segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Gravação)


- Pronto, tá ligado. Posso começar?

- Pode.

- O senhor se sente realizado?

- Por que você quer saber isso?

- Nada não. O professor é que mandou lhe perguntar.

- O professor tem interesse em saber se eu me sinto realizado?

- Sei não senhor.

- Então diga ao professor que venha me procurar.

- Pra quê?

- Para eu lhe perguntar se ele se sente realizado.

- O senhor vai perguntar isso a ele?

- Vou.

- O senhor também está estudando? Nessa idade, poxa!

- Quê que tem? Toda idade é boa para estudar, a gente não  acaba nunca de saber as coisas. Mas não estou estudando não.

- Então por que vai perguntar isso ao professor?

- Porque se ele quer saber se eu me sinto realizado,  eu  também quero saber a mesma coisa  dele.  Indiscrição  por  indiscrição.

- Gozado... Mas se o senhor fizer isso não bota o  meu  nome  no meio, porque vai dar grilo. Vê lá, hem?

- Fique descansado. Não vou comprometer você.

- E o senhor só vai responder a minha pergunta depois  de  falar com ele? E se ele não responder? Se demorar? Tenho  de  entregar  esta entrevista até quinta-feira.

- Bem, eu respondo agora mesmo.

- Então responde, vamos lá.

- Primeiro eu preciso saber: o que é se sentir realizado?

- O senhor não sabe?

- Para dizer o que eu sinto, quero saber antes se o que eu sinto é o mesmo que se deve sentir quando  se  está  realizado,  ou  se  julga estar. E para isso é preciso saber o que é estar realizado.

- Poxa, não complica.

-  Estou  complicando,  meu  querido?   Minha    intenção    era simplificar, esclarecer. O que é mesmo se sentir realizado?

- Ora! Se sentir realizado é. . . quer dizer... Não sei explicar muito bem, mas o senhor entende, né?

- Mais ou menos. Quer dizer: menos. E você?

- Se o senhor não entende bem, eu é que vou entender?

- Então, como é que eu posso responder?

- Ué, o senhor é o entrevistado, o que sabe das coisas.

- E quando não sei?

- Não sabe se está realizado?

- Não sei nem o que é realizado.

- Corta essa. Não vai me dizer que não tem dicionário em casa.

- Tenho alguns,  mas  em  vez  de  me  tirarem  as  dúvidas,  me acrescentam outras.

- Desculpa, mas o senhor é enrolado, hem? Será que não  achou  o significado de realizado?

- Achei quatro ou cinco. Quer ver? Olhe aqui. O primeiro é o de coisa ou negócio que se realizou, que se tornou real. Será que me tornei real? E antes não era? Quê que eu era então? Fantasma? Projeto?

- Assim o senhor me funde a cuca.

- Não tenho intenção.

- E os outros significados?

- No fim, está o neologismo, e aí é que - desculpe a  expressão, que não costumo usar, mas me deu vontade - aí  é  que  a  vaca  vai  pro brejo. Aqui está: "indivíduo realizado:  dito  por  uma  pessoa,  de  si própria, quando considera  ter  alcançado  todos  o  seus  objetivos  no terreno ético ou no de suas atividades profissionais ou artísticas."

- Tá legal.

- Legal no papel, mas e dentro de mim?

- Dentro do senhor o quê?

-  Quais  são  meus  objetivos  no  terreno  ético,  ou, mais modestamente,  no  terreno  de  minhas  atividades   profissionais ou artísticas? Tenho objetivos éticos definidos? Quais são? São meus ou me são impostos ou sugeridos pela educação e pela conveniência  social?  Se fossem  exclusivamente  meus,  quais  seriam?  E  em  minhas  atividades práticas ou criativas? Que é que eu pretendo? Pretendo sempre as  mesmas coisas? Não mudo de alvo? Não danço conforme a música ou até sem  ela  e contra ela? Que é que eu sei de positivo a respeito disso, ao  longo  de minha vida? Que pretendia eu há 20 anos? Há 10? Na  semana  passada?  Me procure depois de eu morrer. Aí então, posso dar balanço.

- Chega! Chega!

- Estou enchendo você?

- Não está enchendo não.  É  que  a  fita  acabou.  Até  que  a entrevista foi bacana, um tremendo barato. O professor vai delirar,  a turma também. Um cara que não  sabe  se  está  realizado  nem  o  que  é realizado! Papo findo, tchau!

Fonte:
Para Gostar de Ler. Volume 5. 1998.

Nenhum comentário: