domingo, 28 de setembro de 2008

Nilto Maciel (Leste da Morte)

A trama das narrativas de Nilto Maciel freqüentemente se expressa em linguagem poética: “Abriu a porta e o som do piano inundou o mundo. (...) Tateou espaldares de cadeiras. Tocos os dedos numa orelha. Ouviu um muxoxo feminino. (...) Conhecia a música. Talvez de Haendel. Ou seria de Grieg? (...) As mãos do artista. Não, não podiam ser mãos. (...) Sim, eram garras, jamais mãos humanas. Seriam de lobo?” Atmosfera semelhante pode ser encontrada em vários outros momentos do livro. Trata-se de um cadáver ensangüentado, “levado, às escuras, para os confins do cemitério. (...) E o enterraram numa cova aberta às pressas. A leste da morte” (p. 39). Ao escrever sobre incêndio ocorrido num espigão de cimento armado, o salto de uma pessoa para o abismo é visto deste modo pelo autor: “Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra”. Para espanto da platéia, o suposto cadáver ergueu-se do chão e saiu andando (p. 43).

Num conto em que narra as peripécias de um mágico supostamente dinamarquês, a cosmovisão do ficcionista desenha poeticamente as façanhas saídas das mãos do prestidigitador: “Uma pombinha surgia trêmula nas mãos do estrangeiro. Batia as asinhas, voava, voava e sumia no céu. Um coelhinho saltava da cartola, olhinhos vermelhos de espanto, focinho inquieto, e as primeiras mãos do povo o agarraram sangrentas” (p. 67).

“Menino Insone” (p. 76) é outra página com todas as peculiaridades de um poema. Os ritmos da narrativa parecem confundir-se com os ritmos da respiração dos personagens. Não se sabe ao certo se o menino está dormindo ou acordado sob “a luz da lamparina (que) bruxuleia”. O irmão menor do menino levanta-se da rede e perambula pela casa, como se acometido de uma crise de sonambulismo. “Permanece de olhos abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos”. É como se um fantasma, expulso dos subterrâneos de um pesadelo, vagasse por aposentos desertos à procura de reminiscências de vidas passadas em outros planetas.

Contos dessa natureza não são raros na ficção de Nilto Maciel. Levam necessariamente o leitor às raízes da chamada literatura do absurdo, na qual se destacam celebridades da estatura de Kafka e de outros mestres do gênero. “Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. (...) Na rede ao lado, o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar” (p. 77). Em “Chão Pintado de Sangue”, algumas pessoas aplaudiam ou vaiavam “um rapaz de roupas exóticas”, que declamava versos herméticos para uma platéia irreverente: “O poema é um punhal que brilhará na carne dos condescendentes. Seus reflexos parirão estrelas que habitarão o céu. Marinas cintilarão como ametistas nas bocas dos desvalidos. Imensas pérolas de enfeites da grande festa anunciada” (p. 63).

Poderia citar vários outros exemplos da riqueza semântica encontrada no contexto das narrativas de Nilto Maciel. Não o faço por estar convencido de que ao leitor deve caber o privilégio de descobri-los por si mesmo. Até porque, segundo Montaigne, certos leitores são capazes de detectar nos escritos alheios virtudes e perfeições não percebidos pelos próprios autores. Gosto sempre de repetir frase de Drummond, segundo a qual “o romance é a arte de destelhar casas sem que os transeuntes percebam”.

Nilto Maciel é, sem dúvida, um mestre consumado do conto moderno. Não apenas pelo requinte no uso de todas as gradações e alternativas morfológicas da escrita literária. Como também, e sobretudo, pela maneira engenhosa com que disserta sobre tendências e conflitos da subjetividade que navega “a leste da morte”.
Fortaleza, 3 de agosto de 2006.

Narrativa polifônica caracteriza os contos do novo livro de Nilto Maciel
Ronaldo Cagiano • Brasília – DF

Autor de mais de duas dezenas de livros que cobrem diversos gêneros, Nilto Maciel percorre com desenvoltura várias temáticas, sempre se valendo de uma grande flexibilidade de linguagem, técnica e forma e da manipulação de cenários distintos para construir seus personagens e histórias. Em seu novo livro, A leste da morte, ele reúne 47 contos, matizando universos que extrapolam os territórios geográficos, porque são ressonâncias fiéis do psicológico, da memória, das lembranças e imagens ancestrais, que constituem as experiências afetivas, sociais e humanas que habitam a imaginação e são as referências que sustentam o vasto espectro criativo do autor.

Alternando textos breves ou longos com uma prosa que mantém um pé na tradição e outro na modernidade, Maciel consolida sua força narrativa em histórias que filtram a vida, principalmente a vida do interior, onde o autor colhe matéria para uma artesania literária que incorpora, na maioria das vezes, um vezo de surrealismo. Alguns textos têm a duração de um curta-metragem e trazem, nesse breve arcabouço, um mundo coroado de mistério e misticismo, de sagrado ou de profano, de lenda e de folclore, revelando sutilmente a alma sertaneja, distanciando-se dos clichês da escritura regionalista. Não obstante a cor local de seus contos, a dicção niltoniana ultrapassa as fronteiras dessa geografia carregada de mitologias, porque os dramas e acontecimentos retratados são próprios do homem em qualquer circunstância ou lugar, daí a universalidade de seus relatos.

Trem fantasma, texto que nos faz embarcar no conjunto dessas histórias, revela, tanto pela síntese quanto pelo inusitado e pela surpresa, a tendência fabulatória encontrada em muitos textos do autor, que busca na fantasia, no absurdo, na alegoria ou na caricatura um artifício para compreender a realidade. A exatidão minimalista e fotográfica de alguns contos também nos remete a perceber a influência da instantaneidade, peculiar à oralidade e ao coloquialismo encontradiços na rica cultura popular nordestina.

Nilto aproveita a carga metafórica das histórias do mundo anterior que traz no inconsciente e as reinventa, para guiar o leitor por diversas atmosferas. A ambientação da linguagem, embora sem localização territorial, nos faz reconhecer situações presentes no imaginário do homem do interior, em que prevalecem os velhos cacoetes da vida provinciana, dos burgos, do coronelismo e do cangaço, da religiosidade e das crendices, com seus coronéis, suas lutas de poder, em que vida e morte se digladiam em tênue fronteira. Enfim, um esboço típico dos contrastes entre a modernidade e o arcaísmo, aqui amalgamado por um sutil censo de humor e ironia.

O último vôo da rapina, conto em que o personagem principal é o anagrama do abutre, traz como simbologia a luta pela preservação da vida por meio da busca desenfreada da manutenção dos sonhos, num conto de acento hitchcockiano. Outro bom exemplo de tessitura ficcional encontramos em Os urubus e Deus, explícito viés do fantástico. Em outros momentos, Nilto repovoa suas histórias revisitando temas bíblicos, literários e históricos, como em Caim e Abel, O sonho esquecido, O sétimo aniversário de Branca de Neve, Apontamentos para um ensaio e o paradigmático Maneco, futebol e cerveja, reconstrução da decadência de um jogador, numa perfeita analogia sobre a fugacidade da glória e a transitoriedade do infortúnio.

A perícia de Nilto Maciel é marcante na confecção de Águas de Badu, ao utilizar-se da transcriação literária para dialogar com a profundidade narrativa de Guimarães Rosa, invocando os paradigmas de O burrinho pedrês. E no peculiar O livro infinito, uma espécie de conto dentro do conto, transita pela história, pela literatura, pela música, etc., num espectro em que se discute a própria arte. Impende dizer que para atingir o ápice ou convencer o leitor, Maciel não se vale de nenhum recurso estrambótico, como rupturas ou outros artifícios experimentais de linguagem. Sua prosa se revela moderna, mas sua estrutura é clássica, tradicional, porque o que importa para o autor é o domínio do conteúdo e não o extravasamento da forma.

A leste da morte é um caleidoscópio de temas e situações que consolidam a trajetória de Nilto Maciel, um autor que há três décadas vem se dedicando de corpo e alma à literatura e a cada novo livro, com seu timbre, suas vozes e seu sutil censo de observação, se afirma como um habilidoso artista, que conta e reconta as delícias e asperezas da vida, expondo as grandezas e misérias humanas, com inegável destreza literária.

Fontes:
Francisco Carvalho. in http://www.vastoabismo.xpg.com.br
Ronaldo Cagiano in http://www.bestiario.com.br

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