Geralmente os grandes acontecimentos começam bem simples, tão simples quanto os pequenos. Assim, o tiro de pistola de Camile Desmoulins deu origem à revolução francesa, mas, quantas vezes um tiro de pistola termina apenas num simples inquérito.
Os acontecimentos que vou relatar começaram de maneira muito vulgar; mas terão sido importantes? Terão sido comuns? Deixo ao leitor decidir.
Certa manhã, às cinco horas, na rua deserta de uma cidadezinha (que contudo era a localidade principal de um cantão), passava um menino levando sob o braço um embrulho de anúncios amarelos. O rapaz aproximou-se do Teatro Municipal, passou grude na parede e colou nela um anúncio amarelo. Repetiu a mesma operação na parede contígua.
Em matéria de colar difícil é apenas começar. Depois, tudo caminhou às maravilhas. Ele parava em cada esquina, cuspia na parede e pregava um anúncio.
A partir das oito horas, os garotos interessaram-se pelo seu trabalho.
Por isso ele continuou a colar papel, acompanhado de vaias, de risos, de conselhos e de aclamações de um batalhão de meninos.
À tarde a tarefa ficou concluída e, embora os bêbedos tivessem arrancado as pontas do papel para fazer cigarros, e os garotos tivessem modificado o texto com comentários que eles evidentemente julgavam indispensáveis, a população da cidade soube o que diziam os anúncios amarelos.
“Hoje, quinta-feira 20 de junho, no Teatro Municipal, grande representação de gala de célebre Faquir. Valendo-se processos tão misteriosos quanto admiráveis, ele atravessará a língua de Miss Gilda, sua esposa. Ferirá o corpo com alfinetes até sair sangue. Abrirá o ventre e fará saltar o olho esquerdo, na presença da Ciência, representada pelos médicos e pelos espectadores que desejarem fiscalizar as experiências fantásticas.
N. B. - A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção.
Preço das entradas: Tabela Comum”.
A curiosidade do público aumentava em moto crescente. Estas palavras, principalmente, deixavam-no intrigado: “Abrirá o ventre”. De quem abrirá ele o ventre? Dele próprio?
E que significava: “A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção”?
A Polícia autorizava o faquir a fazer consigo o que entendesse? Ou, então, tinha simplesmente deixado de inspecionar seu estado de resistência ao sofrimento, enchendo-o de pancadas na delegacia?
As entradas eram disputadas.
Miassoribov, um jovem negociante, um rapaz sóbrio, educado, que se gabava mesmo de uma certa cultura, acolheu a notícia do espetáculo como um assíduo freqüentador do teatro. Comprou um camarote, e decidiu nele permanecer sozinho. Depois comprou uma caixa de bombons e adornou seu índex com uma turquesa nova. Miassoribov raramente usava esta turquesa porque desconfiava de sua autenticidade. Fosse como fosse, era preferível tê-la guardada numa gaveta verdadeira, sentia muita pena em usá-la; se fosse falsa, haveria de envergonhá-lo. É certo que um armênio lhe propusera um meio para verificar se o era: “mergulhe-a em azeite, meu velho; se for uma turquesa verdadeira, ficará estragada num abrir e fechar d'olhos e não terá mais valor. Mas se for falsa, não sofrerá coisa alguma!” Miassoribov reservava esse conselho para só utilizá-lo em último caso.
As oito horas da noite, o teatro estava repleto. Muitas pessoas tinham chegado às seis horas e esperavam impacientemente pelo levantar do pano.
— Por que não começam? Todos vêem que o público está presente. Vamos! O pano! O pano!...
Miassoribov, como um cavalheiro distinto, chegou apenas meia hora antes de começar; instalou-se no camarote, colocou-se de perfil e começou a comer os bombons. Todas as vezes que levava a mão à boca, o público podia contemplar muito à vontade a misteriosa turquesa.
Mas o pano acabava de subir. No meio do palco havia, numa pequena mesa uma caixinha oblonga. Ao redor da mesa, uma dúzia de cadeiras. No canto, mistificando grandemente o público, o pianista do teatro, o polonês Vruchkevitch esfregava as mãos, na intenção evidente de se sentar daí a pouco ao piano.
Finalmente apareceu o faquir.
Era magro e amarelo; trajava um roupão verde e segurava pela mão uma mulher com um vestido verde, do mesmo tecido do roupão.
Ele caminhou até o proscênio, inclinou-se e disse:
— Peço aos senhores médicos, bem como a alguns espectadores que tenham a bondade de se aproximar.
Nos balcões houve pessoas que manifestaram em voz alta sua surpresa por ele falar russo e não árabe. Dois médicos, hesitantes, subiram ao palco: o médico dos serviços públicos, cabeludo, e um médico particular, calvo. Os espectadores pareciam perturbados. Mandaram sair todos os ocupantes dos lugares da orquestra. O faquir escolheu oito cavalheiros de aspecto respeitável e instalou-os em torno da mesa. Depois tirou o roupão, e apresentou-se de pernas nuas, de calção esportivo. Foi assim que se aproximou do proscênio e saudou novamente, como se receasse que, nesse novo traje, o tomassem por outro.
O público aplaudiu.
O faquir voltou-se para o pianista.
— Vamos, musica!
Vruchkevitch atacou a valsa lenta: “Amo-a e por isso choro”, que afagou deliciosamente o ouvido do auditório.
O faquir abriu a caixinha, dela tirou um alfinete, igual àqueles com que as mulheres enfeitam os chapéus. Aproximou-se da mulher.
— Miss Gilda, queria pôr a língua para fora.
Miss Gilda dócil, voltou-se para ele e esticou a língua.
— Uma, duas, três! — exclamou o faquir, voltando-se para os médicos.
Estes se aproximaram, examinaram a paciente, e o médico dos serviços públicos, como o mais consciencioso dos dois, inspecionou mesmo por baixo a língua de Gilda. Depois, ambos, desconcertados, tornaram a sentar-se.
O faquir tomou a mulher pela mão e fê-la descer. Ela atravessou as filas de espectadores.
À sua aproximação eles se afastavam. A maioria, evidentemente sentia-se mal.
Miassoribov pôs a mão sobre os olhos.
— Basta! Basta! — gemeu.
— Basta! — gritaram.
Mas o faquir, consciencioso, arrastou a mulher para o balcão. Uma senhora teve uma crise de nervos e foi preciso retirá-la. Depois de ter dado volta à sala, o faquir voltou para o palco e retirou o alfinete.
Houve um suspiro de alívio.
O faquir tirou da caixinha outro alfinete mais grosso e mais comprido.
Ao ver isso, o pianista mudou de música e começou a tocar “A Polca dos pardais”.
O faquir atravessou as bochechas, de sorte que uma ponta do alfinete emergia por debaixo da maçã direita de seu rosto, enquanto a outra surgia debaixo da esquerda. Fez os médicos estupefatos verificarem o fato e tornou a descer até o público.
— Basta! é suficiente! — protestou Miassoribov. Uma náusea repentina fê-lo cuspir o bombom.
— Senhor! — gemia o publico. — Basta! Basta!...
— Como Deus consente isso?
Mas o bravo faquir atravessava as filas, como um homem consciente de seu dever, exibindo as bochechas, ora à direita, ora à esquerda.
— Basta! — uivava o publico... — Acreditamos sob palavra! Nao se chegue! Acreditamos!... Chega!...
Um funcionário agarrou a mulher pelo braço e correu para a saída.
Duas jovens os acompanharam. Atrás delas correu uma velha cambaleando, arrastando dois pobres garotos que choramingavam de medo. A velha esbarrou no faquir que dava sua volta, recuou, pisou nos pés de uma dama meio morta de pavor... Ambas precipitaram-se para a saída empurrando-se mutuamente.
Mas quem mais se apavorava era Miassoribov. Sentado em seu camarote, de costas voltadas para a sala, tapando os ouvidos, ele se voltava de vez em quando, com cuidado, lançava uma olhadela furtiva sobre o faquir, estremecia e encolhia-se no seu canto.
— Basta! Basta! — arquejava. — E demais!
Enquanto isso, Vruchkevitch martelava em seu piano a “Quadrilha dos Lanceiros”.
Mas o faquir retornou ao palco. O público acalma-se. Aguarda. Espera. No limiar do corredor vêem-se os rostos pálidos daqueles que não tiveram coragem de ficar até o fim. O faquir tira três outros alfinetes. Enterra um na língua (sem tirar o que está atravessado nas bochechas) e os dois outros acima dos cotovelos.
O sangue espirrou do braço direito.
— Não é uma mistificação! É sangue! sangue verdadeiro! — observou com alegria o médico dos serviços públicos.
O pianista polonês Vruchkevitch, animado pela jovialidade do médico, começou imediatamente a tocar “Valência”. Enquanto isso, duas porteiras do teatro tiveram de carregar para a saída uma jovem lívida que elas arrastavam pelo braço. O agente de serviço na fiscalização cambaleou por sua vez, e saiu com passo rápido. A sala estava ficando deserta.
Miassoribov nem mesmo mais se voltava. Dominado por estremecimentos nervosos, com as pálpebras apertadas, não respirava mais...
Debandar! — suspirava ele; mas paralisava-o um terror vago. Os cabelos arrepiavam-se.
Depois de o faquir completar a ronda pelos espectadores atormentados, que lhe suplicavam que voltasse para o palco, Miassoribov, voltando-se instintivamente, viu-o retirar os alfinetes e ouviu-o exclamar com triunfo:
— E agora, Senhoras e Senhores, vou fazer saltar meu olho por meio de um saca-rolhas, colocando-o entre o olho e a órbita.
Apanhou a caixinha, mas ninguém esperou pela aparição do saca-rolhas. Foi uma debandada geral. Soltando gritos estridentes, a multidão precipitava-se para a saída. Uns, desvairados, como loucos, fugiam para a rua; outros, dominando-se, paravam:
— Que estará ele fazendo agora? Será que já fez saltar o olho? Nesse caso poderíamos voltar. Que acham?
Um colegial desajeitado entreabriu a porta de um camarote e espiou pela fresta. Uma onda de melodia chegou até seus ouvidos. Eram as primeiras notas de “Madame Butterfly”, tocadas pelo impassível Vruchkevitch.
Sussurraram atrás do colegial:
— E então? Já fez saltar?
— Não me esmaguem! — exclamou ele, dando-se importância. — Creio que vai ser agora.
— Em nome de Deus, fecha a porta! — gemeram os curiosos. Mas logo em seguida, perguntaram novamente ao colegial:
— E agora? que está fazendo? De que tens medo, idiota? Olha, e grita-lhe que basta, que já vimos o bastante!...
Enquanto isso, no fundo de seu camarote, Miassoribov monologava, lívido:
— Saiamos devagarinho, meu velho... O teatro não é uma distração que te sirva. Ele exige uma natureza por demais cultivada, não serve para ti. Se quiseres te distrair, existe o vodka...
E foi por isso que Miassoribov deu para beber.
************************
Sobre a Autora:
Nadezhda Teffi é uma escritora russa, nascida em 1876 e falecida em 1952. Deixou a Russia após a revolução de 1917. Obteve destaque por seus contos. O Faquir é considerado o seu melhor trabalho.
Fontes:
Yolanda Lhullier dos Santos e Cláudia Santos (orgs. e trad.). Contos e novelas de língua estrangeira. v. II. 11. ed. São Paulo: Logos, 1963.
Imagem = http://dallablog.zip.net
Os acontecimentos que vou relatar começaram de maneira muito vulgar; mas terão sido importantes? Terão sido comuns? Deixo ao leitor decidir.
Certa manhã, às cinco horas, na rua deserta de uma cidadezinha (que contudo era a localidade principal de um cantão), passava um menino levando sob o braço um embrulho de anúncios amarelos. O rapaz aproximou-se do Teatro Municipal, passou grude na parede e colou nela um anúncio amarelo. Repetiu a mesma operação na parede contígua.
Em matéria de colar difícil é apenas começar. Depois, tudo caminhou às maravilhas. Ele parava em cada esquina, cuspia na parede e pregava um anúncio.
A partir das oito horas, os garotos interessaram-se pelo seu trabalho.
Por isso ele continuou a colar papel, acompanhado de vaias, de risos, de conselhos e de aclamações de um batalhão de meninos.
À tarde a tarefa ficou concluída e, embora os bêbedos tivessem arrancado as pontas do papel para fazer cigarros, e os garotos tivessem modificado o texto com comentários que eles evidentemente julgavam indispensáveis, a população da cidade soube o que diziam os anúncios amarelos.
“Hoje, quinta-feira 20 de junho, no Teatro Municipal, grande representação de gala de célebre Faquir. Valendo-se processos tão misteriosos quanto admiráveis, ele atravessará a língua de Miss Gilda, sua esposa. Ferirá o corpo com alfinetes até sair sangue. Abrirá o ventre e fará saltar o olho esquerdo, na presença da Ciência, representada pelos médicos e pelos espectadores que desejarem fiscalizar as experiências fantásticas.
N. B. - A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção.
Preço das entradas: Tabela Comum”.
A curiosidade do público aumentava em moto crescente. Estas palavras, principalmente, deixavam-no intrigado: “Abrirá o ventre”. De quem abrirá ele o ventre? Dele próprio?
E que significava: “A Polícia autorizou o espetáculo sem que o paciente se submetesse a qualquer inspeção”?
A Polícia autorizava o faquir a fazer consigo o que entendesse? Ou, então, tinha simplesmente deixado de inspecionar seu estado de resistência ao sofrimento, enchendo-o de pancadas na delegacia?
As entradas eram disputadas.
Miassoribov, um jovem negociante, um rapaz sóbrio, educado, que se gabava mesmo de uma certa cultura, acolheu a notícia do espetáculo como um assíduo freqüentador do teatro. Comprou um camarote, e decidiu nele permanecer sozinho. Depois comprou uma caixa de bombons e adornou seu índex com uma turquesa nova. Miassoribov raramente usava esta turquesa porque desconfiava de sua autenticidade. Fosse como fosse, era preferível tê-la guardada numa gaveta verdadeira, sentia muita pena em usá-la; se fosse falsa, haveria de envergonhá-lo. É certo que um armênio lhe propusera um meio para verificar se o era: “mergulhe-a em azeite, meu velho; se for uma turquesa verdadeira, ficará estragada num abrir e fechar d'olhos e não terá mais valor. Mas se for falsa, não sofrerá coisa alguma!” Miassoribov reservava esse conselho para só utilizá-lo em último caso.
As oito horas da noite, o teatro estava repleto. Muitas pessoas tinham chegado às seis horas e esperavam impacientemente pelo levantar do pano.
— Por que não começam? Todos vêem que o público está presente. Vamos! O pano! O pano!...
Miassoribov, como um cavalheiro distinto, chegou apenas meia hora antes de começar; instalou-se no camarote, colocou-se de perfil e começou a comer os bombons. Todas as vezes que levava a mão à boca, o público podia contemplar muito à vontade a misteriosa turquesa.
Mas o pano acabava de subir. No meio do palco havia, numa pequena mesa uma caixinha oblonga. Ao redor da mesa, uma dúzia de cadeiras. No canto, mistificando grandemente o público, o pianista do teatro, o polonês Vruchkevitch esfregava as mãos, na intenção evidente de se sentar daí a pouco ao piano.
Finalmente apareceu o faquir.
Era magro e amarelo; trajava um roupão verde e segurava pela mão uma mulher com um vestido verde, do mesmo tecido do roupão.
Ele caminhou até o proscênio, inclinou-se e disse:
— Peço aos senhores médicos, bem como a alguns espectadores que tenham a bondade de se aproximar.
Nos balcões houve pessoas que manifestaram em voz alta sua surpresa por ele falar russo e não árabe. Dois médicos, hesitantes, subiram ao palco: o médico dos serviços públicos, cabeludo, e um médico particular, calvo. Os espectadores pareciam perturbados. Mandaram sair todos os ocupantes dos lugares da orquestra. O faquir escolheu oito cavalheiros de aspecto respeitável e instalou-os em torno da mesa. Depois tirou o roupão, e apresentou-se de pernas nuas, de calção esportivo. Foi assim que se aproximou do proscênio e saudou novamente, como se receasse que, nesse novo traje, o tomassem por outro.
O público aplaudiu.
O faquir voltou-se para o pianista.
— Vamos, musica!
Vruchkevitch atacou a valsa lenta: “Amo-a e por isso choro”, que afagou deliciosamente o ouvido do auditório.
O faquir abriu a caixinha, dela tirou um alfinete, igual àqueles com que as mulheres enfeitam os chapéus. Aproximou-se da mulher.
— Miss Gilda, queria pôr a língua para fora.
Miss Gilda dócil, voltou-se para ele e esticou a língua.
— Uma, duas, três! — exclamou o faquir, voltando-se para os médicos.
Estes se aproximaram, examinaram a paciente, e o médico dos serviços públicos, como o mais consciencioso dos dois, inspecionou mesmo por baixo a língua de Gilda. Depois, ambos, desconcertados, tornaram a sentar-se.
O faquir tomou a mulher pela mão e fê-la descer. Ela atravessou as filas de espectadores.
À sua aproximação eles se afastavam. A maioria, evidentemente sentia-se mal.
Miassoribov pôs a mão sobre os olhos.
— Basta! Basta! — gemeu.
— Basta! — gritaram.
Mas o faquir, consciencioso, arrastou a mulher para o balcão. Uma senhora teve uma crise de nervos e foi preciso retirá-la. Depois de ter dado volta à sala, o faquir voltou para o palco e retirou o alfinete.
Houve um suspiro de alívio.
O faquir tirou da caixinha outro alfinete mais grosso e mais comprido.
Ao ver isso, o pianista mudou de música e começou a tocar “A Polca dos pardais”.
O faquir atravessou as bochechas, de sorte que uma ponta do alfinete emergia por debaixo da maçã direita de seu rosto, enquanto a outra surgia debaixo da esquerda. Fez os médicos estupefatos verificarem o fato e tornou a descer até o público.
— Basta! é suficiente! — protestou Miassoribov. Uma náusea repentina fê-lo cuspir o bombom.
— Senhor! — gemia o publico. — Basta! Basta!...
— Como Deus consente isso?
Mas o bravo faquir atravessava as filas, como um homem consciente de seu dever, exibindo as bochechas, ora à direita, ora à esquerda.
— Basta! — uivava o publico... — Acreditamos sob palavra! Nao se chegue! Acreditamos!... Chega!...
Um funcionário agarrou a mulher pelo braço e correu para a saída.
Duas jovens os acompanharam. Atrás delas correu uma velha cambaleando, arrastando dois pobres garotos que choramingavam de medo. A velha esbarrou no faquir que dava sua volta, recuou, pisou nos pés de uma dama meio morta de pavor... Ambas precipitaram-se para a saída empurrando-se mutuamente.
Mas quem mais se apavorava era Miassoribov. Sentado em seu camarote, de costas voltadas para a sala, tapando os ouvidos, ele se voltava de vez em quando, com cuidado, lançava uma olhadela furtiva sobre o faquir, estremecia e encolhia-se no seu canto.
— Basta! Basta! — arquejava. — E demais!
Enquanto isso, Vruchkevitch martelava em seu piano a “Quadrilha dos Lanceiros”.
Mas o faquir retornou ao palco. O público acalma-se. Aguarda. Espera. No limiar do corredor vêem-se os rostos pálidos daqueles que não tiveram coragem de ficar até o fim. O faquir tira três outros alfinetes. Enterra um na língua (sem tirar o que está atravessado nas bochechas) e os dois outros acima dos cotovelos.
O sangue espirrou do braço direito.
— Não é uma mistificação! É sangue! sangue verdadeiro! — observou com alegria o médico dos serviços públicos.
O pianista polonês Vruchkevitch, animado pela jovialidade do médico, começou imediatamente a tocar “Valência”. Enquanto isso, duas porteiras do teatro tiveram de carregar para a saída uma jovem lívida que elas arrastavam pelo braço. O agente de serviço na fiscalização cambaleou por sua vez, e saiu com passo rápido. A sala estava ficando deserta.
Miassoribov nem mesmo mais se voltava. Dominado por estremecimentos nervosos, com as pálpebras apertadas, não respirava mais...
Debandar! — suspirava ele; mas paralisava-o um terror vago. Os cabelos arrepiavam-se.
Depois de o faquir completar a ronda pelos espectadores atormentados, que lhe suplicavam que voltasse para o palco, Miassoribov, voltando-se instintivamente, viu-o retirar os alfinetes e ouviu-o exclamar com triunfo:
— E agora, Senhoras e Senhores, vou fazer saltar meu olho por meio de um saca-rolhas, colocando-o entre o olho e a órbita.
Apanhou a caixinha, mas ninguém esperou pela aparição do saca-rolhas. Foi uma debandada geral. Soltando gritos estridentes, a multidão precipitava-se para a saída. Uns, desvairados, como loucos, fugiam para a rua; outros, dominando-se, paravam:
— Que estará ele fazendo agora? Será que já fez saltar o olho? Nesse caso poderíamos voltar. Que acham?
Um colegial desajeitado entreabriu a porta de um camarote e espiou pela fresta. Uma onda de melodia chegou até seus ouvidos. Eram as primeiras notas de “Madame Butterfly”, tocadas pelo impassível Vruchkevitch.
Sussurraram atrás do colegial:
— E então? Já fez saltar?
— Não me esmaguem! — exclamou ele, dando-se importância. — Creio que vai ser agora.
— Em nome de Deus, fecha a porta! — gemeram os curiosos. Mas logo em seguida, perguntaram novamente ao colegial:
— E agora? que está fazendo? De que tens medo, idiota? Olha, e grita-lhe que basta, que já vimos o bastante!...
Enquanto isso, no fundo de seu camarote, Miassoribov monologava, lívido:
— Saiamos devagarinho, meu velho... O teatro não é uma distração que te sirva. Ele exige uma natureza por demais cultivada, não serve para ti. Se quiseres te distrair, existe o vodka...
E foi por isso que Miassoribov deu para beber.
************************
Sobre a Autora:
Nadezhda Teffi é uma escritora russa, nascida em 1876 e falecida em 1952. Deixou a Russia após a revolução de 1917. Obteve destaque por seus contos. O Faquir é considerado o seu melhor trabalho.
Fontes:
Yolanda Lhullier dos Santos e Cláudia Santos (orgs. e trad.). Contos e novelas de língua estrangeira. v. II. 11. ed. São Paulo: Logos, 1963.
Imagem = http://dallablog.zip.net
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