terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 1


A Lua, em casto receio,
quando se banha ao luar,
esconde seu alvo seio
dos olhos verdes do mar.

A mulher tem ao nascer
um doce-amargo destino:
amargo pelo sofrer
e doce por ser divino.

A natureza que espelha
nudez ao clarão do dia,
veste um manto e se ajoelha
à hora da Ave-Maria!

Cancioneiro do luar,
canta o céu! Ninguém desata
a lua que vês chorar
suas lágrimas de prata.

Com o vento o tempo levava
o Amor que, em vão, lhe pedia:
"Espera um pouco! Eu amava".
Sem tempo o tempo corria!

Crê na vida. Vê risonho
todo o amor que tens a dar.
Não é por morrer um sonho
que se deixa de sonhar.

Deus é a alegria do triste.
Deus é a riqueza do pobre.
Deus está sempre onde existe
um gesto sublime e nobre.

Do pensador, do profeta,
nasce o direito sagrado.
Mas, só na voz do poeta
o Amor é glorificado!

Envelhecer sem temores…
ingratidões esquecer...
amar crianças e flores,
a isso eu chamo: Viver!

Eu comparo a solidão
àquele triste abandono
do olhar mortiço de um cão
chorando a ausência do dono.

Meu coração eu prendi
num elo, juntinho ao teu.
E nunca mais consegui
saber, dos dois, qual o meu.

Não peço glórias incríveis,
em riquezas não me atenho.
Só peço a Deus: "não me prives
das poucas coisas que tenho".

Nenhuma glória te cabe,
a própria dor te invalida,
se teu coração não sabe
que o amor é tudo na vida.

No mundo cheio de engôdos,
numa revolta sem fim,
fugi de tudo — de todos,
não pude fugir de mim.

O amor e as ondas não têm
os seus destinos iguais.
Ondas que vão, logo vêm,
amor que vai — não vem mais.

O poeta acende a chama
nas cinzas de um chão tristonho.
Vê gemas na própria lama,
o garimpeiro do Sonho.
* * * * * *
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente".
(Fernando Pessoa)


O trovador, na verdade,
finge ver o que não viu;
e chega a sentir saudade
do amor que nunca sentiu!
* * * * * * * *
Perdoa àquele que erra,
mostra o caminho ao incréu.
Porque começa na terra
a escada que leva ao céu!

Procurei no mais profundo
mistério humano ou divino:
não encontrei nenhum mundo
que me explicasse o Destino!

Saudade — veneno lento
que se bebe a gotejar.
Não mata num só momento,
vai matando devagar…

Se não podes ser a rosa,
se teu viço não é eterno,
sê a camélia, tão bondosa,
que floresce até no inverno.

Ser poeta é olhar as flores,
na velhice ser criança.
Amar — já não tendo amores,
esperar — sem esperança.

Só Deus sabe em que consiste
o nosso amanhã. Contudo,
o mundo seria triste
se a gente soubesse tudo!

Toda a angústia do universo
em seu mistério profundo,
não vale a glória de um verso
de amor, no Livro do Mundo.

Trovador que à Lua canta,
canta sempre — é bom cantar.
Pois é cantando que encanta,
cancioneiro do luar!

Trovas celestes. Aquelas
que o sentimento nos traz.
As mais perfeitas, mais belas,
a gente sonha — não faz!

Uma criança chorando...
um riso na madrugada...
alguém que passa cantando,
— a vida é isso — mais nada!

Uma trova pequenina
também diz tudo o que quer.
É o sonho de uma menina
num coração de mulher.

Um olhar que nos agrada,
um sorriso diferente,
uma coisinha de nada
muda o destino da gente!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

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