quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Luis Rebelo (A camisa do noivado)

(vocabulário de algumas palavras colocadas ao final do texto)

I

Quando Telo, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do castelo de Algouço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens de armas escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Soeiro Lopes; alma negra do senhor, onde alcançara com o braço, deixara sempre vestígios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o vilico (era o seu título naquele tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas à porta despediram-no asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que ninguém o despertaria para dar audiência a um vilão. A princípio, Telo pôde sopear a ira; mas a pouco e pouco, a alienação irritou-o e levantou a voz. Soeiro Lopes assomou de repente à porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro e perguntou:

— A que vens aqui?

— Trazer o que mandaste e pedir o cumprimento da promessa! — redargüiu ele, friamente.

O senhor empalideceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvíssima e transparente, que vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez na sua vida. Depressa se recobrou e, medindo o mancebo com indizível escárnio, replicou:

— Pedi-te duas camisas fiadas e tecidos com os fios das urtigas da sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de cavaleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?!

— Ei-las! — acudiu o besteiro. — Urtigas deram o fio e fadas teceram o pano.

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admirável bem mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha, D. Soeiro tremia. Sobre o peito, em letras cor de sangue, viu as iniciais do seu nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das três esposas que tinham passado ao túmulo do seu leito.

— Bem! — exclamou. — Silvana é tua se a achares. Quanto à mortalha.. Veremos esta noite quem a veste!

Não esperou por mais o besteiro, e partiu apressando o passo, caminho da choupana de Aldonça. Um pressentimento vago advertia-o de perigo incerto. A tristeza oprimia-lhe o peito; todavia, a boa nova, que levava, devia alegrá-lo. A noite fechou-se escura. O tempo mudado. Rugindo no pinhal, o vento arrancava por entre as ramas das árvores gemidos lúgubres. No céu apagavam-se as estrelas uma após outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima do último outeiro. Sem saber por que, sentiu-se Telo desalentado. Ele, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando chegou à choupana, achou a casa erma e a porta arrombada, e acabou de crer que os presságios não mentem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma cena violenta. A lâmpada ardia ainda junto do lar, e luz mortiça deixava ver os escaninhos partidos, os vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um feixe. O mancebo parou e debalde quis ligar as idéias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrado as forças. Nem o ânimo, nem a razão se prestavam a ajudá-lo.

Fora rapto? Fora vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! Saltaram-lhe então as lágrimas, e a dor foi tão penetrante, que, a não se encostar, cairia desfalecido. Ocorreram-lhe as palavras de Soeiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do castelo, e àquela hora entrava talvez as portas do A1cácer, que para ela eram as portas do sepulcro. “É tua, se a achares!” — dissera o larápio. A quem iria Telo pedir justiça? Lutando com a agonia, sentiu que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava à donzela senão a morte depois da infâmia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou, atribulado:

— Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não embainhei a espada da justiça!

No meio destas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no ombro. Olhou. Viu Aldonça. Um sinal imperioso atalhou em seus lábios o grito que iam soltar. Guiando-o calada, a protetora de seus amores chegou a um lugar deserto, e apontando para um cavalo ajaezado, preso ao tronco de uma árvore, disse-lhe rapidamente :

— Monta!

O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha ajuntou:

— O mordomo de Soeiro Lopes entrou aqui e levou roubada a tua noiva. Corre, que por tua felicidade corres e não pares senão na vila de Miranda. Busca os paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro desta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o sucedido e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.

O mancebo, atônito, viu-a desaparecer, e, largando as rédeas, partiu direto à vila.

II

Como o Douro vai fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os penedos do seu leito! Que trovões rebramam as águas despenhadas em cascatas contra as penhas que lhe oprimem a fúria corrente! Como a noite se cobre de luto quase de repente, de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde o estampido longínquo da tempestade. Os relâmpagos fuzilam sobre as eminências.

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que vila é aquela cujas torres negras estrelam vivas luzes pelas frestas pontiagudas? Seguindo a margem do rio, Telo Vasques não sente fadiga; o brioso corcel devora a distância. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes e estradas, enfia ruas e vilas, e pára no terreiro, defronte dos paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detê-lo; mas, sem voltar a cabeça, e continuando responde:

— Busco o senhor.

Ninguém o suspende. De corredor em corredor, de aposento em aposento, chega à sala de armas. Entre os cavaleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-cós ainda.

Grossas tochas em anéis de ferro iluminavam a vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos enfeitam as colunas, cujos capitéis lavrados sustentam os fechos da abóbada. O monteiro, apercebendo Telo, encaminhou-se para ele. O mancebo vinha tão sufocado, que pôde apenas dobrar o joelho e oferecer-se a trompa. Foi preciso que ele sorrisse para o besteiro narrar o sucesso que o trazia àquela hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com vista inflamada bradou:

— Levai-me aos pés de El-Rei D. Pedro. Dizem que ele não conhece grandes, nem pequenos. A donzela que roubaram é pura e santa como a mais pura e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ela ter nascido no berço de um vilão!

À medida que o besteiro falava, a fisionomia do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pretos dilatados chamejavam, e o semblante, rosado e jovial, empalidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que se acham distantes. Quando Telo pôs termo as suas queixas e levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protetor era terrível. Ensangüentados e delirantes, mais se assemelhavam às pupilas encadeadas do tigre, do que ao olhar humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, falava tão convulsa que pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes brados:

— Lourenço Gonçalves! Acudi! Um rico-homem furtou a mais linda de minhas filhas!

O brado e a imensa cólera revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonçalves era o corregedor da corte. Ninguém ousaria chamá-lo assim senão El-Rei. Telo prostrou-se cheio de esperança.

— Segue-me! Afonso Madeira! o meu cavalo enfreado à porta! A minha capelinha de aço. Gonçalo Vasques de Góis, escrivão da Puridade! Chamai os desembargadores, relatai-lhes o feito e lavrai a sentença. Por alma de Inês de Castro!... Pelo seu amor! — murmurou mais baixo. — Antes de nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino e mais uma justiça de minhas mãos no livro das suas crônicas!

Falando assim, enlaçava a capelinha, calçava as luvas de gamo, e, com o açoite cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.

O besteiro seguiu sem proferir palavra. Os cavaleiros montavam, e uns após outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atrás o cavalo do próprio Telo Vasques, e cego de ira metia-se pelas terras de Algouço. Por cima desta vertiginosa carreira a chuva caía em torrentes. A procela abria os céus em clarões lívidos, desarraigando as árvores anosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castelo, um vulto surgiu, que lhe tomou as rédeas, convidando-o a apear-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça viu as frestas da torre iluminada. O vulto travou-lhe do braço, e disse:

— É ali!

— Vamos! — redargüiu o príncipe. E seguiu-o sem desconfiança.

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu à chave e ao impulso.

— Ide agora e Deus seja convosco! — disse a mesma voz.

Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Inês de Castro subiu. No topo da escada de caracol, a cena que se lhe representou excitou-lhe ainda mais a cólera. Perderia o salutar do nome de “Justiceiro”, se perdoasse aquele crime.

Era espaçoso o aposento. Um lampadário alumiava parte dele; o resto mergulhava-se em profunda escuridão. No centro da sala, num leito, com as mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a boca até os ais lhe sufocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados em lágrimas, pediam a Deus a morte, remédio extremo da infâmia. Soeiro Lopes, defronte, sorria medindo com a vista a queda lenta da areia duma ampulheta. A seu lado o vilico silencioso corria os dados sobre a mesa. A teia da mortalha, fiada e tecida com as urtigas do túmulo, estava nas mãos do cavaleiro, e suas palavras, irônicas como punhais, atravessam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos senhores de Biscaia cevava na formosura cativa o furor dos zelos.

— Por que choras, Silvana? Dera ontem o melhor arnês e o melhor cavalo por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor, respondeste não. A tua prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos por que chamavas! Brada pelo besteiro vilão, que preferiste ao rico-homem! Grita! Grita por El-Rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço, as portas chapeadas deste castelo ainda são mais fortes. Em esta areia, que está por instantes caindo toda...

Faltou-lhe a voz. A mão erguida do vilico deixou também rodar o último dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos dele brilhava um clarão terrível. A pesada acha reluzia em suas mãos.

— Traidor! — bradou o príncipe. — Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe todas portas. Vais ver!... Vilão! — ajuntou, falando ao vilico. — Solta as mãos e a boca a essa donzela. Ninguém se mova! Soeiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na presença de Deus!

O orgulho indômito do cavaleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que pálido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redargüiu:

— Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pedro Coelho e de Álvaro Gonçalves? O rei carrasco; falso à sua alma e à alma do seu pai? Imaginas que farei como os outros cavaleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e à má fé chamo-lhe inimigo. Vilico! Aperta os laços da cativa. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o castelo senão a Deus. A mim, homens de armas!

— Deus é justo! — clamou El-Rei, cuja fúria não conhecia limites. — O matador de três mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor cruel de donzelas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como vilão às mãos dos teus vilãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha acha. Vilãos! — bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. — Sou D. Pedro! Sou rei! Esse que aí está, rebelde e traidor, prendei-mo enquanto os meus não chegam!

A presença e a voz do filho de Afonso IV infundiam terror. Os homens de armas temiam, mas não amavam Soeiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de curta e desesperada resistência, o cavaleiro ficou à mercê de El-Rei.

— Passai um laço na cadeia do lampadário, pondes um escano para ele subir e cingi-lhe o nó na garganta! prosseguiu o soberano, indignado.

— Sou rico-homem por foro de Espanha. A afronta da morte vil cairá sobre vós e sobre todos os filhos de algo. Pedir-te-ão contas dela, verdugo! — gritou o cavaleiro, estorcendo-se.

— A Deus as darei e a mais ninguém! O desleal que violenta donzelas não é cavaleiro. Quebro-te a espada e o foro com meu cetro.

Momentos depois, Soeiro estava em cima do escano e o vilico enrolava-lhe o laço. Comovida e trêmula, Silvana lançou-se suplicante aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:

— Pedes perdão a Deus e ao teu rei?

— Não!

O pé do príncipe tombou o escano e a morte cortou as últimas palavras do cavaleiro.

III

A tropeada de muitos cavalos, soando a par do alarido e vozes do castelo, anunciou à aldeia, alvoroçada, a vinda do monarca. Telo Vasques aparecia à porta quando Soeiro Lopes expirava.

— Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e como esposo... apesar disso cheguei primeiro! A justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor!

Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Soeiro, na capela, e os noivos recebiam a bênção, tendo El-Rei D. Pedro por seu padrinho.

Falou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não se esqueceu nunca foi a Justiça que fizera em Algouço a severidade do monarca.

O castelo devolveu-se à coroa e parece que fora doado depois ao primogênito de Telo e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou fábula, não sei. El-Rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavaleiro um vilão, como de justiçar como vilão um cavaleiro.
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Vocabulário:
- Besteiro = fabricante de bestas.
- Besta = Arma antiga de arremesso, usada para disparar setas e pelouros, consistente de um arco de aço ou de madeira, cuja corda se retesa por meio de uma mola que pode ser solta ao se premir um gatilho.
- Escano = espécie de assento destinado em atos públicos às pessoas de mais elevada hierarquia.
- Menagem - Prisão fora do cárcere, concedida sob promessa do preso de não sair do lugar onde se acha ou que lhe foi designado.
- Rebramam = repetir o bramido.
- Sopear = Subjugar, dominar, reprimir, sofrear, vencer, domar.
- Vilico = regedor de lugar onde se arrecadavam os impostos e onde se administrava justiça: O vilico do século XII... correspondia não só ao moderno administrador ou mordomo de rico fidalgo, mas também representava a autoridade administrativa, e ainda, em certos casos, a judicial, dentro dos limites da honra... ou senhorio respectivo.
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Fonte:
Contos e Novelas de Língua Portuguesa. Seleção e organização de Yolanda Lhullier dos Santos e Nádia Santos. 8 ed. São Paulo: Logos, 1962. http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

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