- Pronto, tá ligado. Posso começar?
- Pode.
- O senhor se sente realizado?
- Por que você quer saber isso?
- Nada não. O professor é que mandou lhe perguntar.
- O professor tem interesse em saber se eu me sinto realizado?
- Sei não senhor.
- Então diga ao professor que venha me procurar.
- Pra quê?
- Para eu lhe perguntar se ele se sente realizado.
- O senhor vai perguntar isso a ele?
- Vou.
- O senhor também está estudando? Nessa idade, poxa!
- Quê que tem? Toda idade é boa para estudar, a gente não acaba nunca de saber as coisas. Mas não estou estudando não.
- Então por que vai perguntar isso ao professor?
- Porque se ele quer saber se eu me sinto realizado, eu também quero saber a mesma coisa dele. Indiscrição por indiscrição.
- Gozado... Mas se o senhor fizer isso não bota o meu nome no meio, porque vai dar grilo. Vê lá, hem?
- Fique descansado. Não vou comprometer você.
- E o senhor só vai responder a minha pergunta depois de falar com ele? E se ele não responder? Se demorar? Tenho de entregar esta entrevista até quinta-feira.
- Bem, eu respondo agora mesmo.
- Então responde, vamos lá.
- Primeiro eu preciso saber: o que é se sentir realizado?
- O senhor não sabe?
- Para dizer o que eu sinto, quero saber antes se o que eu sinto é o mesmo que se deve sentir quando se está realizado, ou se julga estar. E para isso é preciso saber o que é estar realizado.
- Poxa, não complica.
- Estou complicando, meu querido? Minha intenção era simplificar, esclarecer. O que é mesmo se sentir realizado?
- Ora! Se sentir realizado é. . . quer dizer... Não sei explicar muito bem, mas o senhor entende, né?
- Mais ou menos. Quer dizer: menos. E você?
- Se o senhor não entende bem, eu é que vou entender?
- Então, como é que eu posso responder?
- Ué, o senhor é o entrevistado, o que sabe das coisas.
- E quando não sei?
- Não sabe se está realizado?
- Não sei nem o que é realizado.
- Corta essa. Não vai me dizer que não tem dicionário em casa.
- Tenho alguns, mas em vez de me tirarem as dúvidas, me acrescentam outras.
- Desculpa, mas o senhor é enrolado, hem? Será que não achou o significado de realizado?
- Achei quatro ou cinco. Quer ver? Olhe aqui. O primeiro é o de coisa ou negócio que se realizou, que se tornou real. Será que me tornei real? E antes não era? Quê que eu era então? Fantasma? Projeto?
- Assim o senhor me funde a cuca.
- Não tenho intenção.
- E os outros significados?
- No fim, está o neologismo, e aí é que - desculpe a expressão, que não costumo usar, mas me deu vontade - aí é que a vaca vai pro brejo. Aqui está: "indivíduo realizado: dito por uma pessoa, de si própria, quando considera ter alcançado todos o seus objetivos no terreno ético ou no de suas atividades profissionais ou artísticas."
- Tá legal.
- Legal no papel, mas e dentro de mim?
- Dentro do senhor o quê?
- Quais são meus objetivos no terreno ético, ou, mais modestamente, no terreno de minhas atividades profissionais ou artísticas? Tenho objetivos éticos definidos? Quais são? São meus ou me são impostos ou sugeridos pela educação e pela conveniência social? Se fossem exclusivamente meus, quais seriam? E em minhas atividades práticas ou criativas? Que é que eu pretendo? Pretendo sempre as mesmas coisas? Não mudo de alvo? Não danço conforme a música ou até sem ela e contra ela? Que é que eu sei de positivo a respeito disso, ao longo de minha vida? Que pretendia eu há 20 anos? Há 10? Na semana passada? Me procure depois de eu morrer. Aí então, posso dar balanço.
- Chega! Chega!
- Estou enchendo você?
- Não está enchendo não. É que a fita acabou. Até que a entrevista foi bacana, um tremendo barato. O professor vai delirar, a turma também. Um cara que não sabe se está realizado nem o que é realizado! Papo findo, tchau!
Fonte:
Para Gostar de Ler. Volume 5. 1998.
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