domingo, 19 de janeiro de 2020

Manuel Antonio de Almeida (O Riso)


O homem é o único animal que se ri. - A observação não é nova,  nem lhe quero as honras do achado. Se estivesse hoje em veia de  filosofar havia entrar na indagação das causas desta singular exceção. Mas contento-me por ora, sem discutir, com a explicação de  um pessimista que me disse: o homem é o único animal que se ri,  porque é o único animal que é tolo.

O riso tem três variedades principais que eu chamarei de forma:  É sorriso, é riso, é gargalhada.  Entre o sorriso e o riso há a mesma diferença que entre o botão e a flor.

No sorriso há toda a incerteza, todo o encanto e toda a fugacidade da esperança.  O sorriso é uma palavra que os lábios dizem sem voz.  O sorriso é belo em todos os rostos; em alguns é um raio de luz  que os ilumina com o toque da suprema beleza.

É tímido como a modéstia, passageiro como tudo que é belo  na vida.

Se eu tivesse, como muitos de meus colegas de pena, o hábito  de namorar pela imprensa, tinha agora aqui a lira afinada para cantar um idílio sobre certos sorrisos que às vezes vejo enfeitar um rosto moreno, tão puros, tão suaves, tão cândidos, que morro de inveja ao lembrar-me que não é só para mim que eles desabrocham. Mas  não culpo por isso aos lábios em que eles se aninham, não; eles me  estão dizendo: - somos como o céu: na primavera não sabemos  senão sorrir. E eu creio que eles têm razão.

Voltemos porém ao assunto.  O riso já não tem todas estas qualidades, ou, pelo menos, não  as tem sempre. Há, por exemplo, rostos bonitos a que o riso dá ainda maior  encanto; há mesmo rostos feios que o riso, por assim dizer, enfeita.  Mas também há por outro lado caras que o riso transforma em caretas. Muita gente conheço eu que não pode fazer maior desfeita a  quem a encara, do que rir-se.

O sorriso pode ser às vezes, e quando muito, um ligeiro disfarce;  o riso em muitos casos serve de verdadeira máscara!

O sorriso compõe; o riso transtorna.  O sorriso não é todo do mundo externo; metade do que ele é  fica conosco, nossa alma guarda essa segunda parte de que os outros não tomam posse.

O riso não, esse, desde que o soltamos, escapa-se inteiro, e nada  fica em nós mesmos do que ele foi. O prazer acaba ordinariamente quando acaba o riso; ao contrário quando nós sorrimos é que o prazer começa.

O riso parece muito expansivo e não é; basta dizer que tem  quase uma só forma para todos os sentimentos; vemos um riso e  podemos ficar na dúvida se foi de assentimento ou de escárnio.

O sorriso, não; quando é só dos lábios, quando a alma não participa dele, mostra-o logo no que lhe falta de cândido e sincero.

É fácil fingir o riso; o verdadeiro sorriso não tem imitação.  Com o sorriso podemos exprimir o prazer e a dor; há sorrisos  pálidos, tristes, são quase o pranto; mas ninguém confundirá estas  duas sortes de sorrisos.

No ruído do mundo, no tumulto das sociedades, os homens e  as mulheres riem-se quando se encontram. No silêncio, no retiro,  quando dois entes que se amam estão sós com o seu amor, sorriem-se apenas um para outro.

Apesar de tudo o que fica dito, ainda o sorriso e o riso têm entre  si pontos de semelhança, que ninguém poderá negar.

Se compararmos porém estas duas variedades com a terceira  que a princípio notamos, isto é, com a gargalhada, bem se poderá  ver o que de diverso há às vezes entre coisas que se dizem da mesma origem.

A gargalhada está tão longe do riso e do sorriso, como a algazarra do canto.

Sem dúvida foi pensando na gargalhada que se fez o provérbio  risus abundat in ore stultorum. A gargalhada é uma desnaturação do riso. O riso deleita; a gargalhada aturde. Não é uma expansão, é um desconcerto. Na gargalhada a boca escancara-se, as faces engratam-se e enrugam-se; os  rostos mais formosos tornam-se caricatos; não assenta bem em  ninguém. O ridículo daquilo que nos arranca uma gargalhada,  reverte um pouco sobre nós mesmos. É por isso que muitas vezes  está um homem rindo-se às gargalhadas de qualquer coisa que só  ele viu, chegam outros, e, sem saber por quê, começam a rir-se  do mesmo modo.  E entretanto, meu Deus! parece que há homens fatalizados a  este respeito: as gargalhadas são os pontos e vírgulas das suas orações; dão gargalhadas pelo que eles mesmos dizem, pelo que ouvem dizer aos outros, pelo que veem nos outros e por aquilo que  os outros veem neles. Que entes lamentáveis! Que caricaturas de  carne e osso!

Querem realizar o prodígio do que se chama - gargalhada homérica - mas, não podendo consegui-lo pelo que toca ao volume, buscam suprir esta falta pela continuidade, e então fazem de toda  a sua vida uma gargalhada constante.  As mulheres conhecem mais do que os homens o ridículo de semelhante hábito; por excesso porém algumas tornam-se carrancudas e então pecam pelo extremo oposto.

Tudo nesta vida é assim: o segredo do justo meio é a sabedoria  eterna. No amor por exemplo não há nada pior do que o excesso.  E isso é muito natural; os excessos são raros; e um amor excessivo  dificilmente achará correspondência... Mas a que veio aqui falar-se  de amor? Talvez pensem que isto tem alguma aplicação; não tem: eu estava dizendo que a gargalhada era uma coisa tola; o amor veio  a propósito de coisas tolas.

E, para que não venham outras coisas do mesmo gênero interromper o curso destas muito sérias observações, façamos aqui ponto, alegando, em falta de outra razão, uma que anda agora muito  em moda, e que entretanto talvez bem poucas vezes seja tão verdadeira como nesta: a hora está muito adiantada.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.

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