de seu argênteo manto.

Mas Deus, que é Luz e Amor e tudo fez do nada,
com Sua Mão gentil tocando a Natureza,
o Sol ressuscitou nos braços da Alvorada.
* * * * * * * * * * * * * *

LUZ DO ALÉM

Inspiração nascida à luz de vela,
que mansamente jorra no papel,
é delicada, meiga, assaz singela,
porém precisa praticar rapel.

Quando a energia foge da procela
galopa o Vate em seu sutil corcel
buscando a gema preciosa e bela,
a gema rara do divino anel.

Cada mensagem que de Deus provém
virá trazer aos corações humanos
a luz que brilha muito além do Além.

Assim, portanto, nasce cada verso,
sagrado, santo, aos olhos dos profanos
provindo do Arquiteto do Universo.
* * * * * * * * * * * * * *

TROVAS

Em métrica setimal
e quatro versos somente
a trova é gentil fanal
que ilumina nossa mente,

Eu creio que não mereço
o valor pago na cruz.
Caro demais foi o preço:
Vida, Sangue, Amor e Luz.

O Saci perdeu a graça
e agora só faz careta
quando diante de nós passa
mas não quer usar muleta.

Quem mantém um passarinho
na gaiola em cativeiro
diz por ele ter carinho
mas é cruel carcereiro.

Trovando com luz de vela,
com certeza, o que acontece:
a trova fica mais bela
pois ganha uns ares de prece.

Fonte:
Lilia Souza (org.). Coletânea: Academia Paranaense de Poesia. Curitiba: APP, 2012.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Lippo e Tapio)

Lippo, caçador exímio, foi um dia, com dois amigos, à caça à rena. Percorreram o bosque de manhã à noite e, quando escureceu, procuraram abrigo contra as trevas e o frio numa cabana de troncos. Pernoitaram aí e, ao amanhecer, os três homens voltaram a pôr os esquis. Antes de abandonarem a cabana, Lippo tocou um esqui com o outro e disse:

— Que o dia de hoje me proporcione uma boa presa: uma parte para um esqui, outra para o outro e uma terceira para o meu bastão.

Mal tinham começado a andar, quando se lhes depararam as pegadas de três renas. Seguiram-nas e não tardaram a avistá-las: duas juntas e a terceira um pouco afastada. Lippo disse então aos amigos:

— Podem perseguir as duas. Serão as vossas presas. Eu fico com a que está só.

Proferidas estas palavras, deslizou na neve durante todo o dia, até que a noite o surpreendeu, mas não pôde alcançar a rena, apesar de ser um esquiador muito rápido.

Chegou então a uma fazenda e a rena refugiou-se no estábulo, sempre com Lippo no seu encalço. No pátio, encontrava-se o proprietário, um venerável ancião de cabelo e barba brancos.

— Que é lá isso! — exclamou. — Quem é o filho de um sapo que persegue a minha reprodutora fazendo-a suar?

Lippo aproximou-se, saudou-o respeitosamente e replicou:

— Sou eu, mas como não a consegui capturar, vim parar a esta fazenda.

O ancião, que era o próprio Tapio, dono do bosque em volta, declarou:

— Bem, se perseguiste a minha reprodutora até ao por-do-sol, podes passar a noite nos meus aposentos.

Lippo entrou na casa e ficou maravilhado quando olhou em redor: havia renas, veados, ursos, raposas, lobos e todos os animais selvagens possíveis de imaginar. A seguir, Tapio convidou-o para jantar e serviu-o excelentemente.

Na manhã seguinte, Lippo quis prosseguir viagem, mas não conseguiu encontrar os esquis. Quando perguntou por eles ao dono da casa, este redarguiu:

— Não queres ficar em minha casa e ser meu genro? Tenho uma filha única.

Mas Lippo respondeu:

— Ficaria com o maior prazer, mas sou um homem pobre.

— Isso é comigo! A pobreza não é nenhum defeito. Na nossa casa, terás tudo o que desejares.

E assim, o ancião entregou a filha ao visitante, e o ágil esquiador e caçador ficou como genro na cabana do bosque de Tapio.

Quando haviam passado três anos desde a sua chegada, a filha de Tapio deu-lhe um filho. Lippo quis então visitar a pátria, pelo que pediu ao sogro que o conduzisse lá. No entanto, este último disse:

— Se fizeres uns esquis do meu agrado, autorizar-te-ei a partir.

Lippo dirigiu-se prontamente ao bosque e começou a trabalhar nos esquis. Um pássaro que estava empoleirado no ramo de uma árvore cantarolou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Lippo atirou-lhe uma lasca de madeira, ao mesmo tempo que observava:

— Que estás aí a cantar, animalzinho pateta?

Terminados os esquis, adornou-os o melhor que sabia e foi mostrá-los a Tapio. Este experimentou-os e apressou-se a afirmar:

— Estes esquis não são para mim.

No dia seguinte, Lippo teve de se dirigir de novo ao bosque para recomeçar a trabalhar. O pássaro, que se achava igualmente presente, cantou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


— Estás outra vez com as tuas fantasias? — exclamou ele, furioso, atirando-lhe um pedaço de madeira.

Não fazia a menor intenção de seguir o conselho do pássaro, pelo que cortou os esquis segundo o método usual e foi mostrá-los a Tapio.

— Estes esquis não são para mim — voltou o sogro a dizer.

Quando Lippo, no terceiro dia, chegou mais uma vez ao bosque, deparou-se novamente o pássaro, com a sua cantilena:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Ele refletiu então: "Está bem, procederei como dizes. Não terás cantado em vão." Pegou num ramo bem nodoso, fixou-o à ranhura estreita da parte inferior do esqui e atou a correia à extremidade da frente, após o que foi mostrar o resultado a Lippo.

— Estes, sim, são meus! — exclamou o sogro, quando os experimentou. — Agora, podes ir à tua pátria.

E acompanhou-o, dizendo:

— Irei à frente e vocês seguirão as minhas pegadas. Onde encontrarem a marca da ponta do meu bastão, deverão pernoitar. Mas constrói a tua cabana com ramos de abeto e paredes espessas, para que não entre a luz das estrelas.

Com estas palavras, Tapio empreendeu o caminho. As ramagens que tinha na parte inferior dos esquis iam produzindo marcas bem nítidas, pelo que Lippo o podia seguir, com a mulher e o filho. Quando começava a anoitecer, viram o sinal do bastão e, junto dele, um veado assado para o jantar. Construíram uma cabana de paredes espessas com folhagem de abeto, cobriram-na com um teto muito firme e colocaram dentro o pequeno trenó com a criança, após o que se deitaram para descansar.

Na manhã seguinte, prosseguiram viagem, levando um pedaço do veado assado para o caminho.

Ao anoitecer, voltaram a encontrar a marca do bastão e uma rena assada ao lado. Tornaram a construir uma cabana de paredes muito espessas com folhagem de abeto e colocaram dentro o trenó com a criança. Depois de repousarem toda a noite, reataram a marcha, até que, ao anoitecer, encontraram a terceira marca do bastão. Desta vez, havia um galo-selvagem assado para o jantar.

— A pátria não pode estar muito longe, se só nos oferecem um galo-selvagem — exclamou Lippo.

Construíram uma cabana assaz diáfana, colocaram dentro o trenó com a criança e depois deitaram-se. Durante a noite, as nuvens dissiparam-se e a luz das estrelas incidiu neles através do teto pouco espesso.

Quando acordou de manhã, Lippo não conseguiu encontrar a esposa em parte alguma. Saiu da cabana e esquadrinhou as cercanias, mas não havia o menor vestígio dos esquis de Tapio, e ficou sem saber que rumo deveria tomar, dada a ausência de qualquer rasto. Sentou-se à porta da cabana com o filho, imerso em cogitações. De súbito, passou perto um veado aos berros. À parte isto, não viu nada ao longo de todo o dia e, quando anoiteceu, reconheceu que não lhe restava qualquer alternativa senão pernoitar ali. No dia seguinte, tornou a haver um galo-selvagem diante da porta e o veado voltou a passar aos berros.

Lippo permaneceu muitos anos com o filho na cabana de ramagens de abeto. Todas as manhãs havia um galo-selvagem assado diante da entrada, e o veado aos berros também nunca faltava. A criança cresceu e converteu-se num mancebo inteligente e sensato. Pediu ao pai que confeccionasse um tubo longo para poderem ver se a pátria estava longe. Nos momentos de ócio, Lippo assim fez e, quando terminou, ofereceu-o ao filho. Este utilizou-o imediatamente e exclamou:

— A pátria não é nada longe! Estamos muito perto da nossa terra!

E, com efeito, quando empreenderam viagem, não tardaram a chegar. O jovem veio a tornar-se o patriarca dos lapões. E, com isto, o conto chegou ao fim.

Fonte:
Contos Tradicionais da Finlândia

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 168


Vinicius de Moraes (A letra A: Palavra por Palavra) Abajur


Abajur: Foi, talvez a primeira palavra francesa de que tive conhecimento, e ela me traz recordações tão lindas da Ilha do Governador que, ainda agora, a escrever estas memórias, tenho os olhos rasos d'água.

Nossa casa, com duas janelas de frente, ficava à beira-mar, em Cocotá, a meio quilômetro da grande amendoeira onde o bondinho da ilha rangia na curva, em demanda de Freguesia. Eu tinha por aí uns nove anos, e era a coisa mais pulante, grimpante e nadante que já existiu. Nunca menino algum aceitou menos as vias normais de acesso. Sempre em carreira, desviava compulsivamente minha velocidade para as sebes, que varava, os muros, que escalava, e os fossos, que transpunha. Vivia aos saltos, de baixo para cima, de cima para baixo. Bastava ver um acidente qualquer de terreno, uma cerca, uma catraia a seco, um valado, e eu, dando tudo, precipitava-me a mil e - zumpt! - saltava-os feito um doido dançarino. Era como um Nijinski infante a dar entrechats cada vez mais altos e elásticos, numa ânsia de alcançar não sei o quê, quem sabe o infinito, quem sabe Deus...

E caía exato

Como cai um gato.

…para recomeçar uma correria nova, fosse para a casa de Mário e Quincas, meus amiguinhos pobres, fosse para o pontão das barcas da Cantareira, de onde Augusto mergulhava.

Augusto era o meu deus. Irmão mais velho de Mário, Quincas e Marina, minha namoradinha secreta, Augusto representava para mim o herói total configurado no mergulhador. Eu admirava, da ponte de Cocotá, a agilidade com que ele, numa escalada de macaco, subia as estacas mais altas, de onde dava os saltos de anjo mais lindos, penetrando o mar como uma faca em ponta, sem qualquer espadana, e com um marulho apenas perceptível. E eu ficava sempre numa aflição, de não vê-lo nunca mais voltar à tona. Augusto demorava dois minutos folgados a vasculhar o fundo, do qual trazia sempre qualquer coisa de belo ou de útil: caranguejo, ferro-velho, estrela-do-mar, ou o que fosse, que me atirava de baixo, em saltos que lhe faziam soerguer meio corpo da superfície, como um golfinho brincalhão. Nós andávamos os quatro sempre de súcia, e a mim me espantava a naturalidade em que seus irmãos o tinham, sem nenhuma mostra de admiração. Foi ele que me ensinou a mergulhar e mover-me no fundo do mar, rente ao lodo; e mais tarde a pescar a dinamite: uma barbaridade que, na época, eu achava o máximo. Augusto colocava-se à proa do barco, nós nos agachávamos na popa como podíamos, ele acendia o pavio, esperava um momento, soprando-o forte, e, de repente, no segundo antes, lançava a banana de dinamite ao mar. A explosão, gorda e cava, levantava, ato contínuo, um cogumelo espumarento, e logo os peixes mortos começavam a subir. Mas os que nos interessavam eram os que ficavam atordoados, atrás dos quais mergulhávamos rápido. Levávamos, para essas ocasiões, pequenos sacos, e, uma vez cheios, metíamos o peixe dentro da camisa da roupa de banho - como se usava na época - e voltávamos semi-asfixiados à tona. Nunca mais pude esquecer o contato frio e viscoso dos peixes contra a minha pele.
                                                *

À tarde, na sala de visitas, como então se dizia, onde tudo o que havia de luxo era o belo jarrão chinês, trazido por meu bisavô de uma de suas andanças, minha mãe sentava-se ao piano e ficava tocando horas perdidas.

Nós ficávamos, minha irmã mais velha e eu, sentados no chão, geralmente a armar colagens ou a folhear o Tico-Tico, o Eu sei tudo e o Tesouro da juventude, nossa primeira leitura infantil. Os sons vinham, encantatórios, mergulhar ainda mais nossas vidas naquele clima doméstico, como se nós fôssemos a única família do mundo. E a verdade é que éramos a única família do mundo, unidos pelos mesmos horários e pelos mesmos desígnios de poupança, pois meu pai, por uns maus negócios que fizera, andava mal de vida.

Minha mãe, ainda tão moça, aflorava as teclas, o olhar perdido longe. Ela tinha sido aluna de francês de meu pai, na velha chácara da Gávea, e se casara aos 15 anos com esse homem bem mais velho, que se apaixonara perdidamente por ela, e que, bom poeta, vivia a lhe fazer sonetos, odes, rimancetes, baladas, elegias - tudo enfim que constitui e consolida a arte de fazer versos.

Eu a achava linda, toda rechonchuda, os longos cabelos soltos e os olhos de um azul tão vivo que, às vezes, parecia perturbar-lhe a visão, como se ela estivesse enxergando mais do que devia. Posso ouvir ainda os primeiros tangos que ela tocava, dos quais "La cumparsita" era o mais vibrante e "Caminito" o mais terno...

E de repente foi o fox-trot. Que alucinação! Meu pai chegava com novas partituras, que minha mãe tirava laboriosamente ao piano:

Hindustão
Paraíso das mulheres divinais
Ó Hindustão
Quem te ama não te esquece nunca mais...

Eram os primeiros doces tentáculos do polvo tateando à toa num mundo despreocupado e sem malícia. Nós não sabíamos de nada ainda. Sabíamos que éramos uma família que morava numa ilha pertencente à capital de um país que não sabíamos tampouco subdesenvolvido. Sabíamos vagamente que houvera uma guerra mundial e um terremoto no Japão. E súbito, aquele ritmo diferente e cheio de langor, a insinuar conivências pecaminosas na penumbra...

Abajur
Com tua branda luz de cor bleu
Tu, só tu
Tu me inspiras não sei por quê...

Minha irmã e eu dançávamos, dois passos para lá, e dois para cá, como mandava o figurino. E os sons me envolviam dessa tristeza que nunca mais me abandonou, que tem a ver com alguma coisa sempre buscada e nunca totalmente possuída: não sei se o amor, não sei se a vida, não sei se a paz. Saudade, certo, que me fez poeta e compositor, e que, apesar de todas as flores e amores que a vida me deu, só me fez crescer em melancolia e solidão.

Fonte:
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969

Silmar Böhrer ( Divagações Poéticas) 5


Ninguém duvida,
o livro dá vida
à nossa vida.
* * * * * * * * * * * * * *

a vida é uma comédia
infestada de tragédias
* * * * * * * * * * * * * *

às vezes penso
no que sou
e vejo
que nem isso sou
* * * * * * * * * * * * * *

a felicidade existe
em doses homeopáticas
em gotículas
em borrifos
* * * * * * * * * * * * * *

ideias fechadas não produzem
vegetam
* * * * * * * * * * * * * *

Porque a vida,
tão grande,
é tão pequena
que se vai
num piscar de olhos.
* * * * * * * * * * * * * *

Labirintos da memória,
antigos paióis,
silos
de armazenagem
de conhecimentos.
* * * * * * * * * * * * * *

Entre uma rodada e outra
de redes que vão ao mar,
cá estou eu a divagar,
há vida melhor, mais douta ?
* * * * * * * * * * * * * *

Apregoo,
expertos na vida
sejamos.
Eu, aprendiz,
esperto.
* * * * * * * * * * * * * *

Vivo no tempo
a destempo
sem contratempo
* * * * * * * * * * * * * *

tudo na vida
tem seu preço
tem seu peso

Fonte:
O Autor.

Nilto Maciel (Jornal de Domingo)


Escondido atrás do jornal, o professor Luiz Vaz passava o domingo. E garimpava pedras preciosas, por puro deleite. Ou para exi­bi-las a seus alunos.

Fora-se o tempo de Virgílio, Camões, Bilac. Agora, só queria os novos poetas. Nada de vertitur interea coelum*.

Olhos enfiados no chão da folha, Vaz sonhava. Nunca o chamariam velho. Antes, o eterno jovem. O mestre da língua viva. Polêmico, moderno, brasileiríssimo.

Súbita emoção. Arregalou os olhos. Um poema de Noto de Sissa! Leu o título. Uma beleza! O primeiro verso. Um primor!

Com sofreguidão, percorreu todo o poema. Voltou ao título, ao primeiro verso. Releu tudo, cheio de entusiasmo.

***
Na sala de aula, Luiz Vaz freou sua emoção. E amarrou a rubra língua no céu da boca. Queria um comentário escrito de cada aluno ao poema que copiava no quadro-negro.

***

Riu na cara dos alunos. Não aprendiam nada. Pareciam idiotas. Especialmente a "crítica" feita por Oton.

– Uma barbaridade!

E se pôs a falar os versos de Noto de Sissa. Pequena obra-prima da poesia épica.

A maioria dos jovens abriu a boca e queda ficou. Um, porém, não concordou com a análise do mestre. E defendeu, com língua e dentes, sua opinião.

Irritado com a presunção de Oton, o professor tratou de humilhá-lo. Não passava de um aluno, um fedelho. Longe ainda se achava de atingir os primeiros degraus do saber. Enquanto ele, Luiz Vaz, já alcançara o ápice da cultura literária. Ora, exercia a crítica e a cátedra há trinta anos. Escrevia para revistas estrangeiras. Correspondia-se com pessoas do tamanho de Barthes, Foucault, Jakobson, em francês e russo.

Oton de Assis nada mais falou. Na verdade, não podia se ombrear àquele homem.

E deixou-se anônimo entre os colegas. Seu lirismo, porém, ainda germinaria páginas tão belas como as publicadas no jornal daquele domingo.
___________________
Nota do Autor:
*Entretanto o céu gira. Virgílio, Eneida, Livro II; 250.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor

domingo, 19 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 167


Isabel Furini (Meandros do Amor)

Fonte: Facebook

Humberto de Campos (Barba de Bode)


Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.

Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.

O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:

- O compadre já usou chá de barba de bode?

- Barba de bode? - indagou o outro, espantado.

- Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por dia.

E acentuou, sincero:

- É um santo remédio, compadre!

Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.

- Que quantidade, coronéo? - indagou o sertanejo.

- Uns dez quilos.

Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às arvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!

Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:

- Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?

- Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.

- E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?

Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:

- Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de cabra!

Lilia Souza (Poemas Avulsos)


CACOS DE VIDRO

Quando caminhas,
tua indiferença
de teus passos escorre,
como cacos de vidro
que se espalham no asfalto
por onde te seguem
meus passos cansados.
* * * * * * * * * * * * * *

DE REPENTE

No vão da noite
a luz se acende
estrela cadente
de repente
cai
cai e mente
que se esvai
a dor da saudade
e quem mais se espera
vai chegar, afinal,
de repente.
* * * * * * * * * * * * * *

FEITO FACA

No meio da noite do quarto
um raio de quarto de lua
força a vidraça
rompe a renda da cortina
feito faca
fere o silêncio
perfura o escuro.
* * * * * * * * * * * * * *

GRÃOS

Cômoda
no canto do sótão.

Gaveta aberta,
fotos, fitas.

Caixa de Pandora...
* * * * * * * * * * * * * *

MARCELA

Depois que ela descia à praia,
é que começava o dia,
e ao seu caminhar
cada flor pra ela se abria.

Matava sua sede
com algas e águas salgadas
e trocava de rendas
com as rendas brancas do mar.

O corpo, por todo o tempo,
cheirando a manjericão;
fazia amor com o Vento
em inusitada dimensão.

Dentro da concha fechada,
era uma Ostra desperta.
Ela, na ilha encerrada,
e toda a ilha era ela;
enquanto a noite gritava
pra sempre, ao Vento: Marcela!!
* * * * * * * * * * * * * *

PLASMA

Na veia cava a larva
e planta e lavra
o plasma das inquietações
e tinge de sangue
o sangue que corre
na veia e cava
um oceano onde desaguar
- sem jamais encontrar.
* * * * * * * * * * * * * *

SILÊNCIOS

Teus silêncios de água
calaram vozes tranquilas
de tempos, de almas.

Teus líquidos versos
despertaram silêncios
de saudades antigas.

Teus versos silentes
acordaram os ventos
de doridas cantigas.
* * * * * * * * * * * * * *

TANTAS ÁGUAS
Pudesse voltar no tempo
voltava por mesmas águas
até dissolver as mágoas
cravadas nas pedras do leito.

Voltava até os confins
das águas de outros tempos
banhando primevos leitos
de rios dentro de mim.

Voltava e matava a saudade
que corre transborda se espraia
no leito de muitas águas
do peito - longínqua cidade.

Fonte:
Lilia Souza (org.) Coletânea: Academia Paranaense da Poesia. Curitiba/PR: APP, 2012.

Manuel Antonio de Almeida (O Riso)


O homem é o único animal que se ri. - A observação não é nova,  nem lhe quero as honras do achado. Se estivesse hoje em veia de  filosofar havia entrar na indagação das causas desta singular exceção. Mas contento-me por ora, sem discutir, com a explicação de  um pessimista que me disse: o homem é o único animal que se ri,  porque é o único animal que é tolo.

O riso tem três variedades principais que eu chamarei de forma:  É sorriso, é riso, é gargalhada.  Entre o sorriso e o riso há a mesma diferença que entre o botão e a flor.

No sorriso há toda a incerteza, todo o encanto e toda a fugacidade da esperança.  O sorriso é uma palavra que os lábios dizem sem voz.  O sorriso é belo em todos os rostos; em alguns é um raio de luz  que os ilumina com o toque da suprema beleza.

É tímido como a modéstia, passageiro como tudo que é belo  na vida.

Se eu tivesse, como muitos de meus colegas de pena, o hábito  de namorar pela imprensa, tinha agora aqui a lira afinada para cantar um idílio sobre certos sorrisos que às vezes vejo enfeitar um rosto moreno, tão puros, tão suaves, tão cândidos, que morro de inveja ao lembrar-me que não é só para mim que eles desabrocham. Mas  não culpo por isso aos lábios em que eles se aninham, não; eles me  estão dizendo: - somos como o céu: na primavera não sabemos  senão sorrir. E eu creio que eles têm razão.

Voltemos porém ao assunto.  O riso já não tem todas estas qualidades, ou, pelo menos, não  as tem sempre. Há, por exemplo, rostos bonitos a que o riso dá ainda maior  encanto; há mesmo rostos feios que o riso, por assim dizer, enfeita.  Mas também há por outro lado caras que o riso transforma em caretas. Muita gente conheço eu que não pode fazer maior desfeita a  quem a encara, do que rir-se.

O sorriso pode ser às vezes, e quando muito, um ligeiro disfarce;  o riso em muitos casos serve de verdadeira máscara!

O sorriso compõe; o riso transtorna.  O sorriso não é todo do mundo externo; metade do que ele é  fica conosco, nossa alma guarda essa segunda parte de que os outros não tomam posse.

O riso não, esse, desde que o soltamos, escapa-se inteiro, e nada  fica em nós mesmos do que ele foi. O prazer acaba ordinariamente quando acaba o riso; ao contrário quando nós sorrimos é que o prazer começa.

O riso parece muito expansivo e não é; basta dizer que tem  quase uma só forma para todos os sentimentos; vemos um riso e  podemos ficar na dúvida se foi de assentimento ou de escárnio.

O sorriso, não; quando é só dos lábios, quando a alma não participa dele, mostra-o logo no que lhe falta de cândido e sincero.

É fácil fingir o riso; o verdadeiro sorriso não tem imitação.  Com o sorriso podemos exprimir o prazer e a dor; há sorrisos  pálidos, tristes, são quase o pranto; mas ninguém confundirá estas  duas sortes de sorrisos.

No ruído do mundo, no tumulto das sociedades, os homens e  as mulheres riem-se quando se encontram. No silêncio, no retiro,  quando dois entes que se amam estão sós com o seu amor, sorriem-se apenas um para outro.

Apesar de tudo o que fica dito, ainda o sorriso e o riso têm entre  si pontos de semelhança, que ninguém poderá negar.

Se compararmos porém estas duas variedades com a terceira  que a princípio notamos, isto é, com a gargalhada, bem se poderá  ver o que de diverso há às vezes entre coisas que se dizem da mesma origem.

A gargalhada está tão longe do riso e do sorriso, como a algazarra do canto.

Sem dúvida foi pensando na gargalhada que se fez o provérbio  risus abundat in ore stultorum. A gargalhada é uma desnaturação do riso. O riso deleita; a gargalhada aturde. Não é uma expansão, é um desconcerto. Na gargalhada a boca escancara-se, as faces engratam-se e enrugam-se; os  rostos mais formosos tornam-se caricatos; não assenta bem em  ninguém. O ridículo daquilo que nos arranca uma gargalhada,  reverte um pouco sobre nós mesmos. É por isso que muitas vezes  está um homem rindo-se às gargalhadas de qualquer coisa que só  ele viu, chegam outros, e, sem saber por quê, começam a rir-se  do mesmo modo.  E entretanto, meu Deus! parece que há homens fatalizados a  este respeito: as gargalhadas são os pontos e vírgulas das suas orações; dão gargalhadas pelo que eles mesmos dizem, pelo que ouvem dizer aos outros, pelo que veem nos outros e por aquilo que  os outros veem neles. Que entes lamentáveis! Que caricaturas de  carne e osso!

Querem realizar o prodígio do que se chama - gargalhada homérica - mas, não podendo consegui-lo pelo que toca ao volume, buscam suprir esta falta pela continuidade, e então fazem de toda  a sua vida uma gargalhada constante.  As mulheres conhecem mais do que os homens o ridículo de semelhante hábito; por excesso porém algumas tornam-se carrancudas e então pecam pelo extremo oposto.

Tudo nesta vida é assim: o segredo do justo meio é a sabedoria  eterna. No amor por exemplo não há nada pior do que o excesso.  E isso é muito natural; os excessos são raros; e um amor excessivo  dificilmente achará correspondência... Mas a que veio aqui falar-se  de amor? Talvez pensem que isto tem alguma aplicação; não tem: eu estava dizendo que a gargalhada era uma coisa tola; o amor veio  a propósito de coisas tolas.

E, para que não venham outras coisas do mesmo gênero interromper o curso destas muito sérias observações, façamos aqui ponto, alegando, em falta de outra razão, uma que anda agora muito  em moda, e que entretanto talvez bem poucas vezes seja tão verdadeira como nesta: a hora está muito adiantada.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.