quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A. A. de Assis (A Hora do Espírito)


No dia em que completei setenta anos, convoquei meu eu-corpo e meu eu-espírito para uma reunião muito séria. Fizemos um balanço do que em conjunto vivemos até então e ficou decidido o seguinte: que eu-corpo, aposentado, estressado, desmotivado, entregaria de vez o comando a eu-espírito.

Nada contra eu-corpo. Até lhe sou gratíssimo pelas alegrias que desde criança me deu: pelos lugares em que me fez andar, pelas coisas bonitas que me permitiu ver, pelos odores, sabores, maciezas e outras gostosuras do mundo-matéria. Nem mesmo alguns contratempos me aborreceram: as dores de cabeça, os resfriados, as cólicas de rins, os dedões destroncados, essas coisas de que ninguém escapa. As próprias travessuras dele perdoo, as dos remotos bons tempos de jovem principalmente. Aos moços dá-se o direito de moderadamente pecar: há a eternidade inteira para a remissão.

Agora, porém, começa outra etapa da vida, a quase-definitiva, e é portanto hora e vez de entronizar eu-espírito na direção dos atos. Eu-corpo que se distraia com as suas caminhadas matinais, seus mingaus, suas novelinhas de televisão, alegres e inocentes recreios tão próprios de quem nada mais cobiça nem nada mais tem a ver com a história deste mundo. Daqui para a frente, manda eu-espírito... Vive le roi!

O que em setenta anos se fez sob a gerência de eu-corpo resultou praticamente inútil. A velha dupla ter-poder, mais uma vez, mostrou-se fofa, chocha e oca. São coisas efêmeras, vaidade pura. Aqui são conquistadas a duras penas (se e quando); aqui se diluem sem deixar sequer saudade. Vale a experiência, e tão só.

Agora, sim, posso começar a de fato viver. Liberto das pressões de eu-corpo, finalmente eu-espírito inicia o ensaio para as maravilhas do fora-e-além do tempo.

Nesta etapa, cada qual, conforme seu temperamento e suas preferências, tem um modo próprio de ser espiritualmente feliz e útil. Uns se dedicam ao trabalho gratuito e generoso em entidades assistenciais; outros ao cultivo da música, da pintura, da jardinagem; outros ainda à meditação e a fazer orações em favor dos que delas mais necessitam. Nada em troca de ganhar dinheiro, muito menos tendo por meta virar celebridade. Prazer mesmo, prazer intelectual, espiritual, que faz bem à gente e a quem por perto está. Só isso.

Meu eu-espírito optou por ser feliz e útil compondo versos. Vez ou outra algum texto em prosa, mas prioritariamente versos. Velho sonho iniciado lá longe, no onde-e-quando fui menino, mas só agora livre para voar sem reticências nem ponto final.

Sobretudo sem egoísmo. A arte me faz muito bem; no entanto não somente a mim. Reparto-a com quem nela possa encontrar algum benefício. Por exemplo: se faço trovas, cuido de fazê-las recheadas de mensagem boa. Se filosóficas, que elas ajudem alguém a pensar; se humorísticas, que ajudem alguém a sorrir; se líricas, que ajudem alguém a sonhar.

É assim que treino para dar sequência à vida na eternidade. Eu-corpo, que do pó se originou, ao pó retornará; eu-espírito seguirá o rumo que Deus determinar.

Deus determina o rumo da gente dando a cada um de nós um tipo de talento. Aos poetas, o belo talento que permite fazer do verso um modo de semear amor.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, verso e prosa.

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