segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nilto Maciel (O Julgamento de Rui)


Quando ela chegar em sua carruagem de névoa, estarei pronto para a partida. Terei arrumado as malas, tomado banho, trocado a roupa. Tudo estará em ordem: móveis, papéis, semoventes. Abraçarei parentes e amigos, e, sereno, caminharei até a sege. O cocheiro, impaciente, olhará para trás. À janelinha, direi adeuses. E, talvez chorando, partirei.

         Sim, logo chegará minha vez de partir. Antes, porém, quero deixar anotadas algumas recordações. Não para o público, que não sou escritor, mas para meia dúzia de parentes.

         Não falarei de minha infância nem de minha mocidade. Não é aquele passado tão remoto o que me interessa e atormenta. Principiarei do meio do caminho. Depois de juiz, casado e pai.

         Minha intenção é recordar Cândida, seu tempo. Talvez para esquecer sua tragédia, seu fim. No entanto, não poderei falar dela, sem lembrar-lhe a morte.

         Encontraram o corpo de minha filha a boiar num poço do rio das Lajes. Havia ferimentos na cabeça, nos braços, nas pernas. E rasgões no vestido.

         O achamento do corpo se deu graças a uns meninos. Costumavam tomar banho naquela parte do rio. Pulavam de cima das pedras.

         Os exames médico-legais não foram conclusivos. Cândida poderia ter escorregado nas pedras e se afogado. No entanto, ela sabia nadar. Além disso, nunca tomava banho em rio. Talvez nem conhecesse aquele rio.

         Falaram em suicídio. Padre Divino repeliu de pronto tal hipótese. Fez-nos ameaça: não daria sepultamento cristão à morta, caso tivesse havido suicídio.

         Não, Cândida não tinha razões para se matar. Todos falavam de sua beleza. Não aquela beleza cinematográfica. Talvez beleza angelical. Nenhum problema para atormentar-se, quer de saúde, quer financeiro.

         Havia ainda a hipótese de homicídio. Quem faria isso? A menos que um louco a tivesse encontrado às margens do rio.

         Ainda hoje guardo alguma suspeita de Rui de Alencar. Não há, porém, nenhuma prova a incriminá-lo. Não foi sequer indiciado, apesar de seu comportamento esquisito.

         Diziam nutrir ódio a Cândida. Por não dar ela a menor importância a ele. Segundo outros, sentia ciúmes insuportáveis. A própria Cândida dizia, no entanto, ter ele inveja dela. Desde os tempos de menina. De suas tranças balouçantes, de seus pulinhos na calçada, de seu riso exuberante.

         Aos 15 anos se elegeu Rainha do Partido Azul, nas festas da padroeira da cidade. A mocinha do Partido Vermelho, ou Encarnado, quase morreu de indignação. Teve médico à cabeceira. E reza prolongada dos pais. Retornou à vida dias depois, completamente sem cor.

         Para comemorar o feito, realizou-se outra festa no Clube Esportivo de Palma. Algumas brigas entre os rapazes. Todos disputavam o amor da bela filha do juiz.

         A beleza de Cândida chamou a atenção de homens e mulheres desde seus primeiros anos. “Parece um anjo do céu”, diziam. Referiam-se às figuras pintadas na cúpula da igreja matriz.

         A comparação se tornou mais crível no dia da primeira comunhão dela. Trajada de anjo, com asinhas e vestido longo, encantou meia cidade. A outra metade não saiu de casa, não foi ver a cerimônia.

         Nesse dia Rui sofreu como nunca. A beleza da menina o martirizava. E esse martírio se desenvolveu ao longo do tempo. Quanto mais Cândida crescia, mais Rui se atormentava.

         Embora não tenham sido sequer namorados um do outro, Rui vivia espionando Cândida. Certa feita, ao flagrá-la em beijos com outro rapaz, aprontou um memorável escândalo. Toda a cidade comentou o espetáculo. Ora, circo só aparecia de ano em ano, e ninguém se afoitava a sair da linha. A não ser durante bebedeiras. Mas bêbados se repetiam, e ninguém mais os achava escandalosos. Mesmo quando caíam ou urinavam nas ruas.

         A fúria do rapaz parecia incontrolável. Sentia-se ultrajado. Sobretudo porque chegou a seu conhecimento que Cândida o chamara de besta. E o insulto teria sido pronunciado em local público, diante de várias pessoas, a plenos pulmões.

         Se o “besta” tivesse sido circunstancial, em razão do beijo, Rui talvez tivesse esquecido logo o insulto. Porém, Cândida o considerava besta por muitos outros motivos e momentos. Como por ele se vangloriar de ser advogado, orador, poeta, professor e futuro vereador. O homem mais importante de Palma. Um petulante!

         Se ela apenas visse defeitos nele – presunção, por exemplo –, Rui ainda poderia ter esperanças de enamorado. Na verdade, ele significava um defeito ou os defeitos. Em consequência, ela não gostava nada dele. Nunca aceitou os galanteios dele. Se pudesse, nem sequer o veria. Quando para ele olhava, seu olhar refletia desdém. Como o espelho do punhal à luz do sol reflete luz. E cega, fere, mata.

         Ó amor-próprio ferido! Pois quantos sonetos ele rabiscou, burilou, soletrou para ela!

         Um deles, de uma pieguice imensurável, ela rasgou, queimou, jogou ao lixo. E mandou recado: faria o mesmo a tantos quantos ele enviasse.

***

         Até no cabaré de Ana Souto se soube da beleza de Cândida. Para desespero de Rui, as raparigas constantemente traziam à baila o nome dela e sua formosura. Chamavam-na de “tua namorada”, “tua amada”, quando com ele falavam. Ele se zangava. Não queria o nome “dela” ali, naquele ambiente de pecado, devassidão, sujeira.

         Desesperado, chegou a culpá-la de tão constrangedora situação. Se fosse mais recatada, menos mostrada, exibida, espevitada, seu nome não estaria na boca de todos. Até das raparigas.

         E para que escrever versos e publicá-los no jornal? O cúmulo da vaidade! De fato, Cândida havia rabiscado uns versinhos, coisa bem ingênua e sem nenhuma poesia. Umas quadras cheias de flores e amores. Dei-lhes retoques, impus métrica e as mandei para a folha do comendador Jeremias.

         Não saíram maus versos. Como os de minha juventude. Sim, aos vinte anos fui poeta. Não sei o destino de tantas odes e cantigas. O tempo, o casamento, a magistradura, tudo se encarregou de sepultá-los.

         Talvez Rui não tivesse gostado da concorrência. Poeta só ele em Palma.

         Motivos não faltaram, pois, para que Rui desejasse a morte de Cândida. O mais grave deles talvez tenha sido a suposta platônica paixão dela pelo tenente Benévolo. Alguém deve ter cochichado horrores aos ouvidos dele. Sim, aquilo cheirava a sem-vergonhice. Pois o delegado tinha esposa e filhos, além de ser muito mais velho que ela.

         E uma agravante – ele, poeta, ser trocado por um soldado!

         Por tudo isso, não me convenço da inocência de Rui. Sobretudo por ter sido visto, naquela tarde, nas proximidades do rio das Lajes.

         Regressava ao cento da cidade, a pé, quando testemunhas o avistaram. Parecia nervoso, agitado, além de ter as roupas molhadas e sujas de lama.      E aquela gota de sangue coagulado no rosto? Só pode ter sido provocado por unha. Porém, Rui negou tudo. Não gostava de rios, mal sabendo nadar. E naquele dia, bem longe do rio, escorregara numa poça de lama, daí os leves ferimentos e a roupa suja.

         Testemunhas afirmam ter visto o rapaz nas proximidades do local onde o corpo de Cândida foi encontrado. No entanto, o delegado chamou-as de mentirosas. Ameaçou-as de prisão e tortura. Como costumava agir. Os gritos dos presos assustavam as crianças à noite.

         Benévolo não escondia sua simpatia pela pena de morte. Antecedida de prolongada tortura. E não foram poucos os presos mortos nas celas da Delegacia. As conclusões eram sempre duas: suicídio e assassinato (cometido por outro preso). E logo o “outro preso” também amanhecia morto.

         Como Cândida conseguiu gostar de tão feio carniceiro? Águeda me falava desse amor, dessa paixão. A menina sonhava com o monstro. Em seus sonhos ele virava cavaleiro andante, salvador de donzelas, amante fiel, herói insuperável.

         Casado, pai de quatro ou cinco meninos, Benévolo vivia no cabaré de Ana Souto. A pretexto de fazer ronda, não perdia oportunidade de se deixar arrastar para a cama das raparigas.

         Conquistador bem sucedido, não desprezava também as empregadas domésticas e as moças mais pobres.

                                                        ***

         Cinco foram as paixões de Rui.

         A primeira aconteceu aos oito aninhos de Cândida. Brancas pernas roliças, longos cabelos castanhos, peraltice pelas calçadas, parecia a dona do país das maravilhas. Lá fora, no entanto, reinava o terror. O governo cassava deputados, feito gato atrás de ratos. Rui, sempre solteiro, ria dos ratos, perseguia Cândida com olhos de gato. E tinha 34 anos de solidão.

         Alguns anos depois, mataram Lamarca. Minha filha fazia 13 anos. Atolado na dor, Rui andava pelas ruas de Palma feito sonâmbulo. Acontecia sua segunda paixão. As pernas de Cândida estavam mais roliças e tentadoras, seus cabelos lembravam o vento, seus olhos pareciam cisternas profundas.

         Mais uma vez Cândida não tomou conhecimento de nada. Nenhuma paixão a visitava. Nenhum terror a martirizava. Tudo nela devia ser cor-de-rosa.

         A terceira paixão de Rui se deu em 73. Acabava de entrar na casa dos quarenta, um ou outro cabelo branco a surgir na vasta cabeleira. Seus versos falavam então de adolescência, flor desabrochada.

         Mais dois anos, e uma quarta paixão feria seu já gasto coração. No dia da morte de Herzog, bebeu em demasia e terminou numa das camas de Ana Souto. Começou louvando a morte de todos os comunistas e acabou chorando aos pés de uma rapariga, que confundiu com Cândida.

         E veio a última das paixões. Minha filha chegava perto dos vinte anos e havia concluído o curso de normalista. Parecia mais bela que nunca. Rui e outros a chamavam de deusa, ninfa, graça. Nas grandes cidades, multidões se manifestavam nas ruas, pedindo liberdade. Rui se irritava com aquilo, e mais seus cabelos embranqueciam.

         Dias depois o governo fechou o Congresso. E Cândida apareceu morta.

***

          Menina-moça, Cândida já ouvia falarem de seu casamento com Rui. As amiguinhas brincavam: já nasceu com casamento pedido. Pois toda  Palma sabia da paixão de Rui por minha filha. E o tempo passando, ele envelhecendo, enchendo-se de rugas e cabelos brancos.

         Se se referiam à sua solteirice prolongada, ele se zangava. Quando encontrasse a moça ideal, anunciaria o noivado a todos. Daria uma grande festa no Clube. Publicaria notícia no jornal do comendador.

         Por que não se casava logo? Por que não se casara ainda, se havia tantas moças solteiras em Palma?

         Como se acusado de grave falta, ele se defendia com unhas e dentes. Não ia casar-se com qualquer uma. Casamento para ele só com amor. Mas tivessem paciência: um dia a mulher de seus sonhos surgiria.

         Às escondidas riam dele. Pelo jeito casaria com a morte.

                                                        ***

         Houve quem duvidasse da virilidade de Rui. Exatamente por sua solteirice crônica. Porém, ele frequentava com assiduidade o cabaré de Ana Souto. Não toda noite, é certo, mas pelo menos uma vez por semana. Nunca aos sábados e domingos. Detestava disputar as mulheres. E a companhia de bêbados.

         Rui e Ana mantinham uma espécie de pacto. Ele não dava dinheiro às raparigas com quem se deitava. Em troca, se obrigava a dormir na cama dela uma vez por mês.

         Conheciam-se desde a primeira mocidade dela. Nesse tempo já navegava Ana na barca dos cinquenta anos. E já administrava, com sabedoria de vestal, sua casa repleta de mocinhas.

         A fama do cabaré de Ana se mantinha desde os primeiros tempos. Lá viviam as mais novas e bonitas raparigas de Palma. O plantel se renovava constantemente. Coitada de quem adoecesse, engravidasse, abortasse. Nenhuma chegava aos trinta anos. Casa respeitada e frequentada pelos mais importantes homens da região. Desconhecido de Ana não punha os pés no batente de sua casa. Só se conduzido e apresentado por algum amigo.

         Assim, nunca o cabaré foi palco de qualquer briga. Além do mais, a polícia garantia a ordem na casa. Benévolo e seus soldados davam proteção a Ana e suas “meninas”. Em troca, não pagavam nada. Bebiam à vontade, dançavam e podiam escolher a mulher que lhes apetecesse.

         Sempre bem vestidas, pintadas, perfumadas, as raparigas de Ana gozavam da mais alta admiração de todos. Seus nomes andavam de boca em boca e até nos versos de Rui.

         Também Ana frequentava a pena do poeta, como no poema intitulado “Caftina”, que apesar de versos assim e das noitadas no cabaré, havia quem afirmasse nunca ter Rui tocado uma só das mulheres de Ana. Outros se faziam menos cruéis. Ia para a cama, sim, mas após muita insistência. E, para não sair falado, mostrava-se o mais competente dos machos. Capaz de deixar cansada a mais calejada rapariga.

         Finda a pândega, corria para casa, feito rato assustado. Como se tivesse enfrentado o mais temível dos gatos. De tão angustiado, não conseguia dormir. E só faltava supliciar-se ante as imagens dos santos. Rezava infinitas orações, ajoelhado, quase a chorar, coração a explodir de dor. E se banhava, uma, duas, três vezes. Cobria-se de espuma, gastava sabonetes e sabões, a água gelada a lavar-lhe o corpo pecador.

         Nos dias seguintes, transfigurado, quase branco, cheirando a santo, lia seguidamente a Bíblia e vidas de santos e mártires cristãos. Rezava a mais não poder, assistia a todas as missas, confessava-se a cada madrugada, engolia hóstias atrás de hóstias. E ninguém via nisso exageros ou loucura. Padre Divino mostrava um riso contínuo, como o de algumas imagens da Igreja.

         Na sequência do delírio, Rui cantava intermináveis hinos, em casa, na rua, na igreja. E não só cantava, escrevia-os. E não só hinos, como salmos e versos religiosos da mais variada métrica.

         Passados dias, semanas, meses nessa prática de asceta, Ana Souto enviava-lhe embaixadas. Aparecesse, fosse dizer umas poesias, alegrar a casa. Ele inventava doenças, viagens, afazeres muitos e inadiáveis. A Prefeitura, onde trabalhava, não lhe dava um dia de folga. Vida de cachorro!

         Na verdade, nem ia trabalhar. Finda a fase de beato, desterrava-se em sítios de parentes ou continuava em prisão domiciliar. Quando ressurgia, gordo e cheio de novidades, apresentava uma das duas explicações: viajara ou estivera doente. Preferia, no entanto, as viagens, os lugares mais exóticos do mundo. Na terra dos anões, por exemplo...

         Apesar disso, nunca o prefeito o censurava. No máximo, esperava uma explicação razoável. E o rol das doenças de Rui não parava de crescer. A primeira fora caxumba. Por causa dela quase não pôde comemorar a morte de Stalin.

         Simples amanuense, passava os dias datilografando ofícios e carimbando documentos. Emprego arranjado pelo comendador Jeremias. Para pagar votos conseguidos pelo pai de Rui. Além do mais, o “menino” tinha estudos, quase chegara a padre. Recém saído do seminário.

         Com o tempo, novas tarefas lhe foram impostas. De amanuense passou a assessor. Dos ofícios chegou aos discursos, aos relatórios. E tinha estilo – diziam.

         Não demorou, tornou-se intelectual, poeta. Deixou crescerem bigode e cabeleira, arranjou roupas mais decentes, passou a carregar debaixo do braço sempre um livro diferente.

         Para completar a figura, deu para beber. Poeta de respeito devia viver na boêmia. Logo, porém, mudou de ideia. Os mais velhos não gostavam de bebarrões. E passou a beber com moderação, quase nada. Para não cair aos pés dos postes e não causar escândalos. No entanto, bastava uma cerveja e se punha a discursar. Sempre em defesa da moral burguesa e cristã, do ideário político do comendador, do lindo pendão da esperança...

         A afeição de Jeremias por Rui levou-o a abrir as portas de seu jornal ao jovem intelectual. E mensalmente A verdade trazia versos, crônicas e artigos do ex-seminarista.

         Ler tornou-se um vício para Rui. Aos vinte anos já havia decorado meia Bíblia, duzentos sonetos parnasianos, uma infinidade de salmos e orações. Preso nessa babel, às vezes rezava apaixonados versos de Castro Alves. Outras vezes, bêbado, misturava o Pai-Nosso a versos de Casemiro de Abreu.

         Gostava também Rui de jornais e revistas. Mesmo velhos. A morte de Stalin frequentou suas conversas até os anos 70. Sempre calcado na notícia que leu num jornal de 1953.

         Sem jornal, revista ou livro, não ia à latrina. Sem eles, nem sequer conseguia defecar. Prisão-de-ventre durante dias. Em compensação, um salmo longo lhe proporcionava a melhor das evacuações. Chegava a dar louvores a Deus, aos berros.

         Outra mania de Rui: narrar num caderno seus sonhos noturnos. Espécie de diário do inconsciente. Acordava, corria à escrivaninha e se punha a escrever. Se ocorria esquecer trechos do sonho, inventava-os.

         Alguns dos sonhos se repetiam sempre. Como aquele em que Cândida, ainda menina, fugia para o campo e se perdia no mato.

         Nada irritava tanto Rui, afora esquecer seus sonhos, do que sentir quebrada sua rotina. Como não sair de casa após o jantar. Ou deitar-se por volta das 23 horas. Quando bebia ou visitava o cabaré de Ana – exceções em suas noites – sentia-se transtornado. Toda a rotina dos dias subsequentes se quebrava: não conseguia ler na latrina, adoecia, deixava de ir à Prefeitura...

         Rotineiramente jantava à hora do ângelus, perfumava-se, trocava de roupa e saía. Às segundas ia direto a casas onde houvesse moças. Sentados à calçada, lia ou recitava versos seus ou de outros. Sempre poesias líricas. Às terças procurava amigos mais velhos, para falar de política. Às quartas jogava bilhar. Às quintas percorria as ruas da cidade, a passo lento. Às sextas visitava parentes. Aos sábados vestia o terno de linho branco e sumia. Uns diziam que ia namorar, porém nunca se disse o nome da moça. Outros falavam de encantamento – Rui virava lobisomem. Aos domingos se dedicava a Deus: participava de terços, novenas etc. Se nada disso acontecesse em Palma, circundava a igreja matriz até alta noite.

***

         Rui sempre foi de poucas amizades. Mesmo quando mais jovem. Mesmo ao tempo de colégio. Contavam-se nos dedos. E os anos se encarregaram de afastar dele aqueles poucos amigos. Um morreu, outro foi embora de Palma, fulano constituiu família, e assim por diante.

         Súbito sentiu-se só. Os pais mortos, e sumidos os irmãos e amigos de infância e adolescência. Ninguém com quem conversar. A não ser os desconhecidos ou antigos desafetos.

         Apegou-se, então, a pessoas como o comendador Jeremias, o padre Divino e eu. Pessoas socialmente importantes: o chefe político, o chefe religioso, o chefe da lei.

         Nem sei como tudo começou. Talvez num julgamento de réu sem advogado. Haviam me falado de certa eloquência, de alguma leitura, de umas crônicas do jovem José de Deus, então rebatizado para Rui de Alencar. Em conversa com o comendador, confirmaram-se os predicados do rapaz.

         Vieram as primeiras audiências. Nomeado defensor de réus pobres, mostrou algumas aptidões. Porém, desconhecia leis e doutrinas jurídicas. Mesmo assim, nossa rabulice não podia exigir nada além do palavreado de Rui.

         Por uns tempos chamaram-no de Doutor Rui. E muitos até acreditavam tratar-se do famoso orador baiano. Outros, embasbacados, diziam: parece um padre. E realmente suas defesas orais lembravam sermões.

         Rui quase chegou a padre. Pela vontade de D. Maria das Dores, o filho seria um apóstolo de Cristo. Não por promessa, apesar de muito carola. O rapazinho, porém, cedo demonstrou falta de vocação para o sacerdócio. Aquela vida de recluso não o cativava. E, mal lhe nasciam pelos na cara, regressou ao lar materno. Voltou sombrio, solene e sábio. Falava com desembaraço e escrevia como ninguém na cidade. Até mesmo poesia. E logo o chamaram de poeta. Às vezes de padrezinho.

         Nos quatro anos passados junto aos jesuítas, leu quase tudo, exceto romances realistas e naturalistas. E escreveu os primeiros versos. Chegou a receber elogios dos padres pelo poema “Desembarque na Normandia”. E contava apenas 12 anos de idade.

         Às vésperas de deixar o seminário, soube do assassinato de Gandhi. E perpetrou um soneto, cujo primeiro quarteto dizia:

         O grande Gandhi – luminoso guia
         da paz na Terra – que se foi agora,
         criou no Ganges longo a utopia
         que o Ocidente nega, enquanto adora.


         Não podendo estudar junto às normalistas e não querendo transferir-se para cidade maior, onde pudesse cursar o científico ou o clássico, abandonou os estudos. Não, porém, as letras, os versos. E logo todos o chamavam de poeta. Inclusive os comerciantes. E era como se o chamassem de louco, vagabundo, joão-ninguém.

         Apesar de tudo, Rui se sentia poeta mesmo. Sobretudo quando outros rapazes o procuravam para mostrar-lhe seus versos. Sentia-se o mestre deles.

         Na verdade, Rui conhecia toda a poesia brasileira. Pelo menos até os princípios do século XX. E tentava imitar ora Castro Alves, ora Raimundo Correia. Para mim não passou de um parnasiano retardado e sem talento.

         Assim mesmo, elegeram-no o príncipe dos poetas de Palma. Por maioria absolutíssima. O segundo colocado recebeu apenas três votos e havia escrito até então somente algumas quadrinhas.

         Toda a cidade participou da eleição. Como se escolhesse prefeito e vereadores.

         Surgia o mito Rui.

         A partir de então alguns rapazes passaram a bajulá-lo e imitá-lo. Até no modo de andar, nos gestos mais comuns, no jeito de ser.

         Dezenas de mocinhas se apaixonaram por ele. Menos Cândida.

         E faltava a Rui exatamente isto – o amor de Cândida. Além de outro sonho literário: publicar livros e fundar uma academia de letras em Palma. Tornar-se um pequenino Machado. Um Machadinho de Assis.

         Para realizar mais este sonho, contava ele com o incentivo do comendador Jeremias. Sim, continuasse a escrever. O primeiro livro logo seria editado. Porém, o velho morreu antes do esperado. Em consequência, o jornal também deixou de existir. Assim mesmo, Rui continuou a escrever. Por algum tempo mais. Até perder completamente o interesse pela poesia e dar por encerrada a carreira de poeta.

         Apesar disso, parte de sua obra sobreviveu a esta drástica decisão. É o caso da “Ode à cabra”, recitada em lares e praças, bares e becos.

         Orgulhoso desse feito, planejou uma ode ao bode. No entanto, não foi além dos três primeiros versos. Ficou num elogio aos chifres.

O melhor de Rui nunca foi publicado. Trata-se de uma quadra biográfica, cujo original ainda guardo:

         Se eu fosse Rui de Alenca
         e não de Alencar o Rui,
         era como se fosse avenca
         – aquilo que nunca fui.


         Rui também gostava de paródias. Um de seus sonetos começava assim:

         Arma minha viril que te partiram
         qual seda em festa no sertão mais quente,
         repousa lá no céu de minha gente
         e viva eu cá no chão dos que mentiram.

         Embora lesse desde os tempos de seminário, Rui passou a ler muito mais após o desaparecimento do jornal do comendador. E como não houvesse livraria e biblioteca públicas em Palma, poucas eram suas chances de ler. Na verdade, tirante a biblioteca do colégio dos salesianos, só duas casas abrigavam livros: a minha e a do comendador. Salvo algum clássico que me restou dos tempos de estudante, só havia em minha estante literatura jurídica. Assim mesmo, Rui devorou tudo.

         Dos padres e de Jeremias leu vidas de santos, missais, alguns filósofos e uma enciclopédia.

         Quando leu tudo, ainda andava na casa dos vinte anos. Viciado, apegou-se a jornais e revistas. Sempre com muito atraso. Alguns bodegueiros lhe vendiam ou davam restos de periódicos. Em algumas bodegas desfrutava o direito de escolher o que levar. Gato doméstico à caça de ratos.

         De tanto ler, Rui estragou a visão. Quase não enxergava nada. E passou a usar óculos de grossas lentes.

         Assim como a morte do comendador matou em Rui a vontade de escrever, propiciando-lhe o vício da leitura, este causou-lhe miopia e, em consequência, despertou-lhe o vício da fala. Tornou-se orador.

         Se me fosse lícito elaborar uma análise psicanalítica do rapaz, eu diria

         À falta de ouvintes, Rui falava aos ventos, às estrelas, à lua. Até descobrir o silêncio dos sepulcros. Todas as noites refugiava-se no cemitério e se punha a pregar aos mortos.

         Descoberta sua nova mania, aconselhou-o padre Divino a fazer discursos fúnebres à hora dos funerais. Agradaria às famílias enlutadas e possivelmente aos recém-falecidos, sem precisar se expor aos fantasmas noturnos.

         Nascia o primeiro necrologista de Palma.

         Mal acordava, saía à rua. Queria saber das novidades. Que novidades? Se havia defunto novo na cidade. Se não, acabrunhava-se e até perdia a vontade de trabalhar. Caso contrário, corria à casa do morto para os pêsames e para colher informações biográficas sobre o cujo. Depois, à beira do túmulo, emocionado, choroso, tristíssimo, pronunciava o mais belo discurso fúnebre de sua vida.

         Afastado das lides poéticas, aproveitava as exéquias para enxertar nos discursos seus versos mais piegas. Os parentes chorosos do morto só faltavam morrer de emoção.

         O próprio orador não se continha e chorava feito um desgraçado. Mesmo não conhecendo o falecido e sua família.

         Obcecado pela morte (dos outros), Rui amanhecia contando sonhos terríveis: acidentes, assassinatos, suicídios... Talvez pretexto para falar de morte. “Sonhei que Jonas morreu afogado no Rio das Lajes. Será verdade?”

         Terminou amigo do mestre carpina. Vez por outra visitava a carpintaria de Seu José. Admirava a arte daquele homem rústico. Só um artista podia fazer móveis tão belos. Especialmente caixões. Que magníficos ataúdes!

         Passava horas alisando a tampa, pegando nas alças. Sim, logo estaria ajudando a carregar aquele precioso esquife. “Tomara que seja defunto maneiro.”

         Talvez essa fosse a esquisitice mais repelente de Rui. Porque admirar outras terras, o estrangeiro, ser quase um xenófilo não me parece grande defeito. Pois o poeta conhecia toda a geografia política da Terra. Cidades, montanhas, rios, tudo ele conhecia. Falava com desembaraço dos lagos Baikal e Malavi, do rio Murray, do Pântano de Kutch, de Odessa, Addis Abeba, os cafundós de judas. Porém, isso não significava xenofilia. Pois conhecia também o Brasil, desde as maiores cidades até os sertões mais desertos, a Amazônia, o Pantanal. Falava de São Paulo, suas ruas, seus bairros, como se falasse de Palma.

         Muita gente acreditava ter ele viajado pelo mundo. Pois, quando reaparecia após prolongadas ausências, dizia ter viajado. E contava casos vividos ou presenciados em Fortaleza, Manaus, Livramento etc.

         Tudo mentira. Nunca saiu de Palma. O resto do Brasil e do mundo ele conhecia de livros, revistas, jornais, mapas, cartões postais e toda sorte de informativos.

         Pobre homem! Sim, Rui não passou de um sonhador e um derrotado. Sonhou ser poeta. Nunca escreveu poesia de verdade. Sonhou viagens. Nunca foi além dos sítios de Palma. Sonhou ser vereador, prefeito, deputado. Talvez governador. Talvez Presidente da República.

         Candidatou-se diversas vezes à Câmara Municipal. Fazia comícios, redigia e distribuía manifestos, criava slogans estapafúrdios, prometia mundos e fundos. Um aeroporto. Voos diários para todas as capitais do país e até para o exterior. Os amigos e vizinhos batiam palmas, gritavam “está eleito”.

         Concluídas as apurações, revoltava-se. Não conseguia sequer uma  suplência.

         Talvez fosse sua a culpa pelo fracasso. Precisava então mudar de tática. Deixar o local e atingir o nacional e mesmo o universal. Em vez de chafarizes, jardins, aeroportos – a pátria forte, o heroísmo, uma ideologia.

         E apegou-se ao integralismo. Andava de camisa verde, colava retratos de Plínio Salgado, explicava o significado do sigma.

         Com a derrota de seu candidato, virou janista. Quando Jango assumiu, organizou uma passeata em defesa da liberdade, contra o comunismo.

         Convidou-me a participar da marcha. Recusei. Sendo juiz, não tinha o direito de estar ao lado deles. Seria estar contra a lei. Embora não simpatizasse nada com Jango e seus aliados.

         A passeata percorreu as ruas de Palma. À frente iam Rui, o comendador, padre Divino. A seguir, beatas e carolas. Carregavam estandartes e bandeiras de todas as cores e desenhos. Parecia uma palhaçada.

         A última campanha eleitoral de Rui deu-lhe meia dúzia de votos. Dizia-se democrata. Prometia a mais autêntica das democracias. Se eleito, faria da pesquisa de opinião pública a ponto de partida para a elaboração das leis. Se a maioria quisesse mudar o nome da cidade, Palma teria outro nome.

         Seriam feitas perguntas que poderiam mudar os rumos da Ciência: se o Brasil era mais populoso que a China; se a Terra era maior que o Sol; se o homem havia pisado o solo lunar...

         O povo decidiria tudo.

                                                        ***

         José de Deus Evangelista. Esse o nome oficial de Rui de Alencar. Imposto por D. Maria das Dores, sua mãe. A contragosto de Seu Augusto. Para ele o nome do filho seria Isidoro ou Artur. Em homenagem à Revolução Constitucionalista, de que era fervoroso adepto. Por inspiração do comendador Jeremias Coqueiro, seu chefe. Desde aqueles belicosos tempos.

         Três vezes prefeito, dono de inúmeras casas, sítios, tipografia, jornal, Jeremias mandava e desmandava em Palma. O vigário, o delegado e o juiz eram por ele indicados. Quando a indicação não partia dele, o nome do indicado precisava do seu aval. Minha nomeação demorou a sair exatamente porque o comendador não simpatizou com meu currículo. Na juventude fui poeta e socialista.

O tormento demorou. Só após muitas ponderações resolveu dizer sim. No entanto, outro tormento sobreveio. Porque interminável. Passei a ter sonhos horríveis. O comendador seduzia Cândida, violentava-a. Eu acordava desesperado. Águeda se assustava, queria saber de meus pesadelos. Eu calava, mentia, falava de monstros. Ela culpava a bebida. Sim, eu gostava de cerveja e cachacinha. Para suportar aquela vida apagada numa cidade de dez mil idiotas. E ainda ter de prestar contas de meus atos a Jeremias. Não só isso – decidir segundo a vontade dele. Só me faltou mandar prender vítimas.

         À noite o comendador virava bicho, lobisomem, fauno, o diabo. Às vezes se confundia com o delegado. Outro sem-vergonha. No entanto, Cândida gostava do tenente. Águeda me relatou as confidências que nossa filha lhe fizera. Vivia sonhando com o homem. E não conseguia se livrar desses sonhos. Mesmo sabendo de seu estado civil. E pior: de sua extrema rudeza, de seu caráter de bandido, de seus hábitos de mulherengo.

         Rui nunca soube desses sonhos de Cândida. Se tivesse sabido, como teria reagido? Talvez a matasse, se é que não a matou.

         E o que sonhava Rui, vivendo tão triste, tão solitário?

         Apesar de ser um dos mais velhos da família, terminou ficando só com os pais. Os irmãos mais novos foram aos poucos saindo de casa, por se casarem ou buscarem outras cidades. Dois deles faleceram ainda jovens.

         O velho Evangelista morreu quando gargalhava. Assistia a uma novela de televisão – O Bem-Amado.

         Viviam os dois em constantes rusgas. O pai chamava o filho de preguiçoso e indolente. 40 anos e ainda sem família, sem casa própria, sem nada, a não ser o empreguinho na prefeitura.

         Mesmo assim, Rui chorou muito e quase conseguiu escrever uma elegia para o pai.

         Restavam a mãe e Totonha, a criada negra que tudo fazia na imensa casa. Desde os tempos do casamento de Augusto e Maria.

         O pior aconteceu três anos depois – a mãezinha também se foi.

         Macambúzio, ao voltar do enterro encontrou a velha criada morta.

         Definitivamente só, pensou em vender a casa, os móveis antigos, a prataria, e fugir para São Paulo, onde moravam alguns irmãos. Porém, o rádio anunciou a explosão de uma bomba na Rua Isidoro Dias Lopes. Lembrou-se do pai e chorou mais uma vez.

                                                        ***

         Lembro-me bem do nascimento de Cândida. Tempos difíceis, de seca e fome. Havia, porém, alegria no país. Na Suécia nossa seleção de futebol ganhou a Taça. Eufórico, Rui declamava nas esquinas versos de louvor a Garrincha, Didi, Pelé, cada um dos campeões. Eu também me sentia feliz. Nunca tinha sido pai. E o bebê parecia tão cândido! No entanto, viveu tão pouco minha filha!

         Ou não morreu de verdade? Terá sido apenas um sonho ruim? Terei imaginado aquela morte horrível? Ou tudo inventei?

         Não, lembro-me com nitidez do velório, das rezas, do padre Divino, da tristeza de todos. Depois o caixão sendo conduzido ao cemitério. Eu segurando uma das alças. Era de tarde. Rui chorava. Parecia desesperado. Em dado momento tomou a palavra e pôs-se a discursar:

         Ó cândida menina de meus sonhos,
         ó tu que para a eternidade partes...


         Naquele momento eu ainda não suspeitava dele. E o aplaudi.

         Agora não sei mais o que pensar, dizer.

         Talvez esteja enlouquecendo. Ou indo ao encontro dela – a Morte.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo, contos. Brasília: Códice, 1998.

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