sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Ana Pismel (Tributo à Solidão) - Lançamento

Primeiro trabalho literário, o livro "Tributo à Solidão". A poesia gótica é muito rica e fascinante, esse livro, em edição eletrônica, se fez de poemas que escreveu há dois anos.

Para obter a obra, contato pelo e-mail paulacattai@hotmail.com, na resposta, serão enviadas as instruções de como efetuar o pagamento. O preço é R$ 10,00,, e a forma de pagamento é extremamente simples, bastando um depósito bancário.
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Sobre a autora
Ana P. C. Pismel nasceu na cidade de Sorocaba, São Paulo, em Novembro de 1987. Atualmente, estuda Filosofia na Universidade de São Paulo, USP, e é professora de Redação. Faz parte da Casa do Escritor da Região de Sorocaba - CERES, é autora do livro de poesia Tributo à Solidão (Câmara Brasileira do Jovem Escritor, 2008) e participou em co-autoria da antologia Noctâmbulos - Contos de Terror (Editora Andross, 2007). Publica seus textos (contos, crônicas e poemas) no Recanto das Letras, assim como em seu próprio site.

Fontes:
http://www.sorocaba.com.br/acontece
http://www.anapismel.ws/
http://albusanguis.spaces.live.com/

Ana Paula Cattai Pismel (Poemas Avulsos)

Elegia de uma alma errante

“Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce
Vivem só, nele, os elementos broncos,
Das ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se”
Augusto dos Anjos

Quem sou eu?
Uma alma obscura que vaga sem rumo pelas alamedas da escuridão...
Um ser infeliz, errando em meio a trevas em busca de algo que lhe devolva a paz...
Uma ínfima sombra agora...
Um anjo triste que chora, a procura de alguém que o possa consolar...
Um reflexo do que poderia ter sido e não foi...
Uma alma condenada a oferecer sua ausência aos que tanto ama...

Eu, meus amigos
Sou a desgraça
A solidão
A tristeza...
E – embora você possa se recusar a crer
Eu vivo em seu interior...
********************
Dissipação

Estas palavras existirão plenas
Por um segundo apenas
Contendo a significância efêmera
Enquanto alguma alma solitária estiver a ler...
Permanecendo pelo resto do tempo
O esboço de um risco no espaço
Traçado por signos em dissipação

O lido antes já evaporou
Espalhando sua obscura nebulosa
Por entre as angústias da mente que os decifrou...

O escrito existe apenas quando lido
As palavras, nem isso
Com exceção de vagas marcas
(profundas, às vezes)
Desaparecem no ar, carregadas pelo vento

Palavras: pronunciadas ou escritas
Se escrevem, são ditas
Passam por mentes, dissipam-se
E são depois esquecidas.

Fonte:
http://albusanguis.spaces.live.com/

Exemplares do Rodamundinho 2008 estão à venda.

A antologia Rodamundinho, lançada durante a 4ª Semana do Escritor de Sorocaba, devido a pedido de amigos e familiares dos participantes, continua a venda. O Rodamundinho é uma coletânea infanto-juvenil que reúne 25 autores de até 15 anos de idade. É uma seleção de textos com poesias, contos e crônicas, sobre amor, natureza, escola, família, viagens, entre outros.
mais: com Douglas Lara http://www.sorocaba.com.br/acontece

Fonte:
Douglas Lara

2a. Coletânea da Sorocultinha

Hoje, 6ª feira, dia 12 de setembro, às 14h na Biblioteca Municipal de Sorocaba.
.
O Grupo Sorocult com seu "Projeto Leitura Responsável", através da sua "Maratona Literária Infantil", convida a todos a prestigiarem seu evento para entrega dos livros infantis da "2ª Coletânea da Sorocultinha" (lançados em 26/07/08) e lanchinhos (presente da empresa "Arthur Klink Metalúrgica" www.arthurklink.com.br) para cerca de 100 crianças de 3 entidades assistenciais de Sorocaba:

Fonte:
Douglas Lara. In
http://www.sorocaba.com.br/acontece

Literatura de Cordel na TV Cultura

O programa “Entrelinhas”, da TV Cultura, desvenda a literatura de cordel

Domingo, 14 de Setembro de 2008 às 21h30

A literatura de cordel ganha destaque no programa Entrelinhas, apresentado por Paula Picarelli na TV Cultura, neste domingo (14/9), a partir das 21h30.

O programa passeia pela arte do cordel tradicional e retrata como a poesia popular é vista nos dias atuais. Uma das matérias traz a entrevista com Manoel Monteiro, um dos maiores cordelistas do país e que teve seu primeiro cordel publicado em Campina Grande(PB), em 1953.

Além do bate-papo com Monteiro, a atração mostra como Lirinha, vocalista do grupo Cordel do Fogo Encantado, alia o cordel ao pop. O Entrelinhas também apresenta uma matéria com Fernando Vilela, artista plástico, ilustrador e escritor de livros infanto-juvenis e do premiado “Lampião & Lancelote”.

Mais informações sobre a Literatura de Cordel postadas no Blog em
29 de dezembro = Literatura de Cordel
27 de junho = História do Cordel
29 de junho = Métricas do Cordel
19 de agosto =Cordel: do sertão nordestino à contemporaneidade da Internet
19 de agosto = Chegada de Lampião no Céu

Fontes:
Colaboração de Douglas Lara. In
http://www.sorocaba.com.br/acontece
Imagem: http://www.lendo.org

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Zélia Simeão Poplade

Quando a criança ajoelhada
imita a mãe a rezar,
Deus, lá da Mansão Sagrada,
a ambas vem abençoar.
*********
Amor não é só carinho,
que nos dá ventura imensa.
Amar é dar-se inteirinho...
sem exigir recompensa!
*********
Depois de tanto sofrer,
vendo o filho numa cruz,
Maria, enfim, foi viver
na Glória, junto a Jesus
*********
No sorriso da criança,
mesmo da que vive ao léu,
há um mundo de esperança
e u’a mensagem do céu.
*********
Chega a tarde, hora da prece,
de lá do céu, entre os lírios,
a Mãe de Deus sempre desce
para abençoar seus filhos.
*********
Perdoar uma ingratidão,
que alguém nos fez padecer,
é bem difícil, irmão,
mas, difícil de esquecer.
*********
Nem vou mais dissimular,
(porque todo mundo vê)
que eu só vivo pra te amar
que eu sou louco por você!
*********
Jamais negue alguma ajuda
ao pobre, sabe por quê?
Às vezes a sorte muda...
quem vai pedir é você.
*********
A deficiência não deve
ser olhada com desdém...
Só o louco é que se atreve
a zombar de quem a tem.
*********
Compreende a dor do “ceguinho”,
que a deficiência marcou...
Não lhe negues o carinho
que a chorar te suplicou
*********
Sobre a Autora
Filha de Joaquim Simeão e Adamínia Simeão, nasceu em Curitiba, a 6 de fevereiro.

Professora jubilada, integrante do Centro de Letras de Paranaguá, Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, Centro de Letras do Paraná, União Brasileira dos Trovadores e outras entidades congêneres do Paraná e outras regiões.

Vice presidente do Conselho Municipal de Paranaguá e presidente da UBT – Paranaguá.

Escritora, poeta, jornalista e radialista, recebeu diversas medalhas em concursos de poesia.

Fonte:
TABORDA, Vasco José e WOCZIKOSKY, Orlando (orgs). Antologia de Trovadores do Paraná. Curitiba: O Formigueiro – Instituto Assistencial de Autores do Paraná, 1984.

Mário Quintana (1906 - 1994)

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"


Mario de Miranda Quintana nasceu na cidade de Alegrete (RS), no dia 30 de julho de 1906, quarto filho de Celso de Oliveira Quintana, farmacêutico, e de D. Virgínia de Miranda Quintana. Com 7 anos, auxiliado pelos pais, aprende a ler tendo como cartilha o jornal Correio do Povo. Seus pais ensinam-lhe, também, rudimentos de francês.

No ano de 1914 inicia seus estudos na Escola Elementar Mista de Dona Mimi Contino.

Em 1915, ainda em Alegrete, freqüentou a escola do mestre português Antônio Cabral Beirão, onde conclui o curso primário. Nessa época trabalhou na farmácia da família. Foi matriculado no Colégio Militar de Porto Alegre, em regime de internato, no ano de 1919. Começa a produzir seus primeiros trabalhos, que são publicados na revista Hyloea, órgão da Sociedade Cívica e Literária dos alunos do Colégio.

Por motivos de saúde, em 1924 deixa o Colégio Militar. Emprega-se na Livraria do Globo, onde trabalha por três meses com Mansueto Bernardi. A Livraria era uma editora de renome nacional.

No ano seguinte, 1925, retorna a Alegrete e passa a trabalhar na farmácia de seu pai. No ano seguinte sua mãe falece. Seu conto, A Sétima Personagem, é premiado em concurso promovido pelo jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre.

O pai de Quintana falece em 1927. A revista Para Todos, do Rio de Janeiro, publica um poema de sua autoria, por iniciativa do cronista Álvaro Moreyra, diretor da citada publicação.

Em 1929, começa a trabalhar na redação do diário O Estado do Rio Grande, que era dirigida por Raul Pilla. No ano seguinte a Revista do Globo e o Correio do Povo publicam seus poemas.

Vem, em 1930, por seis meses, para o Rio de Janeiro, entusiasmado com a revolução liderada por Getúlio Vargas, também gaúcho, como voluntário do Sétimo Batalhão de Caçadores de Porto Alegre.

Volta a Porto Alegre, em 1931, e à redação de O Estado do Rio Grande.

O ano de 1934 marca a primeira publicação de uma tradução de sua autoria: Palavras e Sangue, de Giovanni Papini. Começa a traduzir para a Editora Globo obras de diversos escritores estrangeiros: Fred Marsyat, Charles Morgan, Rosamond Lehman, Lin Yutang, Proust, Voltaire, Virginia Woolf, Papini, Maupassant, dentre outros. O poeta deu uma imensa colaboração para que obras como o denso Em Busca do Tempo Perdido, do francês Marcel Proust, fossem lidas pelos brasileiros que não dominavam a língua francesa.

Retorna à Livraria do Globo, onde trabalha sob a direção de Érico Veríssimo, em 1936.

Em 1939, Monteiro Lobato lê doze quartetos de Quintana na revista lbirapuitan, de Alegrete, e escreve-lhe encomendando um livro. Com o título Espelho Mágico o livro vem a ser publicado em 1951, pela Editora Globo.

A primeira edição de seu livro A Rua dos Cataventos, é lançada em 1940 pela Editora Globo. Obtém ótima repercussão e seus sonetos passam a figurar em livros escolares e antologias.

Em 1943, começa a publicar o Do Caderno H, espaço diário na Revista Província de São Pedro.

Canções, seu segundo livro de poemas, é lançado em 1946 pela Editora Globo. O livro traz ilustrações de Noêmia.

Lança, em 1948, Sapato Florido, poesia e prosa, também editado pela Globo. Nesse mesmo ano é publicado O Batalhão de Letras, pela mesma editora.

Seu quinto livro, O Aprendiz de Feiticeiro, versos, de 1950, é uma modesta plaquete que, no entanto, obtém grande repercussão nos meios literários. Foi publicado pela Editora Fronteira, de Porto Alegre.

Em 1951 é publicado, pela Editora Globo, o livro Espelho Mágico, uma coleção de quartetos, que trazia na orelha comentários de Monteiro Lobato.

Com seu ingresso no Correio do Povo, em 1953, reinicia a publicação de sua coluna diária Do Caderno H (até 1967). Publica, também, Inéditos e Esparsos, pela Editora Cadernos de Extremo Sul - Alegrete (RS).

Em 1962, sob o título Poesias, reúne em um só volume seus livros A Rua dos Cataventos, Canções, Sapato Florido, espelho Mágico e O Aprendiz de Feiticeiro, tendo a primeira edição, pela Globo, sido patrocinada pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul.

Com 60 poemas inéditos, organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, é publicada sua Antologia Poética, em 1966, pela Editora do Autor - Rio de Janeiro. Lançada para comemorar seus 60 anos, em 25 de agosto o poeta é saudado na Academia Brasileira de Letras por Augusto Meyer e Manuel Bandeira, que recita o seguinte poema, de sua autoria, em homenagem a Quintana:

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.


A Antologia Poética recebe em dezembro daquele ano o Prêmio Fernando Chinaglia, por ter sido considerado o melhor livro do ano. Recebe inúmeras homenagens pelos seus 60 anos, inclusive crônica de autoria de Paulo Mendes Campos publicada na revista Manchete no dia 30 de julho.

Preso à sua querida Porto Alegre, mesmo assim Quintana fez excelentes amigos entre os grandes intelectuais da época. Seus trabalhos eram elogiados por Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto, além de Manuel Bandeira. O fato de não ter ocupado uma vaga na Academia Brasileira de Letras só fez aguçar seu conhecido humor e sarcasmo. Perdida a terceira indicação para aquele sodalício, compôs o conhecido

Poeminho do Contra
.
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Prosa e Verso, 1978)

A Câmara de Vereadores da capital do Rio Grande do Sul — Porto Alegre — concede-lhe o título de Cidadão Honorário, em 1967. Passa a publicar Do Caderno H no Caderno de Sábado do Correio do Povo (até 1980).

Em 1968, Quintana é homenageado pela Prefeitura de Alegrete com placa de bronze na praça principal da cidade, onde estão palavras do poeta: "Um engano em bronze, um engano eterno". Falece seu irmão Milton, o mais velho.

1973. Nesse ano o poeta e prosador lançou, pela Editora Globo — Coleção Sagitário — o livro Do Caderno H. Nele estão seus pensamentos sobre poesia e literatura, escritos desde os anos 40, selecionados pelo autor.

Em 1975 publica o poema infanto-juvenil Pé de Pilão, co-edição do Instituto Estadual do Livro com a Editora Garatuja, com introdução de Érico Veríssimo. Obtém extraordinária acolhida pelas crianças.

Quintanares é impresso em 1976, em edição especial, para ser distribuído aos clientes da empresa de publicidade e propaganda MPM. Por ocasião de seus 70 anos, o poeta é alvo de excepcionais homenagens. O Governo do Estado concede-lhe a medalha do Negrinho do Pastoreio — o mais alto galardão estadual. É lançado o seu livro de poemas Apontamentos de História Sobrenatural, pelo Instituto Estadual do Livro e Editora Globo.

A Vaca e o Hipogrifo, segunda seleção de crônicas, é publicado em 1977 pela Editora Garatuja. O autor recebe o Prêmio Pen Club de Poesia Brasileira, pelo seu livro Apontamentos de História Sobrenatural.

Em 1978 falece, aos 83 anos, sua irmã D. Marieta Quintana Leães. Realiza-se o lançamento de Prosa & Verso, antologia para didática, pela Editora Globo. Publica Chew me up slowly, tradução Do Caderno H por Maria da Glória Bordini e Diane Grosklaus para a Editora Globo e Riocell (indústria de papel).

Na Volta da Esquina, coletânea de crônicas que constitui o quarto volume da Coleção RBS, é lançado em 1979, Editora Globo. Objetos Perdidos y Otros Poemas é publicado em Buenos Aires, tradução de Estela dos Santos e organização de Santiago Kovadloff.

Seu novo livro de poemas é publicado pela L&PM Editores - Porto Alegre, em 1980: Esconderijos do Tempo. Recebe, no dia 17 de julho, o Prêmio Machado de Assis conferido pela Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra. Participa, com Cecília Meireles, Henrique Lisboa e Vinicius de Moraes, do sexto volume da coleção didática Para Gostar de Ler, Editora Ática.

Em 1981, participa da Jornada de Literatura Sul Rio-Grandense, uma iniciativa da Universidade de Passo Fundo e Delegacia da Educação do Rio Grande do Sul. Recebe de quase 200 crianças botões de rosa e cravos, em homenagem que lhe é prestada, juntamente com José Guimarães e Deonísio da Silva, pela Câmara de Indústria, Comércio, Agropecuária e Serviços daquela cidade. No Caderno Letras & Livros do Correio do Povo, reinicia a publicação Do Caderno H. Nova Antologia Poética é publicada pela Editora Codecri - Rio de Janeiro.

O autor recebe o título de Doutor Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no dia 29 de outubro de 1982.

É publicado, em 1983, o IV volume da coleção Os Melhores Poemas, que homenageia Mario Quintana, uma seleção de Fausto Cunha para a Global Editora - São Paulo. Na III Festa Nacional do disco, em Canela (RS), é lançado um álbum duplo: Antologia Poética de Mario Quintana, pela gravadora Polygram. Publicação de Lili Inventa o Mundo, Editora Mercado Aberto - Porto Alegre, seleção de Mery Weiss de textos publicado em Letras & Livros e outros livros do autor. Por aprovação unânime da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, o prédio do antigo Hotel Magestic (onde o autor viveu por muitos e muitos anos), tombado como patrimônio histórico do Estado em 1982, passa a denominar-se Casa de Cultura Mário Quintana.

Em 1984 ocorrem os lançamentos de Nariz de Vidro, seleção de textos de Mery Weiss, Editora Moderna - São Paulo, e O Sapo Amarelo, Editora Mercado Aberto - Porto Alegre.

O álbum Quintana dos 8 aos 80 é publicado em 1985, fazendo parte do Relatório da Diretoria da empresa SAMRIG, com texto analítico e pesquisa de Tânia Franco Carvalhal, fotos de Liane Neves e ilustrações de Liana Timm.

Ao completar 80 anos, em 1986, é publicada a coletânea 80 Anos de Poesia, organizada por Tânia Carvalhal, Editora Globo. Recebe o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS) e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Lança Baú de Espantos, pela Editora Globo, uma reunião de 99 poemas inéditos.

Em 1987, são publicados Da Preguiça como Método de Trabalho, Editora Globo, uma coletânea de crônicas publicadas em Do Caderno H, e Preparativos de Viagem, também pela Globo, reflexões do poeta sobre o mundo.

Porta Giratória, pela Editora Globo - Rio de Janeiro, é lançada em 1988, uma reunião de crônicas sobre o cotidiano, o tempo, a infância e a morte.

Em 1989 ocorre o lançamento de A Cor do Invisível pela Editora Globo - Rio de Janeiro. Recebe o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É eleito o Príncipe dos Poetas Brasileiros, entre escritores de todo o Brasil.

Velório sem Defunto, poemas inéditos, é lançado pela Mercado Aberto em 1990.

Em 1992, a editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) reedita, em comemoração aos 50 anos de sua primeira publicação, A Rua dos Cataventos.

Poemas inéditos são publicados no primeiro número da Revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional/Departamento Nacional do Livro, em 1993. Integra a antologia bilíngüe Marco Sul/Sur - Poesia, publicada Editora Tchê!, que reúne a poesia de brasileiros, uruguaios e argentinos. Seu texto Lili Inventa o Mundo montado para o teatro infantil, por Dilmar Messias. Treze de seus poemas são musicados pelo maestro Gil de Rocca Sales, para o recital de canto Coral Quintanares - apresentado pela Madrigal de Porto Alegre no dia 30 de julho (seu aniversário) na Casa de Cultura Mario Quintana.

Alguns de seus textos são publicados na revista literária Liberté - editada em Montreal, Quebec, Canadá - que dedicou seu 211o número à literatura brasileira (junto com Assis Brasil e Moacyr Scliar), em 1994. Publicação de Sapato Furado, pela editora FTD - antologia de poemas e prosas poéticas, infanto - juvenil. Publicação pelo IEL, de Cantando o Imaginário do Poeta, espetáculo musical apresentado no Teatro Bruno Kiefer pelo Coral da Casa de Cultura Mário Quintana, constituído de poemas musicados pelo maestro Adroaldo Cauduro, regente do mesmo Coral.

Falece, em Porto Alegre, no dia 5 de maio de 1994, próximo de seus 87 anos, o poeta e escritor Mario Quintana.

Escreveu Quintana:

"Amigos não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira".

E, brincando com a morte: "A morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos".

Bibliografia:

- A Rua dos Cata-ventos (1940)
- Canções (1946)
- Sapato Florido (1948)
- O Batalhão de Letras (1948)
- O Aprendiz de Feiticeiro (1950)
- Espelho Mágico (1951)
- Inéditos e Esparsos (1953)
- Poesias (1962)
- Antologia Poética (1966)
- Pé de Pilão (1968) - literatura infanto-juvenil
- Caderno H (1973)
- Apontamentos de História Sobrenatural (1976)
- Quintanares (1976) - edição especial para a MPM Propaganda.
- A Vaca e o Hipogrifo (1977)
- Prosa e Verso (1978)
- Na Volta da Esquina (1979)
- Esconderijos do Tempo (1980)
- Nova Antologia Poética (1981)
- Mario Quintana (1982)
- Lili Inventa o Mundo (1983)
- Os melhores poemas de Mario Quintana (1983)
- Nariz de Vidro (1984)
- O Sapato Amarelo (1984) - literatura infanto-juvenil
- Primavera cruza o rio (1985)
- Oitenta anos de poesia (1986)
- Baú de espantos ((1986)
- Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)
- Preparativos de Viagem (1987)
- Porta Giratória (1988)
- A Cor do Invisível (1989)
- Antologia poética de Mario Quintana (1989)
- Velório sem Defunto (1990)
- A Rua dos Cata-ventos (1992) - reedição para os 50 anos da 1a. publicação.
- Sapato Furado (1994)
- Mario Quintana - Poesia completa (2005)
- Quintana de bolso (2006)

Participação em Antologias no Brasil:

- Obras-primas da lírica brasileira (1943)
- Coletânea de poetas sul-rio-grandenses. 1834-1951 - (1952)
- Antologia da poesia brasileira moderna. 1922-1947 - (1953)
- Poesia nossa (1954)
- Antologia poética para a infância e a juventude (1961)
- Antologia da moderna poesia brasileira (1967)
- Antologia dos poetas brasileiros (1967)
- Poesia moderna (1967)
- Porto Alegre ontem e hoje (1971)
- Dicionário antológico das literaturas portuguesa e brasileira (1971)
- Antologia da estância da poesia crioula (1972)
- Trovadores do Rio Grande do Sul (1972)
- Assim escrevem os gaúchos (1976)
- Antologia da literatura rio-grandense contemporânea - Poesia e crônica (1979)
- Histórias de vinho (1980)
- Para gostar de ler: Poesias (1980)
- Te quero verde. Poesia e consciência ecológica (1982)

Discos:

- Antologia Poética de Mario Quintana - Gravadora Polygram (1983)

Música:

- Recital Canto Coral Quintanares (1993) - treze poemas musicados pelo maestro Gil de Rocca Sales.

- Cantando o Imaginário do Poeta (1994) - Coral Casa de Mario Quintana - poemas musicados pelo maestro Adroaldo Cauduro.

Teatro:

- Lili Inventa o Mundo (1993) - montagem de Dilmar Messias.

Fontes:
Casa de Cultura Mário Quintana
http://www.releituras.com/
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/quintan2.htm

Mário Quintana (Dos chatos)

O maior chato é o chato perguntativo. Prefiro o chato discursivo ou narrativo, que se pode ouvir pensando noutra coisa... Me lembro que fiz um soneto inteiro — bem certinho, bem clássico e tudo — durante o assalto ao Quarto do Sétimo, isto é, quando um veterano de 30 me contava mais uma vez a sua participação nas glórias e perigos daquela investida.

As velhotas que nos contam seus achaques também são de grande inspiração poética.

Mas que fazer contra a amabilidade agressiva do chato solícito? Aquele que insiste em pagar nossa passagem, nosso cafezinho, ou quer levar-nos à força para um drinque, ou faz questão fechada de nos emprestar um livro que não temos a mínima vontade de abrir...

Ah! ia-me esquecendo dos proselitistas de todas as religiões. Os proselitistas amadores, que são os piores. Quanto aos sacerdotes que conheço, registre-se em seu louvor que eles sempre me falam de outras coisas. Ou me julgam um caso perdido ou um caso garantido... Bem, qualquer que seja o caso, deixam-me em paz.

O que pode acontecer de mais chato no mundo é o chato que se chateia a si mesmo, o autochato.

Para essa extrema contingência, descobri em tempo que a última solução não é o suicídio. É escrever, desabafar para cima do leitor, o qual, se me leu até aqui, a culpa é toda dele.

Há gente para tudo...

Fonte:
de Caderno H, 1973. Disponível em
http://paginas.terra.com.br/arte/ecandido/mestre79.htm

Mario Quintana (Espelho Mágico)

Da observação

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Do estilo

Fere de leve a frase...E esquece...nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

Das Belas Frases

Frases felizes...Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacóvios bem vestidos.

Do Cuidado da Forma

Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!

Dos Mundos

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

Das Corcundas

As costas de polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! Quem sabe não serão as asas
De um anjo, sob as vestes escondidas...

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

Dos Milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mundo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Das Ilusões

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!

Dos Nossos Males

A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...

Da Eterna Procura

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

Do Pranto

Não tente consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tirares por fim do seu estado,
Que outra consolação lhe restará?

Do sabor das coisas

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

Dos Sistemas

Já trazes, ao nascer, tua filosofia.
As razões? Essas vem posteriormente,
Tal como escolhes, na chapelaria,
A forma que mais te assente...

Do exercício da filosofia

Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dita um sábio grego outrora...

Das idéias

Qualquer idéia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez do que vestir a verdade
que dentro em ti se achava inteiramente nua...

Da amizade entre mulheres

Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
for muito velha, ou muito feia...

Da Felicidade

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!

Da Realidade

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...

Do Amoroso Esquecimento

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Da discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também...

Da Preguiça

Suave preguiça, que do mau-querer
E de tolices mil ao abrigo nos pões...
Por causa tua, quantas más ações
Deixei de cometer!

Do ovo de Colombo

Nos acontecimentos, sim, é que há destino:
Nos homens, não - Espuma de um segundo...
Se Colombo morresse em pequenino,
O Neves descobria o novo mundo!

Do mal da velhice

Chega a velhice um dia...E a gente ainda pensa
Que vive... E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença
Busca torná-la ainda mais comprimida...

Da moderação

Cuidado! Muito cuidado...
Mesmo no bom caminho urge medida e jeito.
Pois ninguém se parece tanto a um celerado
Como um santo perfeito...

Da calúnia

Sorri com tranquilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...

Da experiência

A experiência de nada serve à gente.
É um médico tardio, distraído:
Põe-se a forjar receitas quando o doente
Já está perdido...

De como perdoar aos inimigos

Perdoas... És cristão...Bem o compreendo...
E é mais cômodo, em suma.
Não desculpes, porém, coisa nenhuma,
Que eles bem sabem o que estão fazendo...

Da condição humana

Se variam na casca, idêntico é o miolo,
Julgem-se embora de diversa trama:
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama.

Da própria obra

Exalça o remendão seu trabalho de esteta...
Mestre alfaiate gaba o seu corte ao freguês...
Por que motivo só não pode o poeta
Elogiar o que fez?

Nadezhda Teffi (O faquir)

Geralmente os grandes acontecimentos começam bem simples, tão simples quanto os pequenos. Assim, o tiro de pistola de Camile Desmoulins deu origem à revolução francesa, mas, quantas vezes um tiro de pistola termina apenas num simples inquérito.

Os acontecimentos que vou relatar começaram de maneira muito vulgar; mas terão sido importantes? Terão sido comuns? Deixo ao leitor decidir.

Certa manhã, às cinco horas, na rua deserta de uma cidadezinha (que contudo era a localidade principal de um cantão), passava um menino levando sob o braço um embrulho de anúncios amarelos. O rapaz aproximou-se do Teatro Municipal, passou grude na parede e colou nela um anúncio amarelo. Repetiu a mesma operação na parede contígua.

Em matéria de colar difícil é apenas começar. Depois, tudo caminhou às maravilhas. Ele parava em cada esquina, cuspia na parede e pregava um anúncio.

A partir das oito horas, os garotos interessaram-se pelo seu trabalho.

Por isso ele continuou a colar papel, acompanhado de vaias, de risos, de conselhos e de aclamações de um batalhão de meninos.

À tarde a tarefa ficou concluída e, embora os bêbedos tivessem arrancado as pontas do papel para fazer cigarros, e os garotos tivessem modificado o texto com comentários que eles evidentemente julgavam indispensáveis, a população da cidade soube o que diziam os anúncios amarelos.

“Hoje, quinta-feira 20 de junho, no Teatro Municipal, grande representação de gala de célebre Faquir. Valendo-se processos tão misteriosos quanto admiráveis, ele atravessará a língua de Miss Gilda, sua esposa. Ferirá o corpo com alfinetes até sair sangue. Abrirá o ventre e fará saltar o olho esquerdo, na presença da Ciência, representada pelos médicos e pelos espectadores que desejarem fiscalizar as experiências fantásticas.

N. B. - A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção.

Preço das entradas: Tabela Comum”.

A curiosidade do público aumentava em moto crescente. Estas palavras, principalmente, deixavam-no intrigado: “Abrirá o ventre”. De quem abrirá ele o ventre? Dele próprio?

E que significava: “A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção”?

A Polícia autorizava o faquir a fazer consigo o que entendesse? Ou, então, tinha simplesmente deixado de inspecionar seu estado de resistência ao sofrimento, enchendo-o de pancadas na delegacia?

As entradas eram disputadas.

Miassoribov, um jovem negociante, um rapaz sóbrio, educado, que se gabava mesmo de uma certa cultura, acolheu a notícia do espetáculo como um assíduo freqüentador do teatro. Comprou um camarote, e decidiu nele permanecer sozinho. Depois comprou uma caixa de bombons e adornou seu índex com uma turquesa nova. Miassoribov raramente usava esta turquesa porque desconfiava de sua autenticidade. Fosse como fosse, era preferível tê-la guardada numa gaveta verdadeira, sentia muita pena em usá-la; se fosse falsa, haveria de envergonhá-lo. É certo que um armênio lhe propusera um meio para verificar se o era: “mergulhe-a em azeite, meu velho; se for uma turquesa verdadeira, ficará estragada num abrir e fechar d'olhos e não terá mais valor. Mas se for falsa, não sofrerá coisa alguma!” Miassoribov reservava esse conselho para só utilizá-lo em último caso.

As oito horas da noite, o teatro estava repleto. Muitas pessoas tinham chegado às seis horas e esperavam impacientemente pelo levantar do pano.

— Por que não começam? Todos vêem que o público está presente. Vamos! O pano! O pano!...

Miassoribov, como um cavalheiro distinto, chegou apenas meia hora antes de começar; instalou-se no camarote, colocou-se de perfil e começou a comer os bombons. Todas as vezes que levava a mão à boca, o público podia contemplar muito à vontade a misteriosa turquesa.

Mas o pano acabava de subir. No meio do palco havia, numa pequena mesa uma caixinha oblonga. Ao redor da mesa, uma dúzia de cadeiras. No canto, mistificando grandemente o público, o pianista do teatro, o polonês Vruchkevitch esfregava as mãos, na intenção evidente de se sentar daí a pouco ao piano.

Finalmente apareceu o faquir.

Era magro e amarelo; trajava um roupão verde e segurava pela mão uma mulher com um vestido verde, do mesmo tecido do roupão.

Ele caminhou até o proscênio, inclinou-se e disse:

— Peço aos senhores médicos, bem como a alguns espectadores que tenham a bondade de se aproximar.

Nos balcões houve pessoas que manifestaram em voz alta sua surpresa por ele falar russo e não árabe. Dois médicos, hesitantes, subiram ao palco: o médico dos serviços públicos, cabeludo, e um médico particular, calvo. Os espectadores pareciam perturbados. Mandaram sair todos os ocupantes dos lugares da orquestra. O faquir escolheu oito cavalheiros de aspecto respeitável e instalou-os em torno da mesa. Depois tirou o roupão, e apresentou-se de pernas nuas, de calção esportivo. Foi assim que se aproximou do proscênio e saudou novamente, como se receasse que, nesse novo traje, o tomassem por outro.

O público aplaudiu.

O faquir voltou-se para o pianista.

— Vamos, musica!

Vruchkevitch atacou a valsa lenta: “Amo-a e por isso choro”, que afagou deliciosamente o ouvido do auditório.

O faquir abriu a caixinha, dela tirou um alfinete, igual àqueles com que as mulheres enfeitam os chapéus. Aproximou-se da mulher.

— Miss Gilda, queria pôr a língua para fora.

Miss Gilda dócil, voltou-se para ele e esticou a língua.

— Uma, duas, três! — exclamou o faquir, voltando-se para os médicos.

Estes se aproximaram, examinaram a paciente, e o médico dos serviços públicos, como o mais consciencioso dos dois, inspecionou mesmo por baixo a língua de Gilda. Depois, ambos, desconcertados, tornaram a sentar-se.

O faquir tomou a mulher pela mão e fê-la descer. Ela atravessou as filas de espectadores.

À sua aproximação eles se afastavam. A maioria, evidentemente sentia-se mal.

Miassoribov pôs a mão sobre os olhos.

— Basta! Basta! — gemeu.

— Basta! — gritaram.

Mas o faquir, consciencioso, arrastou a mulher para o balcão. Uma senhora teve uma crise de nervos e foi preciso retirá-la. Depois de ter dado volta à sala, o faquir voltou para o palco e retirou o alfinete.

Houve um suspiro de alívio.

O faquir tirou da caixinha outro alfinete mais grosso e mais comprido.

Ao ver isso, o pianista mudou de música e começou a tocar “A Polca dos pardais”.

O faquir atravessou as bochechas, de sorte que uma ponta do alfinete emergia por debaixo da maçã direita de seu rosto, enquanto a outra surgia debaixo da esquerda. Fez os médicos estupefatos verificarem o fato e tornou a descer até o público.

— Basta! é suficiente! — protestou Miassoribov. Uma náusea repentina fê-lo cuspir o bombom.

— Senhor! — gemia o publico. — Basta! Basta!...

— Como Deus consente isso?

Mas o bravo faquir atravessava as filas, como um homem consciente de seu dever, exibindo as bochechas, ora à direita, ora à esquerda.

— Basta! — uivava o publico... — Acreditamos sob palavra! Nao se chegue! Acreditamos!... Chega!...

Um funcionário agarrou a mulher pelo braço e correu para a saída.

Duas jovens os acompanharam. Atrás delas correu uma velha cambaleando, arrastando dois pobres garotos que choramingavam de medo. A velha esbarrou no faquir que dava sua volta, recuou, pisou nos pés de uma dama meio morta de pavor... Ambas precipitaram-se para a saída empurrando-se mutuamente.

Mas quem mais se apavorava era Miassoribov. Sentado em seu camarote, de costas voltadas para a sala, tapando os ouvidos, ele se voltava de vez em quando, com cuidado, lançava uma olhadela furtiva sobre o faquir, estremecia e encolhia-se no seu canto.

— Basta! Basta! — arquejava. — E demais!

Enquanto isso, Vruchkevitch martelava em seu piano a “Quadrilha dos Lanceiros”.

Mas o faquir retornou ao palco. O público acalma-se. Aguarda. Espera. No limiar do corredor vêem-se os rostos pálidos daqueles que não tiveram coragem de ficar até o fim. O faquir tira três outros alfinetes. Enterra um na língua (sem tirar o que está atravessado nas bochechas) e os dois outros acima dos cotovelos.

O sangue espirrou do braço direito.

— Não é uma mistificação! É sangue! sangue verdadeiro! — observou com alegria o médico dos serviços públicos.

O pianista polonês Vruchkevitch, animado pela jovialidade do médico, começou imediatamente a tocar “Valência”. Enquanto isso, duas porteiras do teatro tiveram de carregar para a saída uma jovem lívida que elas arrastavam pelo braço. O agente de serviço na fiscalização cambaleou por sua vez, e saiu com passo rápido. A sala estava ficando deserta.

Miassoribov nem mesmo mais se voltava. Dominado por estremecimentos nervosos, com as pálpebras apertadas, não respirava mais...

Debandar! — suspirava ele; mas paralisava-o um terror vago. Os cabelos arrepiavam-se.

Depois de o faquir completar a ronda pelos espectadores atormentados, que lhe suplicavam que voltasse para o palco, Miassoribov, voltando-se instintivamente, viu-o retirar os alfinetes e ouviu-o exclamar com triunfo:

— E agora, Senhoras e Senhores, vou fazer saltar meu olho por meio de um saca-rolhas, colocando-o entre o olho e a órbita.

Apanhou a caixinha, mas ninguém esperou pela aparição do saca-rolhas. Foi uma debandada geral. Soltando gritos estridentes, a multidão precipitava-se para a saída. Uns, desvairados, como loucos, fugiam para a rua; outros, dominando-se, paravam:

— Que estará ele fazendo agora? Será que já fez saltar o olho? Nesse caso poderíamos voltar. Que acham?

Um colegial desajeitado entreabriu a porta de um camarote e espiou pela fresta. Uma onda de melodia chegou até seus ouvidos. Eram as primeiras notas de “Madame Butterfly”, tocadas pelo impassível Vruchkevitch.

Sussurraram atrás do colegial:

— E então? Já fez saltar?

— Não me esmaguem! — exclamou ele, dando-se importância. — Creio que vai ser agora.

— Em nome de Deus, fecha a porta! — gemeram os curiosos. Mas logo em seguida, perguntaram novamente ao colegial:

— E agora? que está fazendo? De que tens medo, idiota? Olha, e grita-lhe que basta, que já vimos o bastante!...

Enquanto isso, no fundo de seu camarote, Miassoribov monologava, lívido:

— Saiamos devagarinho, meu velho... O teatro não é uma distração que te sirva. Ele exige uma natureza por demais cultivada, não serve para ti. Se quiseres te distrair, existe o vodka...

E foi por isso que Miassoribov deu para beber.
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Sobre a Autora:
Nadezhda Teffi é uma escritora russa, nascida em 1876 e falecida em 1952. Deixou a Russia após a revolução de 1917. Obteve destaque por seus contos. O Faquir é considerado o seu melhor trabalho.

Fontes:
Yolanda Lhullier dos Santos e Cláudia Santos (orgs. e trad.). Contos e novelas de língua estrangeira. v. II. 11. ed. São Paulo: Logos, 1963.
Imagem = http://dallablog.zip.net

O. Henry (O presente dos Magos)

Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.

Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao pequeno sofá puído e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomínio das fungadelas.

Enquanto a dona da casa gradualmente passa do primeiro ao segundo estágio, vamos dar uma espiada na casa. Um apartamento mobiliado, a oito dólares por semana. Não era exatamente miserável, mas tinha essa palavra pronta para o grupo de mendicância.

No vestíbulo embaixo havia uma caixa de correspondência na qual carta nenhuma seria posta, e um botão de campainha que nenhum dedo mortal jamais apertaria. Encontrava-se ali também um cartão anunciando o nome do "Sr. James Dillingham Young".

O "Dillingham" fora acrescentado durante um anterior período de prosperidade, quando seu possuidor estava ganhando trinta dólares por semana. Agora, que a receita baixara para vinte dólares, as letras de "Dillingham" pareciam nubladas, como se estivessem pensando seriamente em abreviar para um modesto e despretensioso D. Mas sempre que o Sr. James Dillingham Young voltava para casa e chegava ao seu apartamento lá em cima, era chamado de "Jim" e carinhosamente abraçado pela Srª. James Dillingham Young, já apresentada ao leitor como Della. O que está muito bem.

Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. Estivera a economizar tostão por tostão havia meses, e esse era o resultado. Vinte dólares por semana não dão para nada. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são. Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa bonita. Alguma coisa fina, rara, legítima - algo que estivesse bem perto de merecer a honra de ser possuída por Jim.

Havia um espelho de tremó entre as janelas da sala. Talvez o leitor já tenha visto um espelho de tremó num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito esguia e muito ágil pode, com observar seu reflexo numa rápida seqüência de tiras longitudinais, obter uma concepção bastante acurada de sua aparência. Della, por ser esguia, lograra aperfeiçoar-se nessa arte.

Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante do espelho. Seus olhos estavam brilhantes, mas sua face perdeu a cor ao cabo de vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e deixou desdobrar-se em toda a sua extensão.

Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. O outro era o cabelo de Della. Morara a Rainha de Sabá no apartamento do outro lado do poço de ventilação, e Della teria algum dia deixado o seu cabelo cair fora da janela para secá-lo e depreciar assim as jóias e as riquezas de Sua Majestade. Fora o Rei Salomão o zelador, com todos os seus tesouros empilhados no porão, e Jim teria puxado o relógio cada vez que por ele passasse, só para vê-lo arrancar as barbas de inveja.

O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente. A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas caíam sobre o puído tapete vermelho.

Vestiu o velho casaco marrom; pôs o velho chapéu marrom. Com um ruge-ruge de saias e coma centelha brilhante ainda nos olhos, correu para a porta e desceu rapidamente a escada que levava à rua.

Parou onde havia um letreiro anunciando: "Mme. Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos". Della subiu a correr um lance de escada e se deteve no alto, arquejante, para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais, fria, dificilmente faria jus ao nome de "Sofronie".

- Quer comprar meu cabelo? - perguntou Della.

- Eu compro cabelo - disse Madame. - Tire o chapéu e vamos dar uma olhada no seu.

Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.

- Vinte dólares - ofereceu Madame, erguendo a massa com mão prática.

- Dê-me o dinheiro depressa - pediu Della.

Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Perdoe-se a metáfora gasta. Della se pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.

Encontrou-o por fim. Fora certamente feito para ele e para ninguém mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto, proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer ornamentação espúria - como o devem fazer todas as coisas boas. Era digna até do Relógio. Tão logo a viu, soube que tinha de ser de Jim. Era como ele. Serenidade e valor - a descrição se aplicava a ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como era o relógio, ele às vezes o consultava meio envergonhado devido à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.

Quando Della chegou a casa, seu embevecimento cedeu lugar a um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos - uma tarefa gigantesca.

Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino vadio. Contemplou sua imagem no espelho durante longo tempo, crítica e cuidadosamente.

- Se Jim não me matar - disse consigo mesma - antes de olhar-me pela segunda vez, dirá que pareço uma corista de Coney Island. Mas que podia eu fazer... oh, que podia eu fazer com um dólar e oitenta e sete centavos? Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira quente no fogão esperava o momento de fritar as costeletas.

Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no primeiro lance da escada e empalideceu por um instante. Ela tinha o hábito de rezar pequenas preces silenciosas a propósito das mínimas coisas diárias, e agora murmurava:

- Oh, Deus, fazei-o por favor achar-me ainda bonita!

A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma família! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.

Jim avançou alguns passos, tão rígido quanto um perdigueiro na pista de uma codorniz. Seus olhos estavam fitos em Dela e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos sentimentos para os quais ela estava preparada. Ele simplesmente a fitava com aquela peculiar expressão na face.

Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para ele.

- Jim, querido - gritou - , não me olhe desse jeito! Mandei cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o Natal sem dar um presente a você. Ele crescerá de novo... não se aborreça, por favor. Eu tinha de fazer isso. Meu cabelo cresce terrivelmente depressa. Diga "Feliz Natal!", Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente tenho para você.

- Mandou cortar o cabelo? - perguntou Jim a custo, como se não se tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço mental.

- Cortei-o e vendi-o - disse Della. - Você não continua a gostar de mim do mesmo jeito, então? Estou sem cabelo, não estou?

Jim olhou à volta do aposento de modo curioso.

- Você diz que seu cabelo se foi? - insistiu, com um ar de quase idiotia.

- Não precisa procurar por ele - disse Della. - Foi vendido, como lhe disse... vendido, não está mais aqui. É Véspera de Natal, querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Talvez fosse possível contar os cabelos da minha cabeça - continuou ela, com súbita e grave doçura - mas ninguém poderá jamais avaliar o meu amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?

Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente. Abraçou a sua Della. Por dez segundos, contemplemos, com discreta atenção, qualquer objeto inconseqüente, noutra direção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano - qual a diferença? Um matemático ou uma pessoa arguta daria a resposta errônea. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Esta asserção obscura será esclarecida mais tarde.

Jim tirou um pacote do bolso do sobretudo e atirou-o sobre a mesa.

- Não me interprete mal, Della - disse. - Não acho que haja alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou xampu, capaz de fazer-me gostar menos da minha mulherinha. Mas se você abrir esse pacote, poderá ver por que fiquei abafado no princípio.

Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho. Ouviu-se então um grito estático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos os poderes de consolação do senhor do apartamento.

Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes - o jogo de pentes para cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine da Broadway. Belos pentes, de tartaruga legítima, orlados de pedraria - da cor exata para combinar com o lindo cabelo desvanecido. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los e a suspirar por eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí-los. E agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar não mais existiam.

Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pôde erguer os olhos nublados, sorrir e dizer:

- Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!

E então Della pulou como um gatinho chamuscado e gritou:

- Oh! oh!

Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com o reflexo do seu jubiloso e ardente espírito.

- Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.

Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça, e sorriu:

- Della - disse - vamos pôr os nossos presentes de Natal de lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados agora. Vendi o relógio para conseguir o dinheiro com que comprei os seus pentes. Que tal se você fritasse as costeletas agora?

Os magos, como sabem, eram homens sábios - homens maravilhosamente sábios - que trouxeram presentes para a Criança na manjedoura. Inventaram a arte de dar presentes natalinos. Sendo eles sábios, seus presentes eram sem dúvida igualmente sábios. Possivelmente admitiam o privilégio de troca em caso de duplicação. E aqui lhes contei canhestramente a crônica não importante de duas crianças tolas, num apartamento, as quais da maneira a mais insensata, sacrificaram, uma pela outra, os maiores tesouros de seu lar. Mas como derradeira palavra para os sensatos dos dias que correm, seja dito que, de todos que dão presentes, os dois foram os mais sábios. Todos que dêem e recebam presentes como os deles são os mais sábios. Em toda parte, os mais sábios. São os magos.

Fontes:
O. HENRY. Caminhos do Destino e outros contos. Seleção e prefácio de José Paulo Paes. Tradução de Alzira Machado Kawall e José Paulo Paes. Ediouro, 1988.

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quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Luiz Antonio de Assis Brasil (Decálogo do Escritor I)

(Iniciamos hoje a série Decálogos do Escritor, na qual diversos escritores fazem uma lista de dez dicas ao novo escritor)

1. Ler apenas quem escreve melhor do que nós.

2. Tentar descobrir nossa "medida", isto é: o meio-caminho ideal entre ser explícito e ser obscuro. Quem descobre a medida, como Hemingway descobriu, ganha o Nobel.

3. Ler, ler muito. Escrever, escrever muito. Todos os dias.

4. Escutar os outros sobre nossos próprios textos. Mas esses outros precisam ter duas qualidades complementares: a) competência para análise de textos literários; b) sinceridade. É raríssimo encontrar pessoas com ambas qualidades.

5. Escrever aquilo que se gosta de ler. Se gostamos de textos simples, por que escrevermos complicado?

6. Ter sempre um caderno de notas no bolso, ou algo semelhante. Ele deve ficar à nossa cabeceira, à noite. As idéias nos alcançam quando menos esperamos.

7. Saber que o sucesso e a qualidade literária pertencem a universos diferentes.

8. Fugir da vida literária; isso só desintegra o fígado e cria inimigos, para além de ser uma colossal perda de tempo.

9. Criar espaços (emocionais, físicos, cronológicos) para exercitar a literatura, mesmo que isso signifique abdicar de coisas aparentemente necessárias.

10. Pensar como escritor, isto é, conotativamente. Deixar o pensamento dedutivo apenas para quando estivermos estruturando nosso romance. No plano textual, usar de preferência conjunções coordenativas, em vez das subordinativas.
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Luiz Antonio de Assis Brasil (1945, Porto Alegre, Brasil) é descendente de povoadores açorianos que se estabeleceram no Sul do Brasil no século XVIII. Músico de formação clássica, é professor de literatura e escrita criativa na PUC do Rio Grande do Sul. Considerado um grande narrador de ficção histórica, recria episódios do passado de seu estado natal, a par de outros temas que perpassam sua obra. Para o autor de romances como Concerto campestre (1997), O pintor de retratos (Prêmio Machado de Assis/2001), e A margem imóvel do rio (Prêmio Jabuti e Portugal Telecom 2004), “o passado dá maior liberdade criadora, e as emoções e paixões parecem mais autênticas”.

Fontes:
http://rascunho.rpc.com.br/
http://www.flip.org.br

Alexandre Vidal Porto (O Ouro de Artur)

Conheço bem a história de Artur. Ele é um homem íntegro, e é meu dever defendê-lo. Artur tem muitos defeitos de personalidade, mas poucos de caráter. Tem pensamentos inconfessáveis, dos quais se envergonharia. Mas quem nunca se envergonhou dos próprios pensamentos?

Ao separar-se, trocara a possibilidade de depressão por um sentimento de amargura leve, mas perene. Em São Paulo, não conhecia ninguém. Seu contato social resumia-se a pouca conversa que tinha na biblioteca com os oito funcionários que trabalhavam sob sua supervisão.

Essa ausência de contato não o incomodava. Ao contrário, lhe convinha. Quanto menos pessoas conhecesse, quanto menos pessoas falassem com ele, melhor. Não queria recontar a história de seu passado recente, não queria que ninguém tivesse elementos para deduzir fatos de sua vida e, mais importante, não queria acabar tendo despesas desnecessárias com gente que não o interessava.

De tudo o que perdeu com a separação, o apartamento foi o que mais sentiu. Artur tinha medo do futuro. Tinha medo de ter câncer na próstata. Tinha medo de ficar desvalido, e o pensamento de não ter onde morar na velhice o apavorava mais do que qualquer outra coisa no mundo.

Todos os seus centavos eram contabilizados, do primeiro ao último. Àquela altura, seu principal objetivo na vida consistia em readquirir um imóvel próprio e parar de pagar aluguel. Todas as noites adormecia pensando em um apartamento pequeno, financiado na planta, num prédio decente, onde pudesse morar tranqüilo. Economizava para a entrada. Com o salário, pagaria as prestações.

Por necessidade e cautela, vivia modestamente. No entanto, não precisava privar-se de muito. Era naturalmente frugal. Por um desconto simbólico no contracheque, fazia as três refeições no bandejão da Universidade. À noite, às vezes, jantava uma fruta ou um sanduíche de queijo. Comia a mesma coisa todos os dias. Seus luxos eram uma televisão com DVD e um computador.

A separação o havia exaurido. Só gente muito próxima soube o que aconteceu. Até hoje, Artur evita tocar no assunto. Separaram-se por decisão dela. Só dela. Soubera que Artur havia tido um caso - devidamente morto e enterrado, por sinal - com a ex-cunhada. Tomou a decisão de separar-se e manteve-se irredutível até o final.

Artur não amava mais a mulher, mas pretendia continuar casado. Ao ser sincero, acabou cometendo um atentado econômico e moral contra si mesmo. O apartamento ficou para a mulher e os filhos, e 20% de seu salário passaram a ser descontados em folha, a título de pensão.

Em São Paulo, daria seguimento à vida. Pensara em alugar um quarto em uma das repúblicas próximas à Universidade, mas deu-se conta de que não teria onde receber os filhos. No final, alugou um apartamento pequeno, de um quarto. Quando viessem, os filhos dormiriam em um colchonete na sala.

Se fosse sedentário, seria gordo. A natação o salvara da obesidade. Artur caminhava para o trabalho e nadava todos os dias. Às seis da tarde, saía de sua sala na biblioteca em direção à piscina do ginásio de esportes. Passava horas nadando, surdo, cercado de água morna azul.

Triana Robledo foi a primeira mulher com quem saiu a sós depois da separação. Não que esse fato pudesse ter qualquer conotação romântica. Triana Robledo era aquela senhora que, todos os dias, antes das aulas, cedinho, passava pela biblioteca para ler os jornais. Uma das poucas pessoas além dos de seus funcionários que Artur reconhecia e cumprimentava.

Saíram juntos porque, semanas antes, se encontraram casualmente no supermercado. Artur a ajudou a carregar as compras. Na porta de casa, Triana pensou em oferecer-lhe um café, mas julgou que seria inadequado.

Para retribuir a gentileza, duas semanas depois, por volta das 7 da manhã, convidou Artur para um concerto de música de câmara. Tinha ganhado os ingressos de um de seus alunos. Foi essa a primeira vez que saíram juntos.

Saíram juntos outras vezes e tornaram-se amigos, que era o que combinava entre um homem de 58 e uma mulher de 72. Assistiam a filmes, a palestras e, se algum dos dois ganhasse ingressos, iam a uma peça de teatro ou a um concerto. Muitas vezes, comiam uma pizza depois do programa. Sempre dividiam as despesas sem qualquer prurido. Foi durante uma dessas pizzas que Artur mencionou o filho pela primeira vez.

Triana Robledo não tinha filhos nem qualquer outro parente. Ainda jovem, no espaço de três anos, perdera a mãe e o pai. Em 1950, aos catorze anos, chegara a São Paulo para viver com o tio, um padre dominicano que trabalhava na administração da Universidade. A vinculação de Triana com o mundo fazia-se por essa instituição. Ali, completara sua formação acadêmica. Ainda como mestranda, começara a ensinar literatura espanhola. Vivera sempre à sombra da Universidade, repetindo Cervantes e Lope de Vega para gerações de alunos iguais.

Por algo que não se explica, passara a vida invisível para o sexo oposto. Nenhum homem jamais lhe demonstrara interesse romântico. Por estranha que possa parecer, é essa a mais pura verdade. Não era bonita, mas isso não seria razão. Mesmo neste mundo machista, mulheres de menos beleza se casam até mais de uma vez.

Era reservada. Passou a adolescência sozinha, lendo. Talvez tenha sido por isso. Talvez tenha ficado solteira porque circulasse muito entre religiosos. Talvez, ainda, porque fosse esse o destino mais feliz que lhe pudesse caber.

Mas é inútil conjeturar sobre as razões desse destino. As razões podem ser várias. O que importava era o resultado, e o resultado era que Triana Robledo nunca encontrara um homem que a beijasse ou, muito menos, que a levasse ao altar. Em Triana se extinguiria a família Robledo.

O tio lhe havia possibilitado uma vida austera. Crescera sem qualquer luxo. Nunca se achara merecedora de cuidados especiais ou gastos supérfluos. Trazia na alma o pessimismo conformista de que só um espanhol é capaz. A vida era como tinha de ser, um vale de lágrimas, uma armadilha contra quem está vivo.

Como Artur, Triana contabilizava centavos e achava normal usar o mesmo saquinho de chá mais de uma vez. Não conhecia o prazer e não desperdiçaria dinheiro no que não conseguia discernir. À diferença de Artur, porém, não tinha idéia do que o dinheiro acumulado ao longo da vida lhe poderia proporcionar. Passara a vida economizando porque economizar era parte da vida. Economizava porque não tinha em que gastar.

A atenção que Artur lhe dedicava quando iam ao cinema ou dividiam uma pizza era maior do que a que qualquer outro homem jamais lhe devotara. Toda demonstração amistosa de Artur era grande perto do pouco que ela conhecia. Se concebesse a possibilidade do amor, Triana teria se apaixonado à primeira vista, na biblioteca. Mas como não pensava em amor, não contemplava a paixão. Comprazia-se com a presença de Artur. Gostava de sua companhia, das conversas que tinham, do tempo que passavam juntos.

Cada um chegara a São Paulo por seus próprios acasos. Artur, depois de uma separação. Triana, depois da morte dos pais. Para ele, um novo emprego. Para ela, a casa do único tio. Ele abandonara a ilusão do casamento e vivia sozinho. Ela deixara um continente para ganhar outro.

No seu íntimo, Triana acreditava que o fato de não ter sido amada a tornava imortal. "Ninguém pode morrer antes de ter sido amado." Essas são palavras que eu ouvi de sua boca. Nessa mesma época, disse-me que começara a ter pensamentos de morte quando completou 70 anos.

Passara a vida sem acreditar no prazer, sem saber que o prazer habitava nela. Na idade mais improvável, Triana descobria uma tensão no diafragma que precisava estar apaixonada para sentir. Sabia a parte de seu braço em que ele, horas antes, tocara para ajudá-la na saída do auditório ou na descida de uma escada.

Sentia prazer, mas o que sentia era desconhecido, e ela, por falta de experiência nessas matérias, não sabia que o prazer, retribuído, se potencializava. Não pensava em ser correspondida, mas sonhou com Artur repetidas vezes. Num dos sonhos, ele estava sem camisa. Em outro, sorria.

Aos 58 anos, Artur não contemplava a possibilidade de prazer romântico. Achava que tinha resolvido sua questão sexual masturbando-se uma ou duas vezes por semana com fotos que baixava da internet.

Dos filhos de Artur, sei pouco. Sei que a menina tinha 15 anos e era uma mosca morta, mas talvez fosse só tímida, sei lá. Marcelo, o garoto, é que era o orgulho do pai. Tinha 25 anos e era formado em economia. Trabalhava em um banco de investimentos. Não se ocupava diretamente do dinheiro de Artur, mas dava dicas e sugestões, que o pai, em benefício próprio, tinha aprendido a seguir fielmente.

Onze meses depois do primeiro encontro, num domingo de fevereiro, Artur sugeriu que comessem uma pizza depois do cinema. Nessa noite, pediu vinho em lugar de guaraná e, pela primeira vez, tomou a iniciativa de pagar a conta. Justificou o gesto dizendo que celebrava os rendimentos de umas aplicações que o filho lhe havia sugerido.

Nessa noite, Artur teve vontade de falar sobre quanto dinheiro tinha ganhado e quanto dinheiro poderia ganhar, mas, no final, achou que não seria de bom-tom. Marcelo acabou sendo o tema central da conversa. Na semana seguinte, dava a entrada em seu apartamento de 71 metros quadrados no Village Arpoador, em Perdizes.

Àquela altura, Triana já se tinha dado conta de que se apaixonara. Em sua casa, nas aulas, na biblioteca, pensava em Artur constantemente. No começo de março, admitiu para si mesma que o que sentia por ele tinha saído de controle. Mas, se tinha perdido o controle, era só por dentro, porque, por fora, em aparência, palavras e gestos, nada traía seus sentimentos de mulher.

Na sala de periódicos, dias mais tarde, perguntou a Artur se Marcelo poderia instruí-la sobre opções de investimento. Para Artur, a pergunta de Triana parecia despropositada, quase abusiva. Ela sabia que Marcelo só trabalhava com grandes investidores e que lhe prestava consultoria de pai para filho, literalmente.

Artur não queria onerar Marcelo, mas tampouco queria ser indelicado com Triana. Entre os dois, privilegiou a mais idosa e lhe passou os números do filho. Imaginava que ela tivesse algumas economias na poupança, mas nada de substancial. Foi o que disse a Marcelo quando lhe pediu que fizesse uma caridade pelo pai.

Quatro dias depois, à noite, Marcelo ligou para Artur. Queria agradecer a recomendação da nova cliente. Contara que a professora Triana tinha investido quase três milhões com ele, e que o portfólio de investimentos que gerenciava tinha praticamente dobrado.

O primeiro sentimento do pai com a notícia foi de satisfação pelo bem que fazia ao filho. O que veio depois era incredulidade pura. Naquela noite, Artur quase não dormiu. Rolando na cama, tentava encaixar três milhões na vida de Triana. Teve um sono agitado, mas não se lembrou de seus sonhos ao despertar.

No sábado seguinte, antes do cinema, Triana mencionou que havia falado com Marcelo. De noite, na cama, Artur tentava conceber a idéia de que Triana, sua companheira de cinema e pizza com guaraná, possuía mais dinheiro do que ele jamais imaginara. A conclusão óbvia a que chegava era que Triana tinha herdado essa dinheirama de alguém.

Passou a observá-la como nunca fizera antes. Analisava cada gesto de sua expressão. Perscrutava cada parte de seu corpo. Se fechasse os olhos, podia imaginar suas feições. Ela possuía o que ele precisava ter, e Artur queria entendê-la melhor.

Notava a segurança com que ela tomava os ingressos na bilheteria do cinema. Percebia como segurava os talheres com os punhos ligeiramente curvados. Achava graça quando ela olhava para baixo imediatamente antes de olhá-lo nos olhos e criticar um governo qualquer.

Imagens de Triana Robledo seguiam Artur na piscina, entre reflexos de luz e bolhas de ar. Ocupavam o lugar do apartamento próprio em seus pensamentos antes de dormir.

Para Artur, uma mulher rica que quisesse parecer pobre tinha de ter enormes qualidades. Passara a admirá-la, a considerá-la um modelo. Nada na vida o tranqüilizava mais que a companhia daquela mulher.

Durante um filme de Almodóvar, suas pernas se tocaram. Triana sentiu um calor sufocante no rosto; Artur pressentiu uma ereção. Quase dois meses depois, Artur beijou-a por impulso na cozinha do apartamento dela, onde haviam ido tomar café. Não teve qualquer dificuldade para admitir que se apaixonara por Triana sem perceber.

As idéias, o corpo, o cheiro, essas coisas catalizam a química do amor. No caso de Artur, o catalizador do amor por Triana foi a segurança que a personalidade, as palavras e o dinheiro da mulher lhe inspiravam. Para ele, o que ela tinha integrava a essência de quem ela era.

Haverá quem insista em discutir a pureza desse sentimento. O mais fácil é dizer que Artur se casou por interesse. É o mais simples e o mais simplório. Mas isso só fala quem não os conheceu.

Triana e Artur casaram-se discretamente, em um cartório no centro da cidade. Marcelo e Padre Justino, que benzeu o casal, foram as testemunhas. Por insistência de Triana, casaram-se em comunhão de bens.

Aos 73 anos, Triana, finalmente, conhecia o amor. O casamento consumou-se com carinho e continuou com carinho ao longo dos nove anos em que viveram juntos. Ainda no primeiro ano de casados, Triana convenceu o marido a se mudarem para um apartamento maior. No final desse mesmo ano, passaram quinze dias na Espanha. Ouvi-a mais de uma vez dizer que Artur lhe havia proporcionado os melhores anos de sua vida.

O fatalismo espanhol, que a forçara a economizar a vida inteira para uma eventualidade que ela nunca entendeu, finalmente se explicava. Seu dinheiro, sem que ela se desse conta, lhe comprara amor sincero. Agradecia ao seu anjo da guarda por isso. Todas as noites, antes de dormir, beijava a medalha de Santo Antônio, quem lhe concedera a graça do matrimônio.

Triana não viu a passagem da vida para a morte, mas viu luzes que, de repente, se apagaram. Artur a encontrou de camisola, na cama, como a deixara de manhã, só que morta. O frio do seu corpo projetou Artur em dois segundos de queda livre. Respirou fundo, ligou para o filho e depois chorou. Em seguida, telefonou para a funerária e para o cemitério onde tinham comprado um jazigo. Queria resolver os detalhes do sepultamento.

A morte de Triana escurecera a vida de Artur, mas, na saída da missa de trigésimo dia, às 9 da manhã, disse ao filho que iria viajar. Decidira ir a Paris. Talvez também fosse à Grécia. Já tinha comprado as passagens e feito as reservas no hotel.

Disse-me que, em Paris, chorava por Triana caminhando pelas ruas, na chuva, e que foi só com o sol da Grécia que começou a se sentir melhor.

De volta a São Paulo, achou o apartamento muito escuro e decidiu mudar-se para uma casa na praia. Tinha saúde, disposição e trazia um Santo Antônio no pescoço. Perdera o medo da morte e queria dar seqüência à sua vida.

Aos 68 anos de idade, era o que Artur queria fazer. Quem, podendo, não faria o mesmo? O que de condenável poderia haver nessa intenção?
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Sobre o autor
ALEXANDRE VIDAL PORTO é autor do romance Matias na cidade. é diplomata de carreira e mestre em direito pela universidade de Harvard. Trabalhou em Nova Iorque como representante do Brasil na ONU para direitos humanos e também em Santiago, no Chile.
Atualmente ele é primeiro conselheiro da embaixada brasileira em Washington

Mia Couto (Terra Sonâmbula - Venenos de deus, remédios do diabo)

artigo O GUARDADOR DE SONHOS Em Venenos de deus, remédios do diabo e Terra sonâmbula por Mariana Ianelli

Mia Couto recupera o poder do sonho e a necessidade do mito

Nasce mulata a poesia moçambicana, em meados do século 19, no casamento do poeta Tomás Antônio Gonzaga, de sangue luso-brasileiro, com Juliana de Sousa Mascarenhas, da Ilha de Moçambique. A respeito desse rico intercâmbio de culturas falava o escritor Mia Couto, quatro anos atrás, em uma comunicação na Academia Brasileira de Letras. Foi assim que, estreitando laços de vizinhança, entre 1950 e 1970, as vozes de Manuel Bandeira, Drummond, Graciliano Ramos, Jorge Amado e tantos outros aportaram em Moçambique, para semear ali a gênese de uma identidade lingüística ainda carente de matizes que pudessem distingui-la do português colonial.

Dessa partilha que transcende a dimensão da língua e toca o fundo de um parentesco mágico, deriva o encontro de alma especialíssimo de Mia Couto com Guimarães Rosa. Em um sertão que desemboca em savana, levanta-se agora, mais uma vez, a flor mestiça, re-encantada em cores de beleza universal. Tudo o que Mia Couto reconhece marcar a experiência de recriação da escrita em Guimarães, podemos também reconhecer em seu trabalho, bem entranhado nos sais da terra moçambicana: o uso de "neologismos, da desarticulação da frase feita, da reinvenção dos provérbios, do resgatar dos materiais da oralidade". Poetas por excelência, ambos são feiticeiros da linguagem, desbravadores de uma pátria mítica em que nos descobrimos antes unidos por um sonho que separados por diferenças de raça.

Onde paira a névoa e, desde logo, qualquer prerrogativa de certeza se desfaz, é o sonho justamente que aparece e se propaga como elemento fundador das viagens nos livros de Mia Couto. Em Terra sonâmbula, a névoa está por toda parte. Uma estrada arrasada pela guerra, a carcaça de um automóvel incendiado, uma misteriosa mala ao lado de um cadáver: eis toda a paisagem, ou quase. Um baobá ali de pé dá sinais de que a terra não definhou completamente, que ainda serve de refúgio. Nesse lugar, a meio de um caminho, instalam-se Muindinga e Tuahir, sobreviventes de um país em luto. Nada se move enquanto eles não enterram seus mortos.

Dentro da mala, uma herança os aguarda: os cadernos manuscritos de Kindzu, um menino nascido no seio da guerra, cujo nome é o mesmo "que se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias". Com efeito, as palavras dessa criança lançam raízes e plantam no pequeno Muindinga a memória de um passado que lhe falta, desabrocham no velho Tuahir sua capacidade de sonhar. Começa aqui a viagem. Das águas para a terra, desde as páginas de uma ilíada, os dois andarilhos empreendem sua odisséia da estrada para o mar, traçando, sem saber, um itinerário de volta a casa: o pertencimento a uma nação que por muito tempo esteve esquecida, oculta sob o sono e sob as armas.

Palavra fabulosa

Tal como Kindzu recebe de um adivinho o "amuleto dos viajeiros" para começar sua jornada e curar-se "das leis, mandos e desmandos", Muindinga e Tuahir recebem a palavra fabulosa que os vai libertando da "miséria de existir pouco". E quanto mais avançam na leitura dos cadernos, mais a paisagem em torno deles se transforma. É a estrada que caminha, enevoada, diluindo os contornos de uma dura realidade, por dentro se fazendo fértil para a colheita do futuro. Povoam-se de árvores as estórias de Kindzu - canhoeiros, massaleiras, cajueiros, djambalaueiros - e o mato à beira da estrada viceja, "num moçambique de verdes". O sagrado se abastece de forças na genealogia poética do filho das águas, da filha do Céu, e já Tuahir passa a sofrer de uma outra fome se o pequeno Muindinga demora a retomar o diário - uma fome que só a fantasia satisfaz. O garoto lê as páginas, o velho lê as folhagens, um alimenta no outro os motivos de estar vivo. No desfile dos espectros da guerra, nas imprecações dos espíritos, põem-se "os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências", e o tempo presente se resolve. Finalmente, os mortos podem ser sepultados pela segunda vez, com as devidas cerimônias.

Um cadáver abandonado a céu aberto, um elefante agonizando na savana, em Terra sonâmbula, são variações do mesmo retrato de um país acometido pelo fantasma da guerra bem depois de a guerra haver terminado. Tuahir diz ao pequeno Muindinga: "eu vivi num tempo em que o amor era uma coisa perigosa. Tu vives num tempo em que o amor é uma coisa estúpida". Órfão de pai e mãe, Muindinga cumpre o destino de escapar de muitas mortes, e ser, como Kindzu, um portador da paz. Com o corpo doente de "mantakassa", o veneno da mandioca apodrecida, é salvo de sua primeira agonia pelo velho Tuahir quando está prestes a ser atirado a uma vala. Sua tarefa tem o peso de uma raça: escapar da terra contaminada e proteger-se das enfermidades da alma, que se abrem nas feridas invisíveis do medo, da loucura, da desesperança. Trata-se também de outra orfandade, esta contra a qual luta o pequeno Muindinga: a perda do encanto das tradições, a derrocada de um país pelo império da violência, o desprezo dos homens por um sentido de comunidade.

No livro, a proclamação da Independência de Moçambique torna-se um de seus personagens fantásticos: Vinticinco de Junho, o Junhito, irmão menor de Kindzu. Para ser poupado da morte que o pai lhe sentencia em uma de suas predestinações, Junhito é encerrado em um galinheiro, disfarçado com um saco de penas, e aos poucos vai desaprendendo a falar. Desaparece certa manhã, sem deixar rastro, para ressurgir aos olhos de Kindzu em uma capoeira improvisada dentro de um tanque militar. Apenas concretizada a travessia, na última fábula do diário, Junhito finalmente se humaniza, embalado pelo som de uma canção.

Merece um destaque à parte, no romance, a estória de Nhamataca, filho de um amor durante a "estação das brumas" entre um homem e uma mulher, em margens opostas de um rio, que as águas acabam por unir em uma jangada. Mia Couto narra um episódio familiar no conto Nas águas do tempo, de Estórias abensonhadas: um velho que ensina seu neto a enxergar por trás do nevoeiro o vulto que lhes acena um pano branco. O avô segreda a lição: "nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem". Como diz Kindzu, em Terra sonâmbula: "O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos". É então, para voltar a ver, que o menino guarda suas fantasias no bojo de uma viagem, as páginas do seu diário transformadas em páginas de uma estrada.

Epidemia

Tons mais sóbrios marcam a paisagem de Venenos de deus, remédios do diabo, o romance recém-lançado de Mia Couto. Sob uma névoa que agora batiza e cobre uma vila africana, as intimidades dos habitantes silenciam, debaixo de pequenas mentiras, saberes que não mentem. Cada sonho é um modo de esquivar-se de um presente de poucas distrações. São breves os arredores de Vila Cacimba, porém, dentro da casa de D. Munda e Bartolomeu Sozinho, uma geografia se desdobra em distâncias. Além dos devaneios da memória, que adoecem de melancolia esse universo entre quatro paredes onde se concentra a narrativa, uma epidemia contamina as redondezas da vila, convertendo os soldados em "tresandarilhos".

Encarregado de conter a doença, que os moradores do lugarejo atribuem a um "mau-olhado", o médico português Sidônio Rosa esconde outro motivo para estar ali, uma saudade chamada Deolinda. O nome dessa mulata atravessa o livro como uma segunda neblina, uma sombra que acompanha seus personagens, miscigenando lembranças de um passado cujo verdadeiro nome é o de uma terra perdida. Sidônio não esquece o caso de amor que teve com a mulata durante um congresso em Lisboa, e viaja à sua procura, no fundo, para resgatar a si mesmo. Os velhos Bartolomeu e D. Munda tampouco esquecem Deolinda, que partiu "para fora" deixando na casa a ausência de uma filha. Aqui tem início a travessia do romance, nas visitas diárias que Sidônio faz a Bartolomeu, para tratá-lo de tristezas tão venenosas quanto a epidemia da vila.

Na casa dos Sozinhos, as janelas estão sempre fechadas. Bartolomeu e D. Munda também se fecham, repetindo a escuridão do ambiente, doentes de "saudade da Vida". Bartolomeu, trancado no quarto, vive de remoer nostalgias da época do colonialismo, quando trabalhava a bordo do transatlântico Infante D. Henrique. A queda do regime colonial inaugurava o fim das viagens, um novo tempo sem "partida nem chegada", por isso os cravos vermelhos de 1974, para ele, nunca foram símbolo de festa, mas sinal de despedida. D. Munda, fechada em si mesma, chora ritualmente todos os dias, e "arruma no vazio das prateleiras o vazio que está dentro dela", na tarefa de enterrar as alegrias. Sidônio Rosa, apesar de médico, não tem a cura para essa doença de "solitária lonjura" dos velhos; ele próprio, aliás, sofre de uma saudade parecida, uma espécie de inexistência para a qual o único remédio é voltar a sonhar.

Em Venenos de deus, remédios do diabo, diferentes identidades se embaralham, dissolvem pressupostos históricos e preconceitos de raça, familiarizam-se na solidão. O estrangeiro não se traduz mais como aquele que vem de fora, senão como quem perdeu seu convívio com a terra - o reconhecimento, em si mesmo, de uma pátria. "Afinal, os homens também são lentos países. E onde se pensa haver carne e sangue há raiz e pedra." Sidônio Rosa se esquiva do abraço de D. Munda para evitar "um trânsito de alma", Bartolomeu Sozinho simplesmente desiste, porque o "amor envelheceu". Amigos de infância, Bartolomeu e Alfredo Suacelência, administrador da Vila Cacimba, agora rivalizam, por razões políticas já cansadas de guerra.

Com a mentira a serviço da fábula, a mestiçagem de corpos e de almas, viagens e cartas inventadas, Mia Couto recupera, neste e em seus outros livros, o poder do sonho e a necessidade do mito, questionando noções de pertença e ilusões de pureza de raça. Como disse em sua intervenção na cerimônia do Prêmio Internacional dos 12 melhores Romances de África, para o qual foi selecionado com seu romance Terra sonâmbula, em 2002: "Os escritores moçambicanos cumprem hoje um compromisso ético: pensar este Moçambique e sonhar um outro Moçambique. (...) Estamos aguardando pelo renovar de um estado de paixão que já experimentamos, esperamos pelo reacender do amor entre a escrita e a nação enquanto casa feita para sonhar. O que queremos e sonhamos é uma pátria e um continente que já não precisem de heróis".

O AUTOR

MIA COUTO, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, nasceu em Beira, cidade de Moçambique, em 1955. Filho de portugueses, estudou medicina, praticou o jornalismo e foi militante da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), tendo trabalhado para o governo à época da guerra civil (1976-1992). Formou-se em biologia, atividade que exerce ainda hoje, além de dedicar-se a estudos de impacto ambiental em Moçambique. Estreou na literatura com o livro de poesia Raiz de orvalho, em 1983 e, três anos depois, lançou seu primeiro livro de contos, Vozes anoitecidas. Desde então, freqüenta diversos gêneros da prosa - de romances, contos e novelas, a histórias infanto-juvenis e crônicas. Considerado um dos escritores moçambicanos mais conhecidos internacionalmente, tem seus livros traduzidos para o alemão, francês, inglês, italiano e catalão. Em 1999, conquistou o Prêmio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da obra e, no ano passado, o Prêmio União Latina de Literaturas Românicas. Entre seus títulos mais consagrados estão Terra sonâmbula (1992), selecionado pelo júri da Feira Internacional do Zimbabwe um dos doze melhores livros africanos do século 20, com o qual obteve o Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995, O último voo do flamingo (2000), com o qual obteve o Prêmio Mário António de ficção, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), tornado filme pelo português José Carlos Oliveira e O outro pé da sereia (2006), pelo qual recebeu o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, na 12ª Jornada de Literatura em Passo Fundo (RS), em 2007.

TRECHO • Terra sonâmbula

O adivinho olhou a terra como se dele dependesse o destino do universo. Pesava nos seus olhos a gravíssima decisão de criar um outro dia. (...) Então, levantando o seu cajado, sentenciou:

- Que morram as estradas, se apaguem os caminhos e desabem as pontes!

Depois, começou o discurso, desfiando palavras lentas, rasgando a voz de encontro ao vento:

- Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. (...) No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. (...) Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu.

Fontes:
http://rascunho.rpc.com.br/
Foto: http://www.ufmg.br/