quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) III


A ALTRUÍSTA

Tanto conheço minha esposa ativa
Que em ser cristã à devoção apela.
O sentimento meu também deriva
Aos horizontes da informal favela.

Esta paixão que tanto nos cativa
E apaixonado sigo o senso dela,
Que me conduz à conclusão mais viva
Sobre o guardião da singular capela.

Vejo-a de joelhos, na oração clemente,
Pedindo a alguém, que nunca esteve ausente,
Todo agasalho e o desejado pão.

Por isto a fé, que em nosso lar existe,
Encheu a casa do esquecido e triste
Que não mais dorme no batido chão.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE

Desejo nunca essa megera intrusa
Que desnorteia o sentimento humano,
Traz a tristeza na inversão confusa,
Lesando a paz com seu injusto dano.

Fere a harmonia sem pedir escusa,
Leva a família ao desespero insano.
Abre lacuna que o viver recusa
Na concepção de um funeral tirano.

É dor da ausência que jamais se cala...
E a taciturna solidão propala
Numa saudade que jamais se esvai.

Esmaga a fé e não aceita prece;
E mal profundo que jamais fenece
No condoído coração de pai.
* * * * * * * * * * * * * *

A SIBIPIRUNA E O VENTO

Sibipiruna se dispõe ao vento
Que afoito abraça sua copa inteira.
E nem repara o meu olhar atento
Sobre a calçada - amarelada esteira.

Ela se entrega sem nenhum lamento
Ao vil pintor que não tirou carteira.
Hoje percebo que o maldoso intento:
Foi dar às pedras incomum floreira,

Ele se esvai, mas o amarelo fica
Para escutar da natureza rica
A aprovação que justifica o pranto.

E quando verde acolhe com carinho
No seio ameno, agasalhando ninho,
Que reproduz da natureza o canto.
* * * * * * * * * * * * * *

IMORTALIDADE

Nada mais quer... nada o vetusto anima,
Senão lembranças da vivência antiga.
Sempre debruço sobre a obra prima
Das rotas letras que a memória abriga.

Desconsolado, a solidão lastima
E o coração já não lhe diz: Prossiga!
Ninfa nenhuma lhe estimula à rima
Nem ouve os versos da feliz cantiga.

Triste soneto que à lembrança vem,
Verso de amor que o faz lembrar alguém
Que hoje ao seu lado já não mais declama.

Se entrega à morte renegando a vida...
No leito bruto do batel de ida
Ruma ao jazigo dos anais da fama.
* * * * * * * * * * * * * *

MÃE TICO-TICO

Ave garrida, benfeitora augusta,
Extinta quase... mas tomou à vida.
Servindo a alheia e se alegando justa,
Criando filha, de outra mãe, parida,

Mas eu bem sei o quanto a faina custa:
Ter os filhotes e buscar comida.
A esse mister a própria mãe se frustra
E a ti compete essa gloriosa lida.

E vence o ciclo.., e o sol a negra brilha
E nada falta para a estranha filha
Que ela protege como fosse sua.

Louvado seja quem adota e cria,
Pois, certamente, há de ganhar um dia
Um ninho santo onde o Senhor atua.
* * * * * * * * * * * * * *

PERENE ESPAÇO

O espaço é meu, porém em vão procuro
Ser inquilino de endereço certo,
Mas algo estranho se me põe no escuro
Quando antevia meu caminho aberto.

Sem luz alguma, a solidão conjuro
E com tristeza o coração aperto.
Aço da algema fere o meu futuro
E o meu destino cai no hostil deserto.

A salvadora que jamais esqueço
Se me aparece, sem nenhum tropeço,
Desata a amarra ao despertar ileso.

Livre! O compasso invade a minha tenda
E o som do acorde, da maior legenda,
Liberta o verso que jamais foi preso.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vânia Ennes.

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