Maria Isabela jamais fora criança. Nem mesmo, jovem por muito tempo. Já nascera com vocação para velha. Quando menina, os serviços domésticos estavam, como de costume, ao dispor da solicitude de suas mãos, sempre prontas para fazer algo, e, de seus pés, incansáveis nos vai-vens de servir a alguém. Sempre estava pronta para fazer algo... esse algo que jamais acabava de acontecer, sem que outro algo já não estivesse à espera! Nesse rol de sucessivas tarefas, a infância e a juventude de Maria Isabela passaram sem deixar rastro. Céleres como água engolida pelo ralo da pia, que escorre sem que se saiba aonde irá parar.
Nesse fluxo inútil, cedo esvaíram-se, também, as lembranças, boas... ou más. Lembranças que aquela cabecinha não conseguia reter, por não acompanhar o desenvolvimento normal e ágil das garotas de sua idade, a desabrochar para a vida. Botões a virar rosas, desdobrando pétalas, uma após outra, até lograr a apoteose final. Rosas prontas para serem colhidas e para ganharem uma história, ainda que breve, ansiosas por fugir à sina estéril de secar num galho, sem função maior que adornar um jardim.
Maria Isabela jamais seria alvo de colheita espontânea. Não possuía beleza que atraísse olhares cobiçosos. Pobre de encantos, tampouco servia para adornar o ambiente em que vivia. Apenas deixava-se viver como vivem as plantas rasteiras, que não dão sombra, não enfeitam, não perfumam, mas vicejam, mesmo pisadas, mesmo ignoradas, até que alguém descubra, na sua insignificância, alguma virtude oculta, que ninguém até ali conseguira ver.
Que idade teria Isabela quando encontrara aquele Papai Noel, por quem se apaixonara irremediavelmente?! Quem saberá?! Embora já tivesse deixado para trás algumas décadas, não passava de uma adolescente ingênua, mais ingênua que qualquer adolescente escolhida ao acaso. E fora com olhos deslumbrados de adolescente ingênua que Maria Isabela o vira pela primeira vez! Outubro dominava o calendário e ainda estava longe o Natal. A casa comercial, ali no seu reduto, começara cedo a compor o espírito natalino, ornamentada de bolas de aljôfar multicoloridas, cheia de enfeites temáticos, estrelas, festões verdes, guirlandas prateadas, brinquedos, e um batalhão de Papais-noéis de todos tipos, tendo, como elemento comum, barbas branquinhas e faces gordas e coradas. Mas, nenhum deles igual àquele Pai Noel, tamanho natural, postado à porta da loja, a receber a todos com
um sorriso afetivo, que tanto prometia.
Fitaram-se por primeira vez, olhos nos olhos. Encontro de almas! Tal como se aquele boneco vestido de Pai Noel, do tamanho de um homem, pudesse ter alma! E como se um coração de verdade pulsasse por baixo da casaca vermelha, arrematada por barras de lã alva, felpuda. O certo, é que dois corações e duas almas, encontraram seus pares, naquele preciso momento!
Todos os dias, na hora em que alguns privilegiados desfrutavam a sesta, Isabela enxugava as mãos laboriosas, e, esgueirando-se pelo portão, vencia a curta distância e os poucos degraus que a separavam do seu ídolo. Sentada nas proximidades, mergulhava na contemplação daquele silencioso amigo, adotado com êxtase pelo seu carinho sem limites.
No primeiro dia de dezembro daquele mesmo ano, uma agradável surpresa a aguardava. O seu Papai Noel estático, de olhos meigos que lhe diziam tantas coisas, ganhara vida! Cantava e mexia-se todo, sacudindo banhas e movendo os lábios com seu riso alegre — Ho! Ho! Ho! – Maria Isabela prendeu a respiração até mais não poder.
— "Feliz Natal! dizia-lhe o boneco e ela, encantada, devolveu-lhe a saudação, num emocionado sussurro: — "Feliz Natal!'"
A constatação de que havia vida naquele corpo querido, tornou aquele corpo querido mais querido do que nunca! O amor de Isabela chegou ao delírio!
Dia após dia, os encontros repetiram-se e com eles as confidências, ainda que unilaterais, os planos... não, nada de planos... Isabela não sonhava nem planejava coisa alguma, apenas vivia! Vivia a vida que se apresentava a cada manhã e que morria à noite, quando as pálpebras se fechavam para o sono reparador.
Janeiro interrompeu o ciclo dos encontros. Depois do Dia de Reis, o Papai Noel sedutor desapareceu sem deixar qualquer pista. Terrível decepção para a moça apaixonada! Perguntou por ele à dona da loja e soube que só o teria de volta no final do ano que começava!
Daí em diante, Isabela viveu cada doze meses, em função da espera! Esperava pelo dezembro, tão distante! Esperava por aquele passeio, num carro sem rodas, puxado a renas! Passeio que pedira a Papai Noel e tinha a certeza, de que ele, não tendo negado, concordara pelo silêncio. Seu único sonho! Era só questão de esperar. E Isabela esperava. Um ano, dois anos, três... Até que num dia de dezembro de um ano qualquer, descobriu, horrorizada, que o Papai Noel, com quem ainda na véspera conversara… o seu queridíssimo Papai Noel, estava sendo varrido para o lixo, em cacos! Quis protestar, em prantos, sem o conseguir. Soube que alguém esbarrara no boneco e que, rolando a escada, ele se espatifara, lá embaixo, irremediavelmente!
Isabela desabou! Entrou em parafuso! Não comia, não dormia... não trabalhava... não vivia! Faltava-lhe motivação para tudo... ardia em febre! Em seus delírios, chamava pelo seu amor, pelo seu Pai Noel desaparecido, que lhe prometera um passeio e... tanto custava a aparecer!
Até que, numa noite de um indeterminado dezembro, o som inconfundível de sininhos natalinos tirou Maria Isabela dos seus delirantes devaneios.
Uma calma doce entrou pela janela e suavemente desceu sobre ela. Logo depois, um trenó, tirado por quatro parelhas de renas, saiu pela janela, rumo às nuvens, levando na boleia, Maria Isabela, feliz... feliz!…
Ao seu lado, um Pai Noel risonho estalava, no ar, seu chicote festivo, que apenas estimulava... sem fazer mal a ninguém...
Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
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