quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A. A. de Assis (Jardim do Imperador)


O jardim foi sempre uma espécie de sala vip da cidade, o espaço nobre onde tudo acontecia. O footing na calçada em torno; o coreto ao centro – palco para retretas, palanque para comícios, altar para missas campais; ambulantes vendendo sorvete, pipoca, mariola; crianças brincando de dia; namorados brincando de noite.

Segundo as atas, foi construído ainda na época da monarquia, em honra de Dom Pedro II, que naquele chão pisara. O nome aliás atesta-o: Jardim do Imperador, que edil nenhum até hoje ousou mudar. O povo diz às vezes “largo” ou “praça”, mas o nome oficial, de batismo, é “jardim” mesmo: Jardim do Imperador, orgulho do lugar.

O problema era a indisciplina dos passantes. Em vez de caminhar pelas trilhas cuidadosamente mantidas e varridas pela prefeitura, insistiam em passar por cima dos canteiros. Daí que o chamado “coração da urbe” precisou ser várias vezes reconstruído. Cada novo prefeito, logo que assumia, redesenhava o recanto, replantava a grama, renovava as flores, repodava as árvores. Houve um que chamou arquitetos da capital para orientar a reforma, entretanto infrutiferamente.

Campanhas nas escolas e através da rádio local, sermões do padre e do pastor, panfletos apelando à consciência da população, nada surtia efeito, sequer a ameaça de multas. Os passantes teimosamente continuavam passando por sobre defeituosos atalhos.  Só Seu Chiquinho entendia e explicava o fenômeno: “Falta de democracia acaba nisso. Me elejam prefeito e resolvo o caso”.

Até que um dia Seu Chiquinho enfim prefeito se fez. Primeira providência, em cumprimento da promessa: desmanchou o jardim. Deixou intatos somente o coreto e as árvores; no demais mandou passar o arado e com enorme gramado cobriu a área inteira.

Em poucas semanas os passantes, no seu contínuo vaivém, fizeram novas trilhas, só que dessa vez a seu jeito, sem desenho algum traçado em gabinetes. “Democracia é assim: o povo criando seus próprios caminhos”, confirmava o sábio burgomestre, ditando os lances para a conclusão da obra: “Agora resta apenas calçar e retocar com o devido capricho as passarelas que o povo marcou, depois fazer os canteiros ao lado... e pronto, estará resolvido o problema. As linhas poderão até parecer um pouco tortas, porém o importante é que foram definidas pelos donos delas, os cidadãos passantes, na mais absoluta liberdade. E é isso que de fato interessa”.

Seu Chiquinho estava certo: nunca mais indisciplinado algum pisou na grama nem chutou as flores, bastando hoje aos jardineiros aguar as plantinhas para conservá-las viçosas. “Democracia é assim”, insistia ele: “Quando o povo é que faz a lei, a lei se cumpre. Se o povo é que abre a trilha, por ela caminha o povo. Não há ninguém que obrigue ninguém a seguir sem vontade um rumo”.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor

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