sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Carolina Ramos (O Perdão)


O homem olhou-se no espelho, Não gostou do que viu. Por mais boa vontade que tivesse, não poderia deixar de constatar que o visto, não era aquilo que desejava ver! Estava velho! Velho, sim! Quantos anos teria?! Nunca se detivera em pensar nisto!

A verdade é que já nascera velho, barba branquinha como a neve… e que branquinha sempre seria, como se verões e primaveras jamais houvessem passado por ele.

Apertou entre os dedos o anel de gordura que lhe circundava o ventre e acrescentou a contragosto: — Velho e barrigudo! — péssimo binômio, abominado até mesmo pelos menos vaidosos. Reagiu em tempo: — Velho, sim, porém, nem tão barrigudo como o personificavam por aí, estufado de múltiplos enchimentos ao redor da cintura, a simular uma obesidade exagerada, que, na verdade, não era sua!

Detestava os papais-noéis que badalavam sinos às portas das grandes lojas, a arrematar a missão com aquele grotesco Ho… ho... ho!, sempre forçado e inoportuno! Todos eram de meia idade, tentando simular uma velhice robusta, que não chegava aos pés da sua, transpirando em bicas, dentro daquele casacão vermelho, acolchoado, pés metidos naquelas botas negras de cano alto, sem dispensar, é claro, as barbas postiças, nem sempre impolutas quanto às que ele penteava agora frente ao espelho. Todos, sem exceção, empenhados em simular a simpatia bonachona, que o “Bom Velhinho" deveria ter, para a todos conquistar.

Papai Noel verdadeiro, olhou-se novamente ao espelho. Viu-se cansado! Cansado como realmente estava! Pernas pesadas, corpo doído, desejoso de atirar-se numa poltrona, entregue a uma soneca sem fim!...

Pela primeira vez, não sentia ânimo para se desincumbir da tarefa que, durante toda vida, a cada dezembro, aguardava com entusiasmo e carinho, saudoso do sorriso das crianças à espera de sua chegada. Depois de tantos anos de dever cumprido, doía-lhe na alma a constatação de que o mundo repudiava o sonho, roubando à inocência das crianças, aquela fantasia, tão pura, do velhinho com um saco cheio de presentes para distribuir entre aquelas que se comportavam bem, durante o ano todo!

Chamavam-no agora de velhinho atrevido, malfeitor, usurpador das glórias natalinas, com suas bochechas coradas e sadias, que atraiam as atenções, não só dos pequeninos, mas, também, de famílias inteiras, a cercar sua figura de carinhos, fazendo dele alvo das alegrias de infinitos Natais, em detrimento do objetivo principal, que era lembrar o sublime nascimento do Menino Jesus!

Coração retalhado e cheio de angústia. Papai Noel indagava a si mesmo se acaso, não seria mesmo aquele velho atrevido, que se insinuava nos lares, a eclipsar as homenagens pertencentes ao Santo Menino, adormecido no presépio, e, por ele tanto amado?! Se assim fosse, não haveria dúvidas — era, mesmo, um grandessíssimo ladrão!

Batia no peito contrito: — Sim, talvez fosse mesmo um desprezível ladrão! E dos piores! — Roubara... e continuava a roubar, nada menos que, o Espírito do Natal!

A dor de consciência o exauria. Sugava-lhe as forças! Mas, o senso do dever o impelia a continuar. As crianças esperavam por ele. Precisava terminar de vestir-se para a longa viagem.

Lá fora, as parelhas de renas, atreladas ao trenó, impacientavam-se, pisoteando a neve e sacudindo os guizos, para chamá-lo ao dever.

Papai Noel procurou apressar-se! As pernas cansadas, enfiadas nas botas pesadas como chumbo, tentaram arrastá-lo até o trenó. Mas... a noite, fria, chegou primeiro, envolvendo-o com seu manto bordado de estrelas!

Papai Noel dobrou os joelhos e estendeu-se no alvo lençol da neve macia. Adormeceu... e só acordou no céu!

Naquele Natal, as crianças de todo o mundo regalaram-se com os presentes, deixados por seus pais nos sapatinhos, dispostos sobre o fogão, antes de irem para a cama.

Conformado, Pai Noel sentiu que não fizera falta! Em troca, tinha agora ao seu redor uma legião de anjinhos irrequietos a lhe pedir histórias, encantados com o seu riso franco, sem o costumeiro Ho... ho... ho!

Mas... de repente, aquelas bochechas coradas empalideceram! Ficaram mais brancas que as brancas barbas que as circundavam! O riso patético foi engolido - Os olhos tristes do Papai Noel baixaram, confusos, assumindo o peso daquela imensa culpa, acumulada em toda sua longa jornada! É que uma Senhora, muito linda, vinha em sua direção, caminhando sobre as nuvens, trazendo pela mão um Menino também de beleza inconfundível!

O velhinho dobrou os joelhos ante os dois seres que se aproximavam e, sem procurar esconder o constrangimento, murmurou em voz quase inaudível:

— Perdão, Jesus... perdão! Juro que eu não queria roubar nada... nada mesmo! Mas… mesmo sem querer… parece que acabei roubando!

No entanto, para sua surpresa, o Menino de olhos ternos, parecia não ouvir o que aquele homem lhe dizia. Estendia-lhe a mão para que se erguesse e, com voz doce, quase implorava:

— Papai Noel por favor, me conta uma história... conta?

Ao colo de Sua Santa Mãe, o Menino deleitou-se, encantado como qualquer criança de sua idade, a ouvir, atento, a voz, trêmula e cheia de emoção, que começava a contar:

— Era uma vez... um velhinho, muito velhinho mesmo... que, a cada fim de ano, queria ajudar para que todas as criancinhas fossem felizes, pelo menos por uma só noite! E, para realizar o seu sonho, o bom velhinho escolheu a mais bela de todas as noites, a Noite de Natal! Ou seja, aquela noite maravilhosa, em que, há muito tempo, nascera um Menino muito especial. Aquele Menino chamava-se Jesus e trazia consigo uma grande missão, que era dar Sua vida, pela salvação da humanidade!

Maria, coração angustiado por terríveis lembranças, acariciava de leve a cabecinha do Filho - temerosa de que tudo pudesse acontecer outra vez!

Finda a história, o Menino adormecera… guardava ainda nos lábios o esboço de um sorriso feliz!

Papai Noel engoliu um soluço de emoção, sentia-se perdoado!... Mergulhou o corpo cansado no fofo colchão de nuvens... e adormeceu, feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora

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