quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Caldeirão Literário do Estado do Sergipe

Araripe Coutinho (1968)

XLII

Adentro avesso e o reto
É vulva aberta, mucosa
No inferno de nossos dentros.

Espeto o desejo como quem
Procura o risco, o medo, a coragem
De avançar perdido por algo que sei
Desde a infância, aurido.

Homem é sempre treva. Mas pode
Trazer o mundo para dentro de nós.
E a arte nessa selva é sempre
A morte.

Invento de muros. Paredes altas.
Consumo de felicidades mortas
E a maçã no escuro é Clarice
Sem decifrar GH, seu mito.

Estou apodrecendo como
Quem constrói uma catedral
Sem missa. Assim rendido no portal
Avanço sempre que me vejo.

Sou um mesmo homem
Que não conhece deus, mas que o ama.
Seria o amor assim? Este nunca vir.

Sim. É desejo o que me mata.
São negros e azuis e o quarto cabe
Cada um com seu poder.

Eu sempre rendido.

XL

Aparecer no espelho e dizer: morra!
Este é o meu tempo. Fantasmas visitando
O quarto escuro. Uma mulher de unhas longas
Tez avermelhada, sombrancelhas de chagas
Mal dormidas. É a morte. Ainda que o dia
Amanheça a noite nunca chega.
Estou tateando a ogiva de um amor sem matéria.
Carregando o andor de um santo sem fé.
É minha esta prece. É vasta, solene, quase muda.
Entendo a morte como a um copo de café.
Sirvo as compotas de frutas uma a uma.
É jambo, ameixas e morangos.
Nenhum sabor
Decifra esta ira. Estou incendiado
Desde amor.

XLIV

Tenho dito sempre
Que genet e Jeanne moreau
Estão certos: “todo homem mata aquilo que ama”.
Os negros na vidraça ensaboados
E o quarto aguardando bater seis horas.
É deu visitando a estrebaria.
Pondo fogo no feno, impedindo que se durma
Ao longo de uma costela larga.
Mas pode o desejo fraturado
Acender outra chama? Pode.
Desce as escadarias. Põe o colchão
De sombras na varanda. Deixa os glúteos
À mostra. Concentra o verde da vida
Entre os lábios. Deserta a última
Claridade. É ele quem ama.
Mesmo escuro põe vida nas coisas.
E inflama.
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Sobre o Autor
Nasceu no Rio de Janeiro em 1968 mas vive em Aracajú, Sergipe, desde 1979, onde é articulista de jornais e apresentador de programa de TV. É autor de meia dúzia de livros de poesia. Recebeu os títulos de Cidadania Aracajuana e Sergipana e é membro da Academia Sergipana de Letras. Foi diretor da Biblioteca Pública Municipal.
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Gizelda Santana de Morais (1939)

Viola de Gamba

Nossas mãos juntas
construirão gestos insuspeitados
nossos passos juntos caminharão
dobro dos caminhos
nossos corpos juntos
suportarão o peso das pressões
elevado ao quadrado
nossos mentes juntas
nossos pensamentos
nossos momentos
se esticarão como cordas
de viola de gamba
nos ouvidos dos séculos.

Pela rua

Caminho pela rua...
quantos destinos cruzam-se comigo,
quantas vidas diferentes de outras vidas,
quantas faces diferentes de outras faces...

Vou passando por muitos
(enquanto eles também passam por mim)
e perscruto seus gestos, seus modos, seus olhares.
Vejo gente sorrindo,
vejo gente cansada,
gente altiva, gente humilde, gente triste...
não vejo alguém chorando,
mas, quanta gente choraria o pranto
guardado, se não fosse a vergonha
de chorar pela rua.

Na rua passa tudo, passam todos
passa a noite, o silêncio, o barulho,
até os mortos passam pela rua.
E suas casas, suas luzes, suas pedras
também olham, perscrutam e testemunham
a tudo e todos que passam
pela rua.

Baladas do inútil silêncio

I

se há por quês
é porque não se cansam
as andorinhas de voar

nem os mágicos
de tirarem coelhos da cartola

e o tempo é o gesto
e o espaço um pedaço de pão

Quero o tato

Quero o tato
limpo como o espelho
quero o dólmen
e o anel
quero as alpargatas
para correr mundo
e a lança para cruzá-la no caminho
quero o fruto
colhido com a boca
e quero o amargo
pois também sou humano.

Interrogações

Onde a clareza
a certeza
perdidas nesse momento?
será o sono o microfone
ou o medicamento?

por que me dói
tão físico o coração
se mesmo toda físico
não me dói a mão?

por que decorre desse grito
o grito atravessado
e na esteira dos planetas
navegam tantos nadas?

de onde veio
essa louca antevisão
de perceber o futuro
sem ter de hoje os cordões?
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Sobre a Autora
Nasceu em Campo do Brit, Sergipe em 1939 e mora atualmente em Maceió. Seu primeiro livro de poesias, Rosa do Tempo (1958), foi publicado aos 18 anos, pelo Movimento Cultural de Sergipe. No ano seguinte ganha o 1° prêmio no Concurso Universitário de Poesia em Belo Horizonte. No mesmo gênero publicou, Acaso (Salvador/1975), Cantos ao Parapitinga (Aracaju/1991), Poemas de Amar (edição pessoal, 1995); em parceria com N. Marques e C. Fontes, Baladas do Inútil Silêncio (Salvador/1964) e Verdeoutono (Aracaju/ 1982); participa de coletâneas, Palavra de Mulher (Rio/1979), Aperitivo Poético (Aracaju, edições de 1986/87/88/89), NORdestinos (Lisboa/1994); entre os ensaios literários, Esboço para uma análise do significado da obra poética de Santo Souza (Aracaju/1996). Reúne sua poesia, publicada e inédita, em ROSA NO TEMPO, Scortecci Editora, São Paulo, 2003.

Doutora em Psicologia pela Universidade de Lyon (França), com a tese L'Ecriture et la Lecture, 1970); lecionou nas universidades federais de Sergipe e da Bahia e, como convidada, na Universidade de Nice. Tem vários trabalhos científicos em livros e revistas, entre os quais Pesquisa e Realidade no Ensino de 1° Grau (Cortez Ed. São Paulo/1980). É membro da Academia Sergipana de Letras.
Romances já publicados: JANE BRASIL, Aracaju/1986; IBIRADIÔ, 1ª ed. Aracaju/1990, 2ª ed. Scortecci Ed. SP. 2003, ed. francesa: Editions du Petit Véhicule, Nantes, 1999; PREPAREM OS AGOGÔS, Ed. Bagaço, Recife/1996, (Menção Honrosa no concursos nacional de romance do governo do Paraná ,1994); ABSOLVO E CONDENO, Vertente editora, SP, 2000 (menção especial, UBE, 2002); FELIZ AVENTUREIRO, Scortecci Ed. SP, 2001 (prêmio AJC, Especial do Júri, 2002).
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João Ribeiro (1860 – 1934)

MUSEON
II
Helés, a formosíssima das gregas,
Róseo trecho de mármor sob escombros
Dum Panteon que as divindades cegas
Soterraram depois de tê-lo aos ombros,

Helés, um dia, sobre a praia chegas ...
Inclinam-se extensíssimos os combros
E o vento alarga em frêmitos de assombros
Da túnica do mar as verdes pregas.

E tu reinas, tu só! Debalde, vagas
Sobre outras vagas se atropelam, correm,
Uma por uma, indiferente esmagas:

Como as paixões na tua vida ocorrem,
Uma e mais outra, nas desertas plagas
Chegam e morrem, e chegam e morrem.

IV

Este vaso quem fez, por certo fê-lo
Folhas de acanto e parras imitando.
É de ver-se a asa fosca o setestrelo
De saboroso cacho alevantando.

Que desejo viria de sorvê-lo
Os gomos todos um a um sugando,
Quando, contam, dos pássaros o bando
Do céu descia prestes a bebê-lo.

Examina este vaso. N'um momento
Crê-se vê-lo a voar, o movimento
D'asa soltando, como aéreo ninho ...

Será verdade que este vaso voa
Ou porventura à mente me atordoa
Seu capitoso odor de antigo vinho?

VIII

Foi com esta maçã d' oiro polido
Que as ambições movendo de Atalanta,
Pôde Hipomenes alcançá-la. E quanta
Vitória a essa em tudo parecida!

Ao ideal aspira! à estrela aspira! à vida
Aspira ó nada, ó turba agonizante,
Ou chores quando a terra alegre cante
— Ou cantes quando a lágrima vertida

Desça-te à boca. E bastaria, apenas,
Para galgar essas regiões serenas,
A maçã de Hipomenes, flébil, louro ...

E chegarás ao ideal e à vida, O pomo
Áureo atirando à própria estrela, como
Lá chega a l,:!z - por uma escada de ouro.

XI

Do mar e das espumas tu nasceste,
Ó forma ideal de rodas as belezas,
lnda teu corpo, mal vestindo-o, veste
Um colar de marítimas turquesas.

Milhares d'anos há que apareceste,
Outros milhares d'almas-sempre acesas
No teu amor, lá vão seguindo presas
Da rua garra olímpica e celeste.

Beijo-te a boca e sigo embevecido
Ondas sobre ondas, pelo mar afora,
Louco, arrastado qual os mais têm sido.

Ora te vendo as formas nuas, ora
Toda nua e sentir-te em meu ouvido
Do eterno som dos beijos meus sonora.
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Sobre o Autor
João batista Ribeiro de Andrade Fernandes, jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor, nasceu em Laranjeiras, província de Sergipe e faleceu no Rio de janeiro, onde fez carreira depois de cursar Medicina, sem concluir o curso, na Bahia. Por concurso público, trabalhou na Biblioteca Nacional e depois no renomado Colégio Pedro II, na cadeira de Português. Estudioso de filologia, o que o levou a ter um papel decisivo nas reformas da própria língua nacional. Chegou a fazer estudos de pintura na Europa e a expor seus quadros mas foi no jornalismo e na literatura onde recebeu o reconhecimento por sua contribuição. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Obra poética: Tenebrosa lux (1881), Dias de sol (1884), Avena e cítara (1885) e Versos (1885).
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Joel Silveira (1918)

Poema

Porque não há trégua na quotidiana amargura,
os versos nascem todos desgraçados
e possivelmente maus.

Os caminhos estão gastos,
as mulheres se repetem
e é ridículo dar amor a alguém que amanhã estará murcho
e que jamais devolverá nossas cartas.
Para as horas, tão inúteis,
vale apenas a solução dos bêbedos.

Onde estão os perigos desta vida?
Quero-os todos para mim, aqui ou longe,
a eles o melhor estilo e o melhor entusiasmo.
E que sobre eles o amor e a alegria se debrucem
como rosas abertas num campo minado.
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Sobre o autor
Poeta e jornalista, nasceu em Aracaju, em 1918. Conhecido por seus livros de reportagens e ficção – entre eles o célebre Meninos eu vi (1965) e o romance Você nunca será um deles (1988), foi incluído por Manuel Bandeira em sua antologia Poetas brasileiros bissextos contemporâneos (1946).


Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/

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