quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Jacaré de Papo Azul)


— Jacaré de papo azul, por acaso o senhor já viu um na sua vida? Azul, azulinho ele todo, o papo, não o jacaré. Eu vi. Vi e conferi, que ele ficou meu amigo, pode acreditar. E, eu sei, nesta beira de rio, vez por outra costuma aparecer jacaré-de-papo-amarelo, não faz novidade nisso. A gente está acostumada com ele, sabe lidar com o bichinho, e cai de pau no lombo dele antes que ele ferre a gente com uma dentada ou derrube a canoa com uma rabanada forte. Já experimentou serrilha de rabo de jacaré no corpo, terá coisa pior do que isso neste mundo de coisas piores? Olhe aqui o meu peito, eu falo de jacaré porque jacaré entrou na minha vida desde menino, o primeiro que vi levou a perna de meu pai, outro fez no meu corpo este desenho que o senhor está admirando, pois não é tal qual uma mulher nua costurada na pele, a marca que ele deixou? Se não morri foi porque estava decretado que jacaré nenhum tem poder sobre este afilhado das treze almas sabidas e entendidas, que cortam as forças de meus inimigos. Meu pai, a perna dele não foi propriamente comida por jacaré, ele tirou só um naco, mas o resto apodreceu e no hospital da Januária tiveram que serrar na altura da coxa. E ainda falam que jacaré em terra é uma pasmaceira, não sabe correr nem brigar.

Pois sim. O que aleijou meu pai estava dormindo na quentura da praia, muito do seu natural, como se ali fosse a casa dele. Pai cutucou ele assim com a ponta do pé, fazendo cócega na parte da barriga que estava meio exposta, porque o desgraçado dormia meio de banda, entende. Jacaré fez que não viu nem percebeu, continuou no seu paradeiro, pai cutucou mais, achando graça no sono pesado daquele bicho entregue à vontade da gente, sem defesa, porque jacaré fora d’água… e tal e coisa. Depois de muito cutucar, o velho lascou um pontapé no traseiro do bicho, o bicho achou que aquilo era demais, nhoc! cravou a dentadura afiada na coxa dele. Eu estava perto e disparei porque não sou bobo, pai veio atrás, sangrando e xingando o jacaré, que continuou no mesmo lugar, sem dar confiança. Quando a gente voltou para caçar ele, tinha sumido. Bem, se conto essas coisas ao senhor é pra mostrar como a vida é feita de tira e dá: aqui estou eu ganhando a minha caçando jacaré pra vender o couro. A carne, eu aproveito em casa, o senhor já provou uma boa jacarezada, feita com capricho, muita pimenta e uma branquinha de qualidade pra santificar o total? Lhe ofereço uma se o senhor arranchar aqui mais de uma semana, tempo de aparecer jacaré que anda meio desanimado de descer o rio, sei lá onde se meteu. Não quer? Já sei, o senhor embrulha o estômago só de imaginar bife de jacaré, basta pensar no cheiro, aquele pitiú, e mais o gosto da carne dele. Pois muito se engana, é questão de lavar, salgar, temperar direito. Bem, não se fala mais nisso, não vou lhe oferecer um prato que o senhor não dá o devido valor.

Onde é que a gente estava na direção da conversa? Ah, já sei, na minha vida de caçador de jacaré, que parece feita de aventura e que talvez seja pros outros, pra mim é escrita bem decifrada, não tem mistério, e se ficou esse desenho gozado no meu peito foi porque eu ainda não tinha muita experiência de jacaré, facilitei, pronto: gurugutu, mas aprendi pro resto da vida, é baixo que um me pegue outra vez, minhas treze almas me acompanham no serviço, me adestram na caça, sou capaz até de pegar jacaré a laço de vaqueiro, como diz-que se faz lá no Marajó, me contaram. Ou que nem índio, que pula do galho da árvore em cima do jacaré, monta nele; quando jacaré mergulha, índio mergulha também, com a mão esquerda agarrada na barriga do bicho, com a direita aperta bem os olhos dele e com a terceira mão, que ninguém tem mas nessa hora aparece, amarra o focinho dele com embira que levou presa na boca… O senhor duvida? Quer dizer, isso ainda não fiz, faltou ocasião, mas chegando a hora eu faço. Só que não gosto de judiar dos bichos, mato eles porque o cristão tem de viver à custa de tirar a vida do jacaré, mas no dia que eu achar um diamante, digo até nunca pro meu ofício, por enquanto vou comendo carne, vou vendendo couro. Pagam uma porcaria, sabe? No entanto, qualquer coisa feita de couro de jacaré custa uma nota alta, a vida é assim, também brinca de dá e tira. Estou destaramelando faz tempo e ainda não cheguei ao caso do jacaré de papo azul. Pois eu conto, o senhor fique a cômodo neste tamborete e preste atenção no meu relato.
* * *

Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio pra ver se tem jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele. De começo fui pescador de peixe, como todo mundo, mas eu queria outra coisa, queria tirar do rio o mais difícil. Minhocão, diz o senhor? Minhocão sabe pra quem aparece. Meu negócio era com o jacaré, o rio entendeu e me dá o jacaré que eu preciso e não abuso. Tanto que de jeito nenhum eu caço filhote. Brigo com jacaré grande, no poder da valentia dele, e se eu venço, fico agradado de mim; se perco e ele foge, a vez era dele, está certo.

Naquele dia foi diferente. Jacaré botava a cabeça pra fora, eu ia pra cima dele, e nada. Aparecia mais adiante, voltava a afundar, tornava a aparecer, a afundar. Brincando. Isso que eu percebi depois de uma meia hora de perseguição. Estava se divertindo comigo, não fugia, também não se entregava. E era engraçado ver o jacaré tão despachado, tão corredor, na correnteza tão devagar, porque o senhor sabe que este rio aqui não tem pressa de chegar, só mais embaixo ele pega numa disparada que o governo aproveita para fazer uma usina gigante.

Aqui o rio é lerdo, a gente sente melhor o rio, dá pra fazer amizade. Então eu percebi que era isso que o jacaré estava querendo, fazer amizade comigo. O senhor já reparou em boca de jacaré? Parece que ele vive rindo de tudo, até sem motivo. Esse que eu falei ria com o corpo inteiro, às vezes chegava à flor d’água o tempo de eu apreciar ele todo, e rabeava com um jeito moleque, tão gozado que só o senhor vendo. Eu doido de aproveitar e cair em cima dele, mas quem disse? Depois de muito dançar e mergulhar, ele deu um salto e virou de barriga pra cima, a uma distância que não dava pra pegar. Ficou assim, boiando satisfeito da vida, que nem flor. Que nem essa flor, o senhor sabe, grandona e redonda, boiando feito bandeja, lá no fim do Norte, que eu nunca vi de perto, só de figura. Aí eu fui chegando perto, chegando perto, bem de mansinho. Se ele vira de repente e me dá uma rabanada, pensei, adeus canoa e eu sou o finado Marcindírio. Ele não virou, cheguei bem perto e vi. Tinha o papo azul, azul deste céu que o senhor está vendo, azul-claro, limpinho, bom de passar a mão…

Passei. O senhor não credita que passei? Pois o danado gostou, deixando eu fazer esse agrado que a gente faz no pescoço do gato, só que mais forte, o couro é o contrário da macieza do gato. Não tive coragem de fazer mais nada. Ele estava tão feliz de ser tratado assim, tão prosa de mostrar seu papo diferente, lindeza de papo. Aí eu falei assim: “Vou m’embora, jacaré; você é livre de morar no rio, que eu não te causo dano”. Voltei sem ofender aquele bicho-irmão, pois pra mim ele ficou sendo um negócio parecido com irmão, não digo filho porque era tão forte quanto eu, se não mais, e filho da gente, por mais que cresça e apareça, é sempre uma plantinha mimosa, sabe como é. Em casa, minha patroa zombou de mim, achou que eu não estava regulando. Não dormi de noite, pensando no jacaré. Dia seguinte, olha ele outra vez me chamando pra brincar, eu disse:

“Calma, jacaré, não posso passar a vida me distraindo com você, não sou mais menino e você também não é filhote. Todos dois têm que cuidar da vida, que a morte é certa”. Até parece que ele entendeu, ficou com ar meio amuado, afundou. Só apareceu muito tempo depois, de longe, experimentando a mesma sorte de molecagem. Fiquei com pena dele: “Tá bom, eu brinco”. Mas tem propósito um barraqueiro como eu alisando papo de jacaré, só porque ele é azul, me diga, tem propósito? Se a gaiola passasse e os passageiros me vissem, que é que haviam de achar? Eu sei, talvez algum quisesse me convencer que eu devia levar o jacaré pra terra e vender ele pra fazer figura no circo, mas o mais certo era que todo mundo caísse de gozação em cima de mim, podiam mesmo me levar amarrado feito doido pra dormir na cadeia, e depois… Isso tudo passou na minha cabeça enquanto eu acarinhava o jacaré, fiquei com vergonha que pudessem me ver naquela hora, depois fiquei com vergonha de ter sentido vergonha, afinal que que tem o senhor se entender com um bicho com fama de malvado e vai ver não é malvado coisa nenhuma e pede à gente pra gostar dele?

O senhor começou a entender, quer mais um gole de café enquanto eu conto o resto? A fome começou a apertar aqui em casa, por causa de que não vinha mais jacaré na descida das águas, só ficava banzando por lá o de papo azul, que eu não tinha coração de pegar. Até parece que ele afugentava os outros, queria reinar sozinho, virar dono e senhor do rio. Mas tão manso e engraçado que não tinha cara de mandão. Traiçoeiro não podia ser, se bem que a Luisona me prevenisse:

“Toma tento com esse bicho que vai te enfeitiçando, alguma ele te prepara, não vejo nada de bom nessa claridade do rio que deu pra acontecer ultimamente”.

Luisona é a minha patroa, ela tem esse nome porque é uma tora de mulher. Acontece que o rio vinha mesmo se lavando de sua cor de barro carregado, e quando o sol batia na neblina do amanhecer e a gente via a água, era uma água quase azulada, não que chegasse a azul, parava no quase, coisa que eu nunca tinha visto antes e era maravilha. “Mau sinal!”, repetia a Luisona, e as boquinhas dos meninos pedindo comida não davam gosto da gente olhar. Diabo de jacaré, pensei, se eu aproveitar uma ocasião da folia dele e chegar de mansinho e dar nele uma machadada bem certeira, será que morre na horinha e eu não sinto remorso porque não teve tempo de sofrer? Mas se eu errar no golpe? Se o golpe não acertar direto no coração dele, e eu tenho de dar outros golpes e ele me reconhece e crava em mim aqueles olhos redondos e espantados de amigo traído, de irmão assaltado pelo irmão? Não, eu não tinha coragem. E tinha precisão de ter coragem. O rio cada vez azulava mais, ou eu é que enxergava nele a miragem do papo do jacaré tornando tudo em redor uma pintura de quadro de Nossa Senhora? Botei o machado na canoa, rezei treze vezes a oração das minhas treze almas sabidas e entendidas e fui vigiar o rio.

O jacaré apareceu longe, veio chegando aos poucos, não tinha pressa. Boiava e sumia, tornava a boiar e sumir, era a festa de sempre. Cada vez mais perto da minha intenção, do meu machado. Quando chegou bem rente, estendi o braço devagar pra lhe fazer o carinho do costume. Deu uma virada brusca e afundou. Tinha percebido? Apareceu mais adiante. Cheguei lá, repeti o movimento. Ele também. Mas não tinha ar de brincadeira nova, inventada por ele. Era desconfiança, era defesa, era também (devia ser) resolução de evitar que eu acabasse me tornando um assassino igual aos outros, pior que os outros. Pois aquele animal de Deus gostava de mim e eu dele. Eu percebia isso, mas cada vez ia ficando mais enquizilado com aquele jogo em que o jacaré era mais forte porque era melhor do que eu. Não queria propriamente escapar de morrer, queria impedir que eu matasse. Mas eu queria matar. Eu precisava matar. Pra sustentar meu povo e agora também por outro fundamento, provar ao bicho das águas que lição eu não recebia dele, minha lei é fruto de minha cabeça, eu sei o que é necessidade e justiça. A raiva contra o jacaré ia crescendo, agora eu queria é ver o sangue dele tingindo o rio, desmaiando aquela azularia que encantava a cara suja e sincera das águas. Não resisti, pulei da canoa com o machado na mão direita e fui perseguindo o desgraçado, que fugia sempre como quem brinca de esconder e não dá confiança a quem quer pegar. No que ele nadava e eu também, fui sentindo uma tristeza de minha vida depender de matar, e a raiva ficava menor, eu tinha é pena de mim, tão precisado de fazer mal aos outros viventes, pena dos jacarés de papo de qualquer cor, pena de tudo, e o jacaré deu um mergulho, soverti com ele, a perseguição continuava, mas era tão triste, me via tão humilhado diante do poder daquele bruto de tamanha simpatia e delicadeza, eu menor do que ele, muito pior do que ele. O machado caiu da mão, me embolei com o jacaré, resolvido a acabar com aquilo de qualquer jeito, me expondo, desafiando ele a me cortar em postas, mas o riso dele me doía mais do que se fossem os dentes retalhando minha carne, que luta! seu compadre. Eu embrabecido, disposto a tudo, ele maneiro, dentro das regras, escorregando feito sabonete, mostrando que não queria, não precisava morder, queria é me cansar… cansei. Tudo ficou completamente azul dentro d’água, o próprio jacaré ficou todo azul-celeste, eu perdia as forças, me sentia azular por dentro, uma bambeira de sono diferente me encheu por inteiro. Então o jacaré, esticado, veio por baixo, me pegou pelas costas e foi me empurrando pra riba, me livrando do afogamento, me deixou estendido e mole à flor d’água, de barriga pro ar, uma coisa frouxa, tábua. E sumiu. Sumiu de sumiço eterno até a presente data. Não sei quanto tempo fiquei assim naquele paradeiro. Sei que a Luisona veio nadando feito gigante e foi me puxando no rumo da praia, dizendo: “Esperta homem!”.

Espertei. Dia claro, o rio outra vez barrento, reuni as forças, fui cair na rede aqui em casa. Dormi dois dias e duas noites. Quando acordei, fui cuidar da vida, arranjar outro machado, outra canoa, pois pra isso me botaram no mundo: pra caçar jacaré.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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