Sempre defendi com paixão a teoria de que o homem não nasceu para viver nestas imensas cidades — formigueiros onde se concentra. Que a natureza humana pede espaços abertos, as distâncias curtas, os ares limpos, o viver natural do campo.
Mas outro dia essas minhas crenças — que na verdade exprimem as preferências mais veementes do meu coração — viram-se abaladas depois da leitura de um artigo não assinado, em jornal. Dizia o anônimo articulista que, ao contrário do que se clama, o homem não gosta de viver no campo, realmente detesta viver no campo. Que o homem acima de tudo é um animal gregário e só lhe apraz andar em bandos e enxames, como formigas ou abelhas.
A gente pensando — vai ver que é isso mesmo. O maior castigo que se pode impor a um homem é a solidão. Pior que os açoites ou correntes, há o castigo intolerável: o confinamento solitário. A natureza profunda do ente humano repugna ver-se isolada do convívio dos seus semelhantes, e o pior de todos os castigos é aquele que fere a nossa natureza profunda.
Vê-se aquele horror de pessoas amontoadas nas horas do rush nos trens da Central — é horror sim, mas logo se descobre que as pessoas gostam daquilo. Senão, davam um jeito. Não se dá jeito a coisas mais difíceis? Mas sentir-se amontoado, compactamente aglutinado, perdida a nossa identidade dentro do grupo, disso, obscuramente é que se gosta.
Que é que o homem entende por divertimento? Carnaval, procissão, barraquinha, quermesse, parada, baile: — aperto, multidão.
Recordo uma noite de carnaval no velho Highlife, tanta gente pulando no salão que dava para desmaiar. Chamamos nosso primo que viera conosco:
— Vamos para o jardim, aqui está quente e apertado demais!
E o primo, enxugando o suor do rosto, vermelho e sem fôlego, deixando-se arrastar por um tentáculo de cordão que ia passando perto:
— Mas eu gosto é de quente e de apertado!
É isso a gente: o quente e o apertado.
O camponês vive nos seus matos e só tem uma ideia: fugir dali, largar aquelas brenhas e aquela solidão, procurar a cidade, a aglomeração humana. Então deixa o sertão e a serra e se tocam todos, ele e os demais, para Rio e São Paulo, qualquer cidade grande, em procura de vida melhor, sim, mas principalmente em busca daquela atração maior de todas: a pululante companhia humana.
Aliás, pensando bem, a gente só se engana com isso porque quer. Desde os começos do tempo que o homem se agrega, se amontoa. Partindo do casal logo se chega à família, à tribo, à horda, ao povo, à nação, ao império. Quanto mais gente, melhor. O objetivo é congregar, uns porque aspiram a dominar os mais, que aceitam ser dominados conquanto a dominação lhes permita continuarem como unidades do rebanho. Rebanho: está aí o que o homem gosta de ser. Inventa palavras bonitas, nacionalismo, catequese, divisão dos frutos da civilização; mas o que ele quer mesmo é a proximidade, o toque, o cheiro, o convívio do chamado próximo. Bem próximo. A inefável promiscuidade.
Desde o índio. Toda a mata é deles, são uns poucos milhares, às vezes poucas centenas. Porque não se espalham para a caça e a pesca cada um com o seu arco e o seu landuá? Qual, têm que viver amontoados, juntam-se em ocas coletivas onde a tribo inteira dorme mais apertada do que marinheiros num porão de navio.
E as cidades antigas, dos hititas à Idade Média? Em qualquer cabeça de morto levantavam um muro em círculo e toca a apinhar gente ali dentro, As ruas eram corredores, os andares se trepavam uns sobre os outros. Não foram os americanos que inventaram as moradas coletivas, superpostas indefinidamente: já as havia no burgo medievo, já as havia em Roma e na Babilônia. Os americanos, dispondo de melhor técnica, apenas lhes aumentaram a altura.
E, falando em americano — por que dispondo eles de toda a vastidão do continente, foram se amontoar aos milhões dentro da pequena ilha de Manhattan, entre os dois braços de um rio? E de tal forma se multiplicaram e comprimiram que, literalmente, espirraram para o ar? Não foi necessidade de defesa, nem escassez territorial, nem riqueza especial daquele solo — ali eram apenas uns alagadiços doentios. Foi mesmo a atração da promiscuidade.
E favela? Por que, tendo em redor o morro inteiro, os barracos se apertam uns sobre os outros num espaço mínimo?
E rei? Pra fugir à solidão da grandeza, reúne multidões na sua corte. O palácio de Versalhes era uma aldeia formigante.
É inútil clamar e reagir contra a megalópole, pois para ela é que o mundo anda. Só quem ama o campo e deseja viver no mato em solidão, são alguns poucos excêntricos, misantropos, intelectuais sofisticados. O resto da massa humana, Deus lhe botou na alma o mesmo instinto gregário da abelha, que só sabe, só quer viver concentrada na colmeia, cada uma no seu alvéolo. Nem que morra por isso.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas.
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